Itália: A crise é séria mas parece comédia

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Berlusconi perdeu a maioria absoluta na Câmara dos Deputados Tony Gentile/Reuters

No dia 8 de Junho, a Bolsa de Milão começou a “arder”. Foi “a sexta-feira negra”. O dia 11 foi pior e ficou como “a segunda-feira negra”, pois não havia outro adjectivo disponível. Os acontecimentos são uma mistura de drama e comédia. O vento começou a mudar com um telefonema da chanceler alemã, Angela Merkel, que arrancou Silvio Berlusconi à sonolência. Fustigados pelo Presidente da República, Giorgio Napolitano, os políticos reagiram e puseram-se de acordo. Foi a mais fulminante aprovação de um plano de saneamento financeiro na história da República Italiana.

Na quarta-feira, a Moody’s, que na véspera tinha degradado o rating da Irlanda para o nível de “lixo”, trouxe uma nota de alívio. Disse que a situação económica italiana é “relativamente estável”, não há razão fundamental para que seja contagiada pela crise grega, o Tesouro italiano tem “uma grande margem de manobra” e, portanto, o pagamento da dívida “é perfeitamente gerível”.

Na quinta-feira, o diário La Stampa fazia o ponto da situação: “Com o plano de saneamento aprovado pelas câmaras [do Parlamento] a toda a pressa, passará a borrasca. Mas a Itália continuará sob observação. Nos mercados financeiros, tal como na vida quotidiana, a confiança rapidamente se perde e só penosamente se reconquista.”

Todas as crises da dívida têm em comum uma coisa chamada credibilidade. Não basta à Itália ter a uma situação económica melhor do que as de Portugal, da Grécia ou da própria Espanha. Confronta-se com um grave problema — a falta de crescimento. A elevadíssima dívida externa não foi até agora explosiva porque é principalmente detida por italianos. Mas a estagnação potencia o risco da divida, tornando a Itália extremamente vulnerável.

O ministro das Finanças, Giulio Tremonti, tinha elaborado um plano de saneamento financeiro, visando a redução drástica do défice orçamental até 2014, através de cortes na despesa e sobretudo do aumento das receitas fiscais. O projecto ia ser apresentado ao Parlamento. A “comédia italiana” que o envolveu foi o detonador da “sexta-feira negra”.

O pânico

O pânico na Bolsa de Milão foi desencadeado pela incerteza política. O Financial Times noticiou com rigor: “O governo do centro-direita é o alvo de uma nova ofensiva dos mercados pois os investidores temem que a coligação de Silvio Berlusconi — enfraquecida por escândalos e lutas intestinas — possa perder a determinação de aplicar um rigoroso plano de austeridade.”

As propostas de Tremonti foram criticadas, como injustas ou como insuficientes, pela oposição e por diversos economistas. Não é o que aqui interessa. Berlusconi nunca gostou da ideia da “austeridade”. Toda a sua carreira assentou em vender promessas. Foi Tremonti que, sob pressão da crise grega e do medo de contágio, lhe forçou a mão.

A seguir às derrotas da aliança de Berlusconi nas eleições regionais de Maio e nos referendos de Junho, o Cavaliere deu a entender que era politicamente prioritário “abrir os cordões à bolsa”. E, na véspera do pânico na Bolsa de Milão, deu a entender que o projecto da lei seria substancialmente alterado — leia-se, esvaziado. Os “mercados” tomaram nota.

Junho começou com uma sequência fatal. Berlusconi foi “fulminado” por uma sentença judicial: a sua holding, a Fininvest, deverá pagar 560 milhões de euros de indemnização ao seu “inimigo de estimação”, Carlo de Benedetti, devido à disputa do grupo Mondadori (edição), em 1991. A sentença confirma que, para se apoderar da Mondadori, Berlusconi corrompeu um juiz. O crime prescreveu mas não a responsabilidade civil.

Também Giulio Tremonti viu a sua posição enfraquecida. O seu conselheiro Marco Milanese foi preso, por um juiz de Nápoles, sob suspeita de participação num “esquema de fraude fiscal”. Num ajuste de contas, Il Giornale, um diário propriedade da família Berlusconi, proclamou na primeira página que era Milanese quem pagava a renda do apartamento de Tremonti em Roma.

O banco de investimento Morgan Stanley observou num relatório: “Há especulações nos jornais italianos sobre um novo pico no conflito entre Silvio Berlusconi e Giulio Tremonti, notícias que veriam o ministro pronto a apresentar a demissão e o primeiro-ministro pronto a aceitá-la. Dada a alta reputação de que goza Tremonti (e a debilidade de Berlusconi perante a comunidade internacional), se a notícia se confirmar em nada ajudará a Itália, sobretudo num momento tão delicado.”

Antes do “elogio” de quarta-feira, a Moody’s passara de “estável” para “negativo” o rating italiano, dado o clima de incerteza política.

Intriga palaciana

A rivalidade entre Tremonti e Berlusconi remonta ao fim do ano passado. O ministro das Finanças foi o esteio do governo enquanto o Cavaliere se debatia com a mediatização dos seus escândalos privados. A expulsão, em Julho, de Gianfranco Fini do partido de Berlusconi — Povo da Liberdade (PdL) — abriu um período de instabilidade, pois a coligação governamental perdeu a maioria absoluta.

Dentro do PdL surgiram manobras para procurar uma alternativa ao Cavaliere. O nome de Tremonti emergiu como a mais forte hipótese. Tinha a vantagem de ser um bom interlocutor para o Presidente Napolitano e para oposição. E, como “homem da Lombardia”, tinha o apoio da Liga Norte, de Umberto Bossi.

Berlusconi não o pôde afastar do governo. Para tornear a questão, nomeou um sucessor para a liderança do partido — Angelino Alfano, ministro da Justiça e autor da lei que lhe assegurou a “blindagem” judicial, lei entretanto inutilizada pelo Tribunal Constitucional.

“Para a Itália, o risco não deriva de Atenas mas de si própria e da incapacidade de se defender enquanto sistema”, sintetizou um editorialista. Uma desautorização do ministro das Finanças pelo chefe do governo, em clima de crise, é coisa fatal. “Do ponto de vista nacional, é um suicídio. Destrói a credibilidade”, escreveu Bill Emmott, antigo director da Economist, que acompanha de perto a política italiana. “O aspecto mais crítico da política económica do país, a rigorosa gestão do défice orçamental, é posto em séria dúvida.”

Enquanto “a Bolsa ardia”, Berlusconi amuou com a sentença do caso Mondadori, fechou-se na sua mansão de Arcore e desapareceu de cena. Só interrompeu o silêncio na segunda-feira à noite, após o telefonema de Merkel. Na versão oficial, a chanceler quis solidarizar-se com a Itália e apoiar decisivamente o plano de saneamento. De facto, a mensagem foi lida como uma advertência a Berlusconi, um “firme convite” a não cair na tentação de esvaziar o plano ou de o meter na gaveta depois de aprovado.

“É um sinal de quão profunda é a crise actual e de quão limitadas são as opções de uma Itália, parcialmente sob tutela europeia”, observou o economista Mario Deaglio. A mesma interpretação é feita por Stefano Folli, editorialista do diário económico Il Sole 24 Ore: “As palavras politicamente mais impressivas, dirigidas ao executivo mas, no fundo, ao Parlamento inteiro, vieram da chanceler alemã e não de um expoente da nossa classe política. É surpreendente e inquietante.”

Enquanto o Cavaliere se eclipsava, o Presidente Napolitano assumia o controlo da situação, apelando à responsabilidade, à unidade nacional e ao “espírito bipartidário”. A Itália entrou em “emergência”. A oposição — que tencionava fazer adiar para Setembro a aprovação do plano Tremonti — comprometeu-se a não fazer obstrução, assegurando a sua rápida votação até sexta-feira 15, dia da revelação do resultado do “exame de stress” aos bancos italianos e antes da abertura das Bolsas, amanhã.

“Tempestade perfeita”

Tremonti parecia isolado mas explorou rapidamente a mudança do vento. Segundo La Repubblica, teria lançado um ultimato ao partido: ou dentro de seis meses se aprova um plano de liberalização e de privatizações, para relançar o Produto Interno Bruto (PIB), ou bate a porta. Perante uma assembleia da Associação Bancária Italiana, garantiu que as medidas de rigor seriam reforçadas. “Tudo o que causou a crise permanece presente. Nada do que se deveria fazer foi ainda feito. Faltam novas regras.” Foi apoiado por Mario Draghi, presidente cessante do Bankitalia e próximo chefe do Banco Central Europeu. “Sem mais cortes, serão inevitáveis novos impostos.” E sublinhou a urgência de reformas estruturais.

A Itália, escreve Deaglio, encontra-se sob uma “tempestade perfeita” — simultaneamente financeira, económica e política. “É ilusório pensar em tratar uma destas dimensões sem tratar as outras; e sem ter em conta que, na realidade, o ataque especulativo que envolve a dívida pública italiana e a Bolsa italiana poderá ser o ponto alto de um embate mais vasto entre o euro e o dólar, numa situação de forte desordem monetária mundial.”

Para lá da antecipação de medidas programadas para 2013-14 e da adopção de um plano de privatizações, Deaglio sublinha a urgência de um novo “pacto social”, repartindo os sacrifícios “entre capital e trabalho”, à imagem do pacto acordado entre os industriais e as principais confederações sindicais alemãs, “que contribuíram para o forte relançamento da economia da Alemanha”.

A aprovação do plano Tremonti abalará os actuais equilíbrios partidários, designadamente na maioria, e os equilíbrios parlamentares. Em plena crise financeira, ninguém ousa propor eleições antecipadas para clarificar a cena política. Para já, a UE e “os mercados” querem um quadro político estável. Fala-se num “governo técnico”, que Napolitano poderia incentivar. Cita-se o nome de Mario Monti, ex-comissário europeu e presidente da Universidade Bocconi, de Milão. De momento, são especulações e cenários. Apesar de se ter tornado no primeiro factor de incerteza política, Berlusconi não irá voluntariamente para casa.

Desindustrialização

A razão “estrutural” da vulnerabilidade italiana é uma taxa de crescimento próxima do zero. Em Outubro de 2010, El País publicou um artigo com um título sugestivo: “A década perdida de Itália e Portugal.” Com base em dados do FMI, traçava a evolução do PIB de 180 países na primeira década do século. A Itália ocupava o 179º lugar na escala do mau desempenho, apenas superada pelo Haiti e logo abaixo de Portugal. O PIB italiano aumentou 2,43 por cento entre 2000 e 2010 — o de Portugal cresceu 6,47. Para 2011, a Itália prevê um “salto” de 0,9.

A competitividade continua a baixar. A desindustrialização avança. A capacidade de poupança, das mais altas da Europa, começa a declinar. “Ou a Itália se decide a afrontar depressa os verdadeiros problemas, atacando as situações de renda e cortando as ineficiências, ou jamais o fará”, adverte o economista Paolo Annoni. “Um devedor empobrecido é um devedor a quem será cada vez mais difícil pagar.”

Avisava em 2005 o economista Marco Leonardi: “O aumento da produtividade foi mais alto na Alemanha, enquanto os salários nominais alemães cresceram menos que os italianos, porque a nossa inflação é superior. Muito mais insólita e preocupante é a perda de competitividade do nosso país em relação aos vizinhos.”

O quadro continuou a degradar-se. E Berlusconi optou por estratégia de inércia para não ferir interesses. “A única decisão importante que este governo, o quarto governo de Berlusconi, se deu ao trabalho de tomar foi a decisão de nada decidir”, explicou em Dezembro de 2010 o economista Tito Boeri. “Há dois anos, quando a crise financeira abalou o planeta, a escolha de Berlusconi foi evitar qualquer decisão política destinada a contrariar a Grande Recessão. Isto contribuiu para a mais importante queda da produção desde o pós-guerra na Itália e para um declínio acumulado de 6,5 por cento no PIB. Entre os países da OCDE, só o Japão fez pior.” Não só agravou a queda do PIB como provocou uma quebra sensível no rendimento dos italianos.

O caso Fiat é emblemático. Em 2009, a companhia de Turim adquiriu uma parte da Chrysler, em estado de virtual falência após a crise financeira americana. Hoje, a Fiat é maioritária e as duas marcas preparam a sua fusão. O desígnio é transformar a multinacional italiana numa “companhia global”. Em 2010, o administrador-delegado, Sergio Marchionne, lançou o projecto Fabbrica Italia, que supunha um investimento de 20 mil milhões de euros em Itália até 2014. Em troca exigia flexibilidade e garantia da governabilidade dos estabelecimentos fabris.

Não se propõe ganhar competitividade baixando salários. Não pensa na China, quer “as regras alemãs”. Os aumentos de produtividade traduzir-se-iam em aumentos salariais sustentados. A governabilidade passa por acordos com os sindicatos sobre turnos e trabalho extraordinário, condição de competitividade. Marchionne não aceita que o ritmo de produção fique dependente de “greves oportunistas” lançadas por sindicatos minoritários.

Uma das federações metalúrgicas, a FIOM, recusou a flexibilidade. Marchionne fez acordos com as outras federações e submeteu-os a referendo nos vários estabelecimentos — tal como fizera nos Estados Unidos. A FIOM contestou-os em tribunal. O governo não se mexeu. Sem garantia de governabilidade, a alternativa da Fiat será a deslocalização — um passo mais na desindustrialização e, desta vez, envolvendo o máximo símbolo da indústria italiana.

“Marchionne constatou que o país está em declínio”, observa o economista Fabiano Schivardi. “Dispõe de um observatório privilegiado, podendo confrontar a produtividade do nosso sistema com a dos outros países que conhece directamente pelo trabalho.”

A fábula do lixo

Em finais de 2007, a imprensa internacional redescobriu Nápoles, assim descrita nas primeiras páginas: “A fétida cidade”, “A cidade do esterco”, “A Camorra reina sobre o lixo.” O lixo deixara de ser recolhido por já não haver onde o despejar. O Exército foi chamado para retirar as montanhas de detritos da proximidade das escolas e hospitais. A reabertura de velhas lixeiras provocou confrontos entre os moradores e a polícia.

O problema remonta a 1994, quando teve de ser decretado o estado de emergência na cidade. Em 2011 continua agudo. A região de Nápoles produz mais detritos domésticos do que aqueles que pode tratar e enterrar. Mas o quadro é pior. Tornou-se a “esterqueira de Itália” para onde outras regiões enviam o seu lixo e não um lixo qualquer: sobretudo resíduos industriais, muitos deles tóxicos e que não são tratados. Toneladas e toneladas de veneno foram enterradas ou lançadas ao mar.

Quem organiza este tráfico é a Camorra, a máfia napolitana. O negócio rendia-lhe anualmente dez mil milhões de euros, um valor próximo do rendimento do tráfico de cocaína. Os camorristas organizavam deliberadamente o caos, impedindo a recolha de lixo, para valorizar as lixeiras por si controladas, muitas delas ilegais. Para lá da catástrofe sanitária e ecológica, estas crises revelam a outra Itália, a da malavita, do culto da ilegalidade, da impotência do Estado — do governo, das regiões, dos municípios.

A crise de Nápoles expôs — uma vez mais — a Itália da economia paralela, das “fábricas em vão de escada”, onde milhares de imigrantes trabalham sem qualquer protecção ou fiscalização, tutelados pelas máfias, fora de qualquer lei. Nestas oficinas de Nápoles produz-se, por exemplo, para a alta costura italiana, como o revelou o jornalista Roberto Saviano, no romance “Gomorra”.

Observou então o magazine L’Espresso: “O nosso país, com os seus clientelismos, a corrupção, a ineficácia do seu aparelho público, a evasão fiscal, etc., permanece exactamente o mesmo. O resto do mundo é que mudou, sem que a classe política se aperceba.” A Itália descobria que precisava de ser governada.

As reformas

Os políticos italianos são especialistas na imaginação de reformas, grandes desígnios longamente debatidos e depois esquecidos. Na segunda metade do século XX, a instabilidade política e a relativa fraqueza do Estado — apesar de parecer tentacular graças a um vasto sector público — eram compensadas pela dinâmica da sociedade civil.

Hoje, a sociedade está “deprimida” e reclama reformas, mas o sistema político não responde. A questão da competividade ou das reformas do mercado de trabalho são inesgotavelmente debatidas desde os anos 1990, quando a indústria italiana começou a tomar consciência do declínio. Pouco foi feito. As mudanças acontecem “de facto”, à deriva, consoante a relação de força nas empresas. A primeira vítima desta paralisia são os jovens sem emprego. O mesmo se poderia dizer de questões como o federalismo, a questão meridional, a função pública.

O politólogo Luca Ricolfi publicou em 2007 um curioso livro intitulado A Arte do Não Governo, em que passava em revista a sucessão das reformas falhadas e as relacionava com o estilo da política italiana. “Admiráveis artistas do não governo regem a sorte do país, fingindo contínua e desesperadamente fazer, decidir, governar, mas na realidade procurando apenas esconder que estamos parados, imóveis, vítimas de um cruel encantamento.”

Desta vez será diferente, garantem. Para já, o plano Tremonti foi aprovado e com medidas mais duras. Quando a Bolsa “arde” as coisas tornam-se sérias.

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