Cientistas reconstroem genoma da peste negra
A peste negra foi causada por uma estirpe da bactéria Yersinia pestis. Os registos históricos indicam que a infecção veio da China e apareceu primeiro na região entre o mar Morto e o mar Cáspio, em 1346. Rapidamente, as rotas comerciais pelo Mediterrâneo transportaram ratos com as pulgas infectadas com a doença para o resto da Europa.
Morreram cerca de 50 milhões de pessoas. Em Londres, foi necessário construir mais dois cemitérios fora da muralha da cidade para as 200 pessoas que morriam a cada dia. A equipa de Hendrik Poinar, da Universidade de McMaster, Canadá e de Johannes Krause, da Universidade de Tübingen, Alemanha, recolheram informação a partir de cinco esqueletos de um cemitério antigo desta cidade que foi escavado na década de 1980.
O processo foi complexo. “Se se partir um dente antigo, vê-se um pó escuro e muito provavelmente isso é sangue e outros tecidos biológicos secos”, explicou Kirsten Bos, que trabalha na universidade alemã e integrou esta investigação. “O que fiz foi abrir a zona da polpa [onde o dente é irrigado por vasos sanguíneos] e com uma broca perfurei uma passagem para retirar cerca de 30 miligramas de material, essa pequena porção foi o que utilizei para fazer o trabalho do ADN”, disse, citada pela BBC News.
A partir deste pó, os cientistas conseguiram isolar 98,68 por cento do ADN da bactéria Yersinia pestis. “Esta informação genómica mostra que esta variante, ou esta estirpe, é a antepassada de todas as pestes modernas que existem em todo o mundo. Todos os surtos que acontecem no mundo derivam de um descendente da peste medieval.”
Antes da peste negra existiram mais duas grandes pandemias de peste. Uma delas, a praga justiniana, do século VI depois de Cristo, terá morto 100 milhões de pessoas. Mas a estirpe responsável é de um ramo diferente da que causou a peste negra, e das que existem hoje, e nunca mais foi encontrada.
A Europa continuou a ser recorrentemente afectada pela peste nos séculos seguintes até que, de alguma forma, a partir do século XIX, o velho continente deixou de ser afectado. Mas o genoma da peste negra e os genomas das estirpes de bactérias que hoje ainda afectam parte importante do globo não têm muita diferença.
“Houve relativamente poucas mudanças no genoma do antigo organismo, mas essas mudanças, mesmo que pequenas, podem ou não ser responsáveis pela grande virulência da bactéria que devastou a Europa”, disse em comunicado Hendrik Poinar.
Dois milhares de pessoas continuam a morrer todos os anos graças à doença, que pode ser transmitida por pulgas ou por roedores, mas a gravidade é incomparável à pandemia histórica, e ninguém consegue dar uma explicação robusta para a diminuição de virulência.
Segundo Johannes Krause, é possível ter acontecido fenómenos evolutivos que expliquem esta situação. Como o desenvolvimento de mutações que tornem os seres humanos mais resistentes à bactéria, ou então ao longo dos sucessivos surtos acabaram por sobreviver as pessoas que naturalmente são mais resistentes à peste.
“Alguns cientistas acreditam que a mutação delta 32 no gene CCR5, que torna as pessoas resistentes ao VIH [o vírus da sida], surgiu na altura da peste medieval, mas a verdade é que não sabemos”, disse o cientista ao PÚBLICO por e-mail. “Não podemos subestimar as mudanças culturais, as pessoas aprenderam a lidar com a praga [utilizando] por exemplo a quarentena, os médicos [que tratavam] a peste conheciam melhores [regras de] higiene, etc. Também pode ter acontecido mudanças na biologia das ratazanas, das pulgas ou dos humanos.”
Tentar perceber como é que a peste evoluiu no sentido de ser mais benigna vai ser o próximo passo da investigação. Mas a reconstrução do genoma de uma bactéria antiga, por si só, abre portas para o estudo da arqueologia das doenças. Para Krause esta metodologia permitirá saber mais sobre o genoma das bactérias patogénicas históricas, o que vai ajudar a compreender a evolução das infecções humanas e das pandemias do passado.