E no início era o yé-yé

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Joaquim Costa "O Elvis" de Campolide Foto: DR

Daniel Bacelar tinha guitarra, mas não estava ali para tocar. Ali, nos estúdios da Rádio Renascença, ano 1960. Sala cheia, com dezenas de músicos e aspirantes a músicos, todos muito jovens, acompanhados pelos profissionais que faziam o programa Clube das 10. Estavam ali para participar no Caloiros da Canção, um concurso idealizado por Pozal Domingues, da Valentim de Carvalho, para estimular a criatividade juvenil e, naturalmente, desencantar alguns talentos para a editora. Entre eles, estava então Daniel Bacelar, de 17 anos. Ele, José Manuel Concha e Fernando Gaspar, duo a caminho da fama enquanto Conchas (chamaram-lhes os Everly Brothers portugueses), e o amigo que levara Bacelar aos estúdios. "Vou até à Renascença para um concurso. Aquilo vai estar cheio de malta. Não queres ir lá apoiar-me?", perguntara-lhe horas antes o colega das aulas de guitarra.

Meio ano antes, aquele cenário seria impensável. "Eu era mais da banda desenhada, do Hergé e do Mortimore", conta Bacelar. Mas tinha uma correspondente americana "para treinar o inglês", como era habitual na altura, e a pen friend enviou-lhe certo dia o EP de um tipo chamado Ricky Nelson. Lado A, Lonesome town. Lado B, I got a feeling. A guitarra ganhou a dianteira à BD e ali estava Daniel Bacelar, 17 anos, a cantar Lonesome town nos estúdios da Renascença, só para passar o tempo. Acontece que o ouviram de passagem e gostaram da pinta dele. Arranjou-se espaço para o concorrente inesperado e, 15 dias depois, Daniel Bacelar atendeu o telefone em casa para ouvir um inesperado "Você ganhou". Estava a caminho de se tornar no "Ricky Nelson português". Preparava-se para fazer história sem o saber.

Ganhara o concurso enquanto "revelação" e partilharia com os Conchas, vencedores na categoria "conjuntos", o EP Caloiros da Canção. Que seria editado a 28 de Outubro de 1960 e inauguraria a discografia rock"n"roll portuguesa. No lado A, Fui louco por ti e Nunca, originais de Bacelar. No Lado B, os Conchas com Oh! Carol, versão portuguesa para o original de Neil Sedaka, e Quero o Teu Amor, trabalho sobre Should we tell him, dos Everly Brothers.

Daniel Bacelar estava no sítio certo à hora certa, com a voz e a postura ideal para representar algo de novo que nascia debaixo do sol português. Nos anos imediatamente seguintes, ele, as super-estrelas Conchas, Zeca do Rock, o homem dos sonoros yeah, o selvagem Vítor Gomes, Fernando Conde e Os Electrónicos ou Nelo do Twist fariam eco do som de um corte geracional. Chamavam-lhe rock"n"roll na América onde nasceu. Cá, chamaram-lhe, e assim definiram os anos 60 em Portugal, yé-yé.

No início da década, não passariam de dezenas de grupos, convivendo com a velha guarda da geração anterior apegada ao swing, à música latina ou francesa e fiel ao "velho nacional-cançonetismo". A meio da década, já eram centenas os conjuntos que pegavam em guitarras e levavam electricidade aos palcos disponíveis. "No espaço de poucos anos, passa de não haver nada a haver tudo", conta o jornalista Luís Pinheiro de Almeida. Em 1961, com 14 anos, Luís viu os Conchas actuar numa Queima das Fitas em Coimbra e ainda tem um autógrafo para o provar. Cinco anos depois, quando já tinham irrompido mundo fora uns rapazes de Liverpool que levam Ana Maria Delgado, do Conjunto Universitário Hi-Fi e a única presença feminina do yé-yé português, a exclamar "Beatles, Beatles e mais Beatles", poderíamos vê-lo entre o público que, certo dia, invadiu o palco do Cinema Monumental, em Lisboa.

Vítor Gomes, o supremo rocker, e os seus Gatos Negros, todos vestidos de rebeldia em cabedal negro, fizeram o que lhes competia. Deram rock à multidão e a multidão saltou, deitou a euforia cá para fora e acabou tudo a ser expulso e perseguido por "barrigudos de fato cinzento", ou seja, a polícia do Estado que pendurava avisos nas cortinas do cinema: "A juventude pode ser alegre sem ser irreverente."

Uma vaga país fora

Era isto tudo? Não havia Cavern ou Marquee, antes bailes de finalistas e outros bailes em associações recreativas. Digressões? Ninguém sabia o que eram. Quando muito, podia arranjar-se um contrato para acompanhar país fora a exibição de um filme musical, como Mocidade Em Férias, com Cliff Richard - actuação ao intervalo e no final. E discos? Raros e raramente apostando mais que o formato single ou EP. Condições precárias, mau material e uma ditadura castradora que tentava por todos os meios tornar o mundo lá fora um lugar distante.

O rock"n"roll podia ter aqui tudo contra si, mas ninguém o pararia. Foi como uma vaga a espalhar-se pelo país. Comunicava-se uma sensação, um sentido de libertação. O próprio som, a possibilidade de o exprimir, era suficiente. Quem estava em Coimbra não sabia necessariamente o que se passava em Lisboa. Quem estava em Lisboa, no Porto ou em Loulé não sabia que existia um fantástico Conjunto Académico João Paulo a fazer furor na Madeira - souberam-no depois, quando a banda que gravaria Hully Gully do montanhês em 1965, canção maior do rock"n"roll português, ganhou um concurso local e, com ele, um bilhete para o continente.

Cinquenta anos depois, Luís Pinheiro de Almeida é o director artístico de Caloiros da Canção, duplo CD agora editado onde se compila o que aconteceu desde que não havia nada até haver tudo. São 29 canções, do EP fundador de Conchas e Daniel Bacelar, àquilo que se seguiu: Conjunto Mistério, Os Tártaros, Álamos, Sheiks, Quinteto Académico, Demónios Negros ou Conjunto Académico João Paulo. A primeira história do rock português, praticamente duas décadas antes de, ignorando a cronologia das coisas, lhe terem inventado um pai chamado Rui Veloso.

Tudo começou, portanto, assim: "Os estúdios eram na Costa do Castelo, no antigo Teatro Taborda", descreve Daniel Bacelar. "Foi totalmente remodelado há uns anos, mas na altura... Cheio de buracos, com ratazanas a passar de um lado para o outro. O senhor [Hugo] Ribeiro, o técnico de som, lá montou tudo na cabine de gravação, que era no palco." E Bacelar gravou. Aos soluços, mas gravou: "Havia um relógio numa torre ali perto que dava o toque de meia em meia hora, o que nos obrigava a parar" para não estragar a gravação. Parando quando o relógio se ouvia, obrigado a interromper a sessão caso passasse um avião, Daniel Bacelar gravou as duas canções do seu primeiro EP. Ficava registada para a posteridade o início de uma história que, na realidade, começara antes.

Dia 21 de Outubro de 1956. O Cinema Capitólio, no Parque Mayer, preparava-se para acolher algo que surpreenderia os menos atentos - que eram praticamente todos os que tinham mais de 30 anos à data. O Ritmo do Século, Rock Around The Clock, no título original. Bill Haley & His Comets no grande ecrã: One, two, three o"clock, four o"clock rock! Foi esse ritmo, o de Bill Haley em jukebox, o de Bill Haley transposto para o cinema em Sementes de Violência (Blackboard Jungle, de Richard Brooks), estreado um ano antes de Rock Around The Clock, que se tornaria catalisador da explosão. Verdadeiramente irresistível, a julgar pelo relato do Diário Popular à estreia de Ritmo do Século, citado em "guedelhudos.blogspot.com", blogue dedicado ao yé-yé mantido por Luís Pinheiro de Almeida: "O filme causou verdadeira revolução nos nervos dos espectadores - alguns dos quais, mais exuberantes, chegaram a dançar nos corredores durante o intervalo - facto talvez único nos anais do Cinema Capitólio."

Há alguns anos, Joaquim Costa, o Elvis de Campolide, autor daquele que é considerado o primeiro registo gravado do rock português - um single com Rip it up e Tutti frutti, gravado na Rádio Graça em 1959 mas que conheceu edição comercial apenas em 2007, um ano antes da morte do seu autor -, contou-nos como a música se atravessou na sua vida. Numa jukebox no Parque Mayer, ouviu um som diferente, enérgico, e sentiu "uma injecção de adrenalina" como nunca sentira antes. A canção, adivinharam, era Rock Around The Clock e a vida de Joaquim Costa mudou a partir daí. Como, aliás, a da maioria dos seus companheiros de geração.

Mas não a de José Manuel Concha, que assistiu à estreia de Ritmo do Século. E não a de José das Dores, o Zeca do Rock. Eles já sabiam o que se passava. "Já acompanhava os Everly Brothers, o yé-yé, o pop e o rock"n"roll quando apareceu o Sementes de Violência", conta Concha, que celebra este ano cinco décadas de carreira - Fernando Gaspar, seu companheiro nos Conchas, morreu em 1998. "O aparecimento do rock constituiu mais um passo dentro de uma sequência evolutiva natural", explica Zeca, hoje a viver no Brasil, há muito afastado profissionalmente da música, mas a quem chamavam à época "Elvis Presley português". Ele que ouvia música latino-americana e italiana, que ouvia o blues e a country, vê essa explosão rock inicial como "a tomada de poder da geração dos baby boomers": "Uma tomada de poder pela força da música e não das armas", precisa - com o James Dean de Fúria de Viver como modelo e guitarras eléctricas como banda sonora, acrescentamos nós.

Arranhados pelas raparigas

Centremo-nos em José Manuel Concha. Adolescente, foi expulso do colégio "por dar uma cabeçada num gajo e partir-lhe os dentes da frente" - "não usávamos pistolas nem navalhas, eram murros e olhos roxos". O pai queria que seguisse advocacia, mas Concha tinha outros planos. Estudante de liceu e médio de ataque nas camadas jovens do Sporting, conheceu Fernando Gaspar, que rapidamente se tornaria Fernando Concha, no mundo do futebol - Gaspar jogava no Oriental. Ambos tocavam guitarra e tinham especial talento para harmonizar as vozes. Já oficialmente, Os Conchas concorrem aos Caloiros da Canção, ganham-no e o sucesso é tal que, nos anos seguintes, estavam por todo o lado.

Rádios e revistas deram-lhes prémios de popularidade em 1960, 1961 e 1962. Numa altura em que a gravação de discos era difícil e racionada, Os Conchas, com as suas versões em português de sucessos de Neil Sedaka, Nat King Cole, Everly Brothers, Chubby Checker, Richie Valens ou Paul Anka, editam nada menos que sete EP. "Uma vez saímos quase nus do Éden, depois de um espectáculo", recorda Concha. "Estavam à espera da nossa saída na entrada principal, mas nós saímos por outra porta, onde tínhamos um carro à espera. Ainda corremos, mas viram-nos e apanharam-nos. Fomos todos arranhados pelas raparigas, ficámos sem gravata e sem roupa."

O rock"n"roll, o twist e o yé-yé começavam a revelar uma nova mentalidade, novos valores, uma mudança no castrador puritanismo da época. As palavras, elucidativas, são de Zeca do Rock, cantor de Sansão foi enganado ou de Twist para dois, um rocker de voz sonora e swingar bem gingado: "A sensualidade é a mola real da vida adolescente. Agora e sempre. Por que acha que nos lançámos nessa carreira? Para agradar ao Senhor Prior ou para levar umas centenas de garotas ao "castigo"?" Tudo devidamente dissimulado, porque, como recorda Daniel Bacelar, "as raparigas não andavam para lado nenhum sem as mães e as tias, autênticos paus-de-cabeleira".

O yé-yé foi ocasionalmente repescado para o cinema e para a televisão (Zeca do Rock participou em Pão, Amor... Totobola, de Henrique Campos), teve presença na rádio em programas seleccionados e até se mostrava em palco de revista: Daniel Bacelar lembra-se de ver Vítor Gomes e os Gatos Negros, recém-regressados de Moçambique, onde se fundaram, a tocar I go ape, de Neil Sedaka, na revista Lisboa à Noite.

O yé-yé permitia até a alguns saborear as delícias de um estrelato bem remunerado. José Manuel Concha conta que, com dinheiro ganho no duo, comprou aos 20 e poucos anos um carro por "48 contos" e "um andar na Linha por 110".

Mas este país era este país com uma ditadura em cima e o divertimento da juventude e os artistas da juventude, utilizando palavreado da época, não podiam desviar a nação das prioridades. Os adolescentes que pegaram em guitarras, baixos e baterias, não tardariam, uns após outros até 1974, a trocar de "instrumento", com a guerra colonial como seu destino.

José Manuel Concha e Fernando Gaspar tinham contratos assinados para temporadas em Espanha e no Brasil, mas estavam em idade militar. Logo, foram impedidos de sair. Passado algum tempo, ofereceram-se para ir a Angola actuar perante os militares portugueses. Durante três meses, viajaram em aviões da Força Aérea, "em cima de sacos de batata e caixas de alumínio com bacalhau", para chegar aos soldados. No regresso a Portugal, nova ordem de partida, prémio amargo pelo voluntariado. Separaram-nos: "Eu fui mobilizado para a Guiné e o Fernando para Moçambique." Na imprensa, titulou-se "Até os Conchas vão para as colónias lutar". Dado o sucesso do duo, que acabou então, era boa propaganda a favor do esforço de guerra do regime. Pois se até os Conchas iam, como foi também Zeca do Rock...

"Beatles, Beatles e mais Beatles"

A entrada em cena dos Beatles modificou o cenário musical português. Se antes existiam rockers à anos 1950, acompanhados por bandas eclécticas de uma geração anterior, como o Conjunto Jorge Machado; se depois deles, os instrumentais à Shadows foram reis, muitas vezes vertendo para guitarra eléctrica a música tradicional portuguesa (fizeram-no bandas como o Conjunto Mistério, os Titãs ou os Blusões Negros), a partir do momento em que She loves you, yé! yé! se faz ouvir, completa-se a passagem de testemunho geracional. Os Fab Four chegavam, e em força. Num ápice, resume Pinheiro de Almeida, os "Shadows portugueses transformaram-se nos Beatles portugueses". E no Monumental, em Lisboa, montou-se o Grande Concurso Yé-yé, "o" evento pop português da década de 1960, dividido por dezenas de sessões entre Agosto de 1965 e Abril de 1966.

Dos Sheiks de Paulo de Carvalho e Carlos Mendes, os Beatles portugueses, aos angolanos Rocks, de Eduardo Nascimento, que pouco depois venceria a Eurovisão com O vento mudou; dos Ekos de Esquece, versão de Hold me, de PJ Proby, que se tornou num clássico, aos Jets, cujo EP Let Me Live My Life é um dos pontos altos da discografia do período, quase todos passaram pelo concurso. Aquele ano de concertos no Monumental, num palco por onde passaram na década de 1960 os Animals, os Searchers ou Sylvie Vartan, foi um grande mostruário do país yé-yé, com berraria e euforia a condizer. O Portugal yé-yé ele mesmo, a realidade quotidiana das bandas, essa, como se verá, era algo diferente.

"Infelizmente, tínhamos de ter na manga algumas coisas mais parolas, umas marchinhas de Carnaval, uns tangos..." Quem o diz é José Luís Veloso, baixista dos Álamos, uma das mais famosas e duradouras bandas de Coimbra.

"Num baile, enquanto a banda tocava um instrumental, um rapaz pede-me para dançar, pergunta-me se estava a ver o conjunto e começa a dizer-me que aquilo era uma vergonha. "Uma rapariga a cantar com os malucos das guitarras"." A rapariga que dançava era também a rapariga que cantava naquele grupo, o Conjunto Universitário Hi-Fi, banda conimbricense onde encontrávamos Carlos Correia, de alcunha Boris, que em 1970 substituiria Rui Pato no acompanhamento a José Afonso.

"Nos bailes, havia sempre dois ou três conjuntos pelo menos. O Thilo"s Combo [de Thilo Krassman], o Shegundo Galarza [histórico maestro português de origem basca], e depois nós, os Sheiks e os Chinchilas [do virtuoso guitarrista Filipe Mendes, hoje conhecido como Phil Mendrix]". Assim o recorda José Manuel Fonseca, saxofonista e clarinetista do lisboeta e multinacional Quinteto Académico, uma das mais prestigiadas bandas do período, verdadeira roda-viva de músicos que privilegiava a soul e o blues americanos à pop beatlesca.

No yé-yé português, ninguém parecia verdadeiramente convicto de que havia ali, naqueles grupos formados por músicos autodidactas entusiasmados com a elecricidade do rock, uma carreira de futuro. Interessava-lhes mais o presente. Um presente vivido com a sofreguidão da adolescência.

Os Álamos, que atravessaram toda a década de 1960, não queriam saxofones ou outros instrumentos conotados com a "velha guarda", que consideravam foleiros: "Tudo o que fugisse à guitarra eléctrica cheirava a pó de arroz velho." Eram "rockeiros espontâneos", a aprender uns com os outros e a sacar as letras à volta de gira-discos, com a ajuda "das miúdas de Germânicas". Eis como, explica José Veloso, se preparava a temporada de uma banda: "Os grupos juntavam-se em Setembro a preparar repertório." Despachados os exames, fechavam-se na sala de ensaios e faltavam umas duas semanas [às aulas], até ficarem tapados, "para afinar tudo". Depois, faziam-se à "estrada", que eram os bailes de finalistas, os concertos nas Faculdades ou as Queimas.

O segredo do sucesso das bandas estava, pois, na forma como interpretavam os êxitos que as pessoas queriam ouvir. Como, quais jukeboxes com espírito de DJ moderno, sentiam aquilo que excitaria o público - com intervalos a tempos regulares, naturalmente, caso contrário, a organização pediria satisfações à banda por "não ter buffets, nem ninguém a beber". José Luís Veloso passava meia hora antes de subir ao palco a sentir o ambiente. Posto isso, decidia. "Isto está muito morto, vamos ter de entrar com uma música de "arrebenta" para pôr o pessoal no ar" - e sai um Sgt. Peppers. Ou então, "estão cansados e querem coisas mais calmas para estar na marmelada" - e sai uma balada dos Platters.

Esta atitude estimulava a competição entre as bandas yé-yé e o desejo de se superarem para, nos bailes partilhados entre três ou quatro grupos, ganhar a atenção do público. José Veloso lembra-se desse frenesim quando os Álamos se deslocavam a norte e encontravam os portuenses Pop Five de Tozé Brito, ou quando baixavam a sul e se deparavam com os célebres Sheiks - o som das aparelhagens a subir cada vez mais e reitores enfurecidos a irromper salão dentro berrando que não, que assim não podia ser. Ana Maria Delgado lembra-se bem do furor das aparelhagens.

Estudante de liceu, foi um dia aos ensaios do Conjunto Universitário Hi-Fi, então conhecidos como Boys. Gostava dos Beatles, de quem sorvia a música e as fotos na capa e contracapa dos discos. Admirava a música francesa ainda em voga, a de Braessens ou Brel, a de Sylvie Vartan ou Françoise Hardy, e tinha como modelo Billie Holiday e Ella Fitzgerald. Daquele primeiro ensaio, saiu a primeira vocalista yé-yé portuguesa.

Não que ela, hoje professora universitária em Leipzig, reparasse nisso. "Foi preciso virem jornalistas falar comigo para me aperceber." Ainda assim, recorda-se do dia em que, por ter cartazes da sua banda espalhados pela cidade, foi descomposta em plena sala de aula por uma professora. Conversa pouco edificante: "Disse-me que eu era uma vergonha, que nunca seria ninguém na vida." Entrou por um ouvido e saiu por outro. A professora teria de se pôr a par do novo mundo. E esse mundo via Ana Maria a cantar Back from the shore, original de Carlos "Boris" Correia, ou I call your name, na versão dos Mamas & Papas, no homónimo EP de estreia do Hi-Fi e nos concertos que o Hi-Fi dava por Coimbra e arredores.

Um ritual de passagem

A música não era tudo. No caso de Ana Maria, era mais uma manifestação daquilo a que chama "um sentido revolucionário e romântico". É isso que vê nos anos 1960 e no yé-yé dos anos 1960 portugueses. "Tínhamos aquilo a que um amigo meu chama um optimismo terrível. Terrível porque nada nos poderia demover. Tínhamos a ditadura, mas podiam dizer-nos o que quisessem que não nos demoviam." Ela, que adorava pisar o palco e sentir o calor do palco, mas que se sentia "completamente inocente, sem qualquer noção de futuro, no sentido de oportunismo de carreira" - e a quem, confessa, incomodava "a barulheira dos amplificadores e a fumarada por todo o lado" nos bailes -, entrou na Universidade em Germânicas e virou-se para outras lutas. Quando reparou, estava a manifestar-se durantes as greves estudantis, com os cavalos da GNR a investirem, e o Conjunto tornara-se uma fase que passara. Para muitas bandas yé-yé portuguesas, a experiência musical foi isso - o pioneiro Daniel Bacelar, por exemplo, não hesitou em trocar a guitarra por uma carreira na TAP.

A José Veloso, o ruído das aparalhagens não fazia confusão alguma. Alimentava-se dele. Chegou a dar dois concertos por noite, em faculdades diferentes, tocando até sangrar dos dedos. Habituou-se, quando se mudou para o Porto, a actuar algures no país e a apanhar o comboio-correio que o levaria directamente às aulas da manhã. Lembra-se da forma peculiar de marcar umas férias no Algarve. Arranjava-se um contrato num hotel e lá iam os Álamos passar uma temporada no Savoy, de calções durante o dia e fato durante a noite, animando ingleses, alemães ou suíços. Lembra-se de tudo isso, mas nunca teve dúvidas. Os Álamos foram "uma passagem enquanto estivemos a estudar". E, no entanto, como ouvimos em Caloiros da Canção, há um riquíssimo legado que ficou.

Há O Comboio dos Álamos, incluído no primeiro EP do grupo, uma canção oferecida por José Cid, que fora em 1958 um dos fundadores dos Babies, banda de Coimbra e uma das primeiras manifestações rock"n"roll no país. Há o surf-rock dos Tártaros, as harmonias vocais dos Conchas, a classe de Daniel Bacelar ou o swing rock com alma portuguesa de Zeca do Rock. Há os Titãs a cobrir de tons psicadélicos o tradicional Mira-me Maria, Vítor Gomes como representação inexcedível do espírito rebelde do rock"n"roll ou o Conjunto Mistério a dar electricidade Shadows a Coimbra menina e moça, momentos antes de se transformar em Quarteto 1111 e começar a construir uma nova história na história da música portuguesa.

E claro, houve estrelas pop seguidas avidamente. Os Sheiks de Missing You e Tell me bird que até chegaram a Paris. Os Duo Ouro Negro que vieram de Angola para juntar a sua música tradicional aos novos sons urbanos e se tornarem, ao ritmo da Kwela, uma sensação que extravasou fronteiras. O Conjunto Académico João Paulo, que cantava Aznavour e os italianos todos e depois inventava uma pérola como Sue Lin a minha chinesa - pelo meio tornava-se no primeiro grupo português com honras de edição de um LP e o primeiro a atingir o galardão de Disco de Ouro. E esse Quinteto Académico por onde passaram mil músicos, como Pedro Osório ou vários estrangeiros, recrutados pelo fundador tornado agente do grupo, Mário Assis Ferreira: o teclista jazz Mike Carr, o baterista belga Adrien Ransy ou o escocês Mike Sergeant (os dois últimos não mais deixariam Portugal).

Para além de sucessos de top como Judy in disguise, o Quinteto Académico conseguiu construir um prestígio único à época - foram fotografados por Eduardo Gageiro, criaram música para bandas sonoras, com letras de Alexandre O"Neil, e estiveram como convidados na primeira emissão do histórico Zip Zip. Uma aventura que começou do nada, como recorda José Manuel Fonseca: "Sem bateria, que não passava de umas latas de Coca Cola, com um contrabaixo construído pelo Manuel Gouveia e uma aparelhagem que eram uns transístores de rádio."

Parafraseando Luís Pinheiro de Almeida, "do nada, fez-se muito". A última palavra a José Manuel Concha: "Os Conchas marcaram uma época. Fomos nós! É como o gajo que inventou a penicilina. Sou um dinossauro. Sou a matéria-prima viva dessa época." Uma? São várias. Os Caloiros da Canção, o sítio onde tudo começou.

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