Rajendra Pachauri: "Estão a atacar-me porque sou uma ameaça"

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Rajendra Pachauri acredita que não devemos esperar por um acordo global para lutar contra as alterações climáticas Rui Gaudêncio

Em dois anos, o presidente do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) passou do paraíso à tormenta. Em 2007, o Prémio Nobel da Paz atribuído ao IPCC - e também ao ex-vice-presidente dos EUA Al Gore - projectou-o como uma das figuras mais proeminentes no campo das alterações climáticas. Mas o próprio sucesso fez de Rajendra Pachauri, 69 anos, um alvo. O caso climategate - sobre e-mails alegadamente reveladores pirateados de uma universidade britânica - lançou dúvidas sobre a credibilidade de alguns trabalhos científicos usados pelo IPCC. Seguiu-se a descoberta de erros nos seus relatórios. E agora é o próprio Pachauri que está a ser acusado de se servir do IPCC para beneficiar outras instituições, especialmente o instituto ambiental TERI (The Energy and Resources Institute), que dirige há décadas. A tudo isto, Pachauri, que esteve esta semana em Lisboa para uma conferência na Gulbenkian, responde com uma certeza: a ciência das alterações climáticas é sólida e as suas conclusões devem ser consideradas.

Há três anos o IPCC ganhou um Prémio Nobel. Agora, temos o climategate, erros nos relatórios do IPCC, acusações contra si. O que está a acontecer?

Isto mostra a eficácia do quarto relatório de avaliação do IPCC. As pessoas estão agora preocupadas com as alterações climáticas, estão conscientes, sabem muito mais, há líderes mundiais que querem agir. É natural que haja uma reacção a isto. Há pessoas que não querem agir. Vão questionar a ciência, atacar a ciência. E vão também atacar-me, porque estou associado ao IPCC. Sim, cometemos um erro quanto aos glaciares do Himalaia, que lamentámos e aceitámos. Mas há quase três mil páginas de material científico no quarto relatório de avaliação. Um erro nega tudo o resto, todas as nossas conclusões? São conclusões sólidas e devem ser consideradas seriamente pela sociedade. Quanto ao climategate, houve duas comissões que concluíram que os cientistas não fizeram nada de errado.

Voltando ao erro sobre os glaciares. Foi um erro maior...

Não lhe chamaria um erro maior. Afinal, os glaciares estão a derreter. O que foi um erro foi dizer que desapareceriam até 2035.

Mas isto fez manchetes...

Depende do que se utiliza para fazer uma manchete. Também dissemos claramente que 500 milhões de pessoas seriam afectadas no Sul da Ásia. Ninguém fez disso uma manchete. E que 250 milhões de pessoas serão afectadas na China. Cabe às pessoas julgar o que é importante. Na minha opinião, o que é importante é que os glaciares se estão a fundir. Se vão desaparecer em 2035 ou 2050 ou 2060, não acho que seja tão importante.

Como podemos ter a certeza de que não há outros erros como este nos relatórios do IPCC?

Podemos ter os melhores cientistas, de todas as partes do mundo; todos os governos a aceitarem o nosso relatório. [Os governos] revêem-no, comentam-no, têm todas as oportunidades para ver se o que temos está certo. Mas é um esforço humano, pode haver outros erros, quem sabe. Temos de assegurar que vamos minimizar as possibilidades de erro, dentro do humanamente possível. Mas a realidade é que todas as grandes conclusões do nosso relatório são fortes, sólidas, e é nelas que o mundo deveria estar focado agora.

Alguma vez considerou renunciar à presidência do IPCC?

Nunca. Por que o faria? Fui eleito para um mandato. Fui eleito por aclamação por todos os países do mundo para concluir o quinto relatório de avaliação. Por que deveria eu submeter-me aos negacionistas do clima, fazendo o que eles querem que eu faça? Todos os governos do mundo me pediram para terminar o trabalho. Muitos líderes mundiais me apoiaram. Não vejo qualquer razão para considerar [demitir-me]. Tenho uma responsibilidade, não posso fugir a essa responsabilidade.

O que tem a dizer sobre as acusações de conflito de interesses de que tem sido alvo?

Onde está o conflito de interesses? Sou solicitado a dar conselhos científicos a governos, empresas, à sociedade civil, ao cidadão comum na rua. Se alguém me paga por estes conselhos, não fico com esse dinheiro. Dou-o a uma instituição sem fins lucrativos que está a melhorar a vida das pessoas pobres nos países em desenvolvimento [o instituto TERI]. A consultora KPMG levou a cabo uma auditoria a todas as minhas finanças, no mês passado. Não encontraram um único cêntimo que eu tenha ganho [nesses trabalhos de consultoria].

Uma das acusações é a de que está a usar o seu prestígio como presidente do IPCC para conseguir apoios para o seu instituto [TERI] e para as organizações para as quais trabalha como consultor. Não há aí um conflito de interesses?

Sou presidente do meu instituto há quase 30 anos. Quando fui eleito como presidente do IPCC, já era presidente do meu instituto. Quando fui reeleito presidente do IPCC, ainda era presidente do meu instituto. Se um professor universitário estiver a trabalhar na área das alterações climáticas e for eleito para uma posição no IPCC, deve parar de receber apoios para a sua universidade? Isto significa que tem de ir para um mosteiro e tornar-se um monge? Não sou pago pelo IPCC, recebo um salário do meu instituto. E não ando a pedir dinheiro só porque sou presidente do IPCC. Seja como for, qualquer rendimento que resulte da minha consultoria a essas organizações é uma percentagem muito, muito pequena de toda a receita do instituto. O meu instituto é uma organização sem fins lucrativos. Não é de ninguém. Ninguém faz lucros com ele. Usamo-lo para o bem público, tentamos servir a sociedade, é o que fazemos.

Tem dito que o cepticismo crescente em relação às alterações climáticas é um mero lampejo que irá passar. Por que acredita nisso?

Cada vez que se cria novo conhecimento, há pessoas que resistem, que o negam. Mas no final a verdade e a ciência triunfam. Se recuarmos no tempo, veremos que houve pessoas que foram queimadas na fogueira porque disseram que a Terra era parte do universo e do sistema solar. E havia pessoas que não queriam acreditar naquilo.

Agora vivemos na era da informação. No tempo de Galileu não havia televisão, não havia jornalistas, não havia e-mail. Hoje a aceitação será mais rápida.

Os inquéritos mostram que a mensagem dos cépticos, antes mais restrita a alguns pontos do mundo, está a espalhar-se, especialmente na Europa, tradicionalmente mais consciente do problema das alterações climáticas. Isso preocupa-o?

Há vários factores a agir. Temos um problema económico no mundo. Se alguém disser que é preciso fazer algo contra as alterações climáticas, isso torna-se naturalmente numa prioridade menor. Mas isto não vai permanecer assim para sempre. O que vemos hoje é apenas uma alteração temporária de opinião. A comunidade científica também não tem feito um bom trabalho para disseminar informação. Mas aqueles que negam as alterações climáticas têm sido muito eficazes. Recebem muita atenção, têm sido capazes de influenciar a opinião pública. O que eu gostaria de dizer é que a ciência está certa. Estamos a afectar o clima da Terra e temos de fazer alguma coisa sobre o assunto. Os impactos das alterações climáticas estão visíveis em todo o lado. E temos 100 anos de observações sobre o impacto das alterações climáticas, não é apenas ficção científica.

Os cépticos são ouvidos dentro do IPCC?

Certamente. Não os podemos ignorar porque eles são visíveis, são ouvidos em todo o lado.

O que pergunto é se os seus argumentos são avaliados integralmente para saber se são verdadeiros ou não?

Avaliamos materiais publicados onde quer que tenham sido produzidos. Se olhamos para dez publicações diferentes e concluímos que o balanço das provas é em favor de um facto que podemos apontar, então dizemo-lo. Se não conseguimos chegar a uma visão ponderada, dizemos "desculpem, mas não há provas suficientes neste ou naquele aspecto".

Há hoje uma exigência muito maior pela responsabilização da ciência das alterações climáticas. Isto não torna mais difícil o trabalho para o próximo relatório do IPCC?

Quanto ao quinto relatório de avaliação, vamos ser muito cuidadosos. Vamos trabalhar de modo a tentar eliminar qualquer possibilidade de informações erradas entrarem no relatório. Seremos muito cuidadosos quando utilizarmos factos que venham da chamada "literatura cinzenta", ou seja, da literatura sem arbitragem científica. A importância do trabalho do IPCC aumentou enormemente. Por isso, temos de ser responsáveis perante a sociedade, dando-lhe provas científicas sólidas, credíveis e substanciais.

E o que haverá de novo?

Essencialmente, vai depender da investigação que tiver sido feita desde o último relatório de avaliação. Se houver novo conhecimento, decididamente iremos utilizá-lo. E há áreas onde há novos conhecimentos.

Por exemplo?

Espero que venhamos a ter mais informação sobre os impactos das alterações climáticas a nível regional. Vamos ter mais informação sobre o papel da tecnologia. Estamos presentemente a concluir um relatório especial sobre renováveis, temos muito mais informação sobre o assunto. Deveremos ter mais informação sobre eventos extremos [como furacões, cheias ou ondas de calor]. Espero que tenhamos no quinto relatório de avaliação muito mais detalhes pelo menos nessas áreas.

O processo do IPCC é muito longo, o lapso de tempo entre o último e o penúltimo relatórios foi de sete anos. Há alguma maneira de o encurtar?

Se o encurtarmos não estaremos a permitir que a ciência e o conhecimento avancem. Publicámos o quarto relatório de avaliação em 2007. Nada mudou dramaticamente nos últimos anos. É preciso permitir que surjam conhecimentos suficientes para que o próximo relatório seja substancialmente diferente ou mais completo do que o precedente. Afinal, estamos a fazer uma avaliação do clima e não do tempo. Em segundo lugar, o nosso processo é sólido. Todo o processo leva muito tempo. Se formos por um atalho, a qualidade do relatório será prejudicada.

Para a política, não é necessário uma espécie de avaliação intermédia?

Há sempre novas evidências a surgir. Mas não se pode saltar para conclusões baseando-se em um, dois, três estudos. Temos de conduzir uma avaliação equilibrada. E isto leva seis a sete anos.

Uma das missões do IPCC era a de esclarecer o que é que seria uma contribuição humana "perigosa" para o clima. Mas ainda não chegou a esta conclusão. Chegará algum dia?

Não creio que um dia possamos chegar a essa conclusão, porque envolve juízos de valor. Considera a possibilidade de as ilhas Maldivas serem submersas pelo oceano como algo perigoso? Ou será perigoso apenas quando vastas áreas da Europa ficarem submersas? São juízos de valor. Podemos fornecer a base científica. Mas cabe aos negociadores, aos líderes mundiais, decidir o que é perigoso. A ciência pode apenas fornecer os valores que os irão ajudar a decidir. É isso que estamos a fazer.

Então faz algum sentido dizer que um aumento de dois graus na temperatura média global é razoável?

O IPCC não disse isso. O IPCC apenas diz o que teremos com dois graus, com três graus, com quatro graus [a mais]. Temos uma tabela que mostra claramente os impactos sob diferentes níveis de aumento de temperatura. Com base nisso, a sociedade pode decidir. Estou satisfeito que, no Acordo de Copenhaga, tenha sido fixado o limite de dois graus como meta. Mas a realidade é que esta é uma decisão tomada por líderes, não pelo IPCC.

Está frustrado em relação à cimeira climática de Copenhaga?

Não estou frustrado. Se olharmos para trás, para a história da Convenção da Lei do Mar, foram necessários muitos anos para se chegar a um acordo, e ainda assim nem todos os países do mundo aderiram. As alterações climáticas são um tema muito mais complexo.

Mas costuma dizer que não há tempo a perder...

Não há tempo a perder.

Mas Copenhaga representou um atraso...

Mesmo assumindo que não consigamos obter um acordo global legalmente vinculativo, acredito que a sociedade, por si só, começará a agir. E creio que isto irá conduzir à aceitação de um acordo global. Não creio que devamos ficar à espera de um tratado global. Nós, a sociedade, temos de começar a agir por nós próprios.

Nos Estados Unidos, um forte lobby está a bloquear uma lei climática no Senado. Isto é a sociedade a não fazer o seu papel? Isto pode mudar?

É uma pena, porque os Estados Unidos, afinal, tinham assinado o Protocolo de Quioto. E, na verdade, o Protocolo de Quioto surgiu porque o vice-presidente Al Gore foi a Quioto e conseguiu um acordo. Depois, o Protocolo de Quioto não foi ratificado pelos Estados Unidos e durante oito anos não tivemos uma política [climática] norte-americana. Agora temos uma Administração que está empenhada em agir, mas que tomou posse há apenas um ano. Tem de lutar contra muitas forças que não querem nenhuma mudança. Creio que as coisas vão começar a mudar, é uma questão de tempo.

Se tivesse de apontar três medidas para os cidadãos na luta contra as alterações climáticas, quais seriam?

Primeiro, temos de estar muito conscientes sobre o consumo de energia em nossa casa.

Já sugeriu uma vez que nos hotéis deveria haver contadores de electricidade nos quartos...

Por que não? Se houvesse contadores de electricidade em cada quarto, toda a gente se preocuparia. Se usarmos mais energia, pagamos mais, assim como se pagam extras pelos telefonemas ou pelo minibar. Não estou a dizer que devamos sentir-nos desconfortáveis. Em Nova Deli, a temperatura desce até próximo de zero. Nunca uso aquecimento no meu quarto. Uso dois cobertores extra, se for preciso. Portanto, a primeira área são as casas, a segunda são os hábitos pessoais de transportes, e a terceira coisa que os seres humanos podem fazer é reutilizar, reduzir e reciclar. Desperdiçamos muito. Compramos coisas apenas porque elas estão disponíveis e foram publicitadas.

E quanto a ser vegetariano, como é o seu caso?

Tornei-me vegetariano há dez anos. Costumava comer carne, depois compreendi que era ambientalmente muito danoso e que não era bom para a minha saúde. Sinto-me muito melhor agora. Esta é outra área onde há muitas emissões [de gases com efeito de estufa]. Hoje, a produção de carne é uma produção fabril. Temos grandes estábulos, mantemos muito gado que é alimentado com rações. Depois são mortos, refrigerados, transportados, mantidos em armazéns climatizados. Vamos ao supermercado, compramos grandes quantidades de carne, pomos no frigorífico, esse frigorífico tem um congelador. Tudo isso conduz a emissões. Não estou a dizer "não comam carne", estou a dizer "comam menos carne".

Dado que viaja muito, como lida com a sua pegada carbónica?

O que é que posso fazer? Tenho de fazer o meu trabalho. Se me tornei presidente do IPCC, tenho responsabilidades perante todos os países do mundo. Vim a Lisboa porque fui convidado [pela Fundação Calouste Gulbenkian]. Poderia dizer, "desculpe mas não irei por causa da minha pegada carbónica"...

Podia ter feito uma videoconferência...

Faço muitas videoconferências. Posso enviar-lhe uma lista das videoconferências que já dei. Mas [a Gulbenkian] não aceitaria [risos]. Em alguns locais, insistem. Eu deveria ir a Singapura no sábado. Tenho-lhes dito que não quero ir a Singapura só por um dia, que posso fazer uma videoconferência. Mas eles dizem que não, que uma videoconferência não serve [para o que pretendem]. Tenho de decidir se vou ou não.

Mas faz alguma coisa para compensar as suas emissões de CO2?

Para ser sincero, faço-o na minha vida pessoal, mas acho que isto não compensa a minha pegada carbónica. Mas se eu conseguir convencer mil pessoas a usar a energia de modo mais eficiente, a cortar nas suas emissões, sentir-me-ei melhor por ter exercido essa influência. Penso que estou a exercer alguma influência, e é por isso que estou a ser atacado. Os negacionistas do clima e os grupos de interesses estão a atacar-me não porque acham que sou ineficaz, mas porque acham que sou eficaz. Sou uma ameaça para eles.

Compra créditos de emissões para compensar as suas viagens aéreas?

Honestamente, não acredito em muitos desses sistemas. Depois de pagarmos por eles, alguma vez iremos conferir se aquilo que desejaríamos que fosse feito está a ser feito? Não estou seguro de que todos os esquemas estejam a fazer o que prometem fazer. Creio que temos de o fazer na nossa própria vida.

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