Helen Keller International ganha Prémio António Champalimaud de Visão 2009

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Kathy Spahn, presidente da Helen Keller International Pedro Cunha

O novo tipo de pão é uma das muitas expressões de uma revolução que começou em Moçambique há cerca de dez anos, entrou na vida das populações rurais e avançou para outros países africanos. A revolução laranja, como é chamada, envolveu a introdução de uma nova cultura agrícola em Moçambique — a batata-doce de polpa alaranjada. Nada tradicional naquele país, esta cultura tem-se revelado uma arma na luta contra a malnutrição e a prevenção da cegueira.

Esta batata-doce contém grandes quantidades de beta-caroteno, que o corpo humano depois converte em vitamina A e que é importante para a visão. Por ano, três milhões de crianças apresentam deficiências de vitamina A e, dessas, 500 mil ficam cegas. Nos países em desenvolvimento, a deficiência em vitamina A é mesmo a principal causa de cegueira que é perfeitamente evitável.

Uma forma de atacar o problema a curto prazo é distribuir cápsulas de suplementos de vitamina A às crianças. Em Moçambique, foi isso que Ministério da Saúde começou a fazer em 1999, com a ajuda da Unicef e da Helen Keller International (HKI), organização fundada em 1915, com sede em Nova Iorque, que se dedica a combater a malnutrição e as doenças da visão.

Mas para cortar o mal pela raiz havia que introduzir uma mudança na alimentação das populações, para que comessem vitamina A em quantidades suficientes. Foi posta em marcha a operação da batata-doce de polpa alaranjada, no fim dos anos 90, para substituir a batata-doce de polpa branca, cultivada no país mas sem vitamina A.

A operação contou com vários parceiros, como o Centro Internacional da Batata, o Instituto de Investigação Agrária de Moçambique ou a HKI. Primeiro, houve que escolher as variedades que se davam bem nos solos moçambicanos e que tivessem teores elevados de vitamina A. Depois, houve que promover a produção e o consumo desta batata, para que entrasse em força na vida de toda a gente.

Os agricultores tinham assim de começar a plantar esta batata. As populações tinham de ficar a saber como é rica em vitamina A e aprender a cozinhá-la, para a incluírem como novo alimento.

Onda laranja

A HKI desenvolveu então uma estratégia de comunicação, que passou por programas de rádio, teatro de rua e distribuição de t-shirts e bonés. A cor laranja apareceu por todo o lado, desde os sítios de venda da batata até a cartazes na rua (“para boa visão e saúde”, lê-se num deles).

Para saber como preparar comidas ricas em vitamina A, treinaram-se mulheres, que por sua vez treinaram outras mulheres (em 2008, 12 mil tinham recebido formação para melhorar a saúde nutritiva dos seus filhos). O trabalho da HKI passou ainda pela formação de trabalhadores agrícolas e a colaboração com escolas, onde se distribuíam as plantas.

E inventaram-se receitas novas. É o caso do pão de ouro. A equipa de Jan Low, do Centro Internacional da Batata (CIP), estudou a possibilidade de a batata-doce de polpa alaranjada substituir parte da farinha de trigo (quase sempre importada e cara) utilizada no fabrico do pão. A receita do pão de ouro substituiu 38 por cento da farinha de trigo por puré de batata-doce, refere um artigo no relatório anual de 2007 do CIP.

Fabricado inicialmente em padarias rurais no centro de Moçambique (Zambézia), passou depois a ser promovido noutras províncias, como Tete, Maputo e Gaza. A batata-doce alaranjada revelou-se fácil de cultivar, resistente à seca e com produções elevadas. Tornou-se moda.

“Os testes de sabor mostraram que as pessoas têm uma grande preferência pelo pão de ouro em detrimento do pão branco de farinha de trigo, por causa da sua textura mais pesada, melhor sabor e o seu atractivo aspecto dourado”, conta-se no artigo.

Esta história é relatada também no site da HKI e num documentário que ali se encontra (A Revolução Laranja), elaborado pelo Centro Internacional da Batata. É nele que se vê a padaria moçambicana com os pães de ouro ou os cartazes na rua.

Onze países africanos lançaram-se entretanto na luta contra a deficiência de vitamina A (como a Zâmbia, o Malawi, a Tanzânia ou o Quénia) através do cultivo e consumo de variedades de batata-doce de polpa alaranjada.

“Moçambique é especial para nós. Foi onde começou o projecto da batata-doce. Agora queremos reproduzi-lo noutros países”, conta-nos a presidente da HKI, Kathy Spahn, que prontamente comeu sobremesas de polpa alaranjada quando visitou aquele país. “Eram saborosas”, garante. “Uma das variedades tem duas vezes a dose de vitamina A recomendada por dia.”

O prémio

A história de sucesso da batata-doce alaranjada é um dos muitos projectos da HKI (em Portugal existe uma escola com o nome da activista política e palestrante norte-americana, mas nada tem a ver com aquela organização). Neste momento, a HKI combate a malnutrição e doenças de visão em 22 países, em parceria com 300 organizações não governamentais. Tem 560 funcionários espalhados pelo mundo e muitos voluntários, tantos que Kathy Spahn nem sabe dizer quantos no total. Só na Serra Leoa, os voluntários são mais de 30 mil. “Como os mantemos incentivados? Recebem uma t-shirt e um certificado a dizer que são voluntários. É muito pouco”, diz.

“Somos uma organização de assistência técnica. Uma boa parte dos fundos que recebemos vai para peritos e funcionários no terreno, que fornecem treino a organizações locais. Podem ser nutricionistas, especialistas da área da saúde, oftalmologistas. Estamos nos bastidores. O nosso grande sonho é deixarmos de ser necessários.”

Foi esse trabalho que a Fundação Champalimaud acabou de distinguir hoje, na terceira edição do Prémio António Champalimaud de Visão 2009, entregue no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, pelo Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva.

Este prémio “foi entregue como reconhecimento pelos notáveis resultados na prevenção e combate à cegueira nos países em vias de desenvolvimento, e em particular pelos avanços nas últimas décadas no controlo da deficiência de vitamina A – uma das principais causas de morte e cegueira infantil”, refere um comunicado da fundação.

Para Leonor Beleza, presidente da Fundação Champalimaud, este prémio reconhece “um trabalho extraordinário que leva luz à sombra e esperança à resignação a milhões de pessoas em África, especialmente em Moçambique, e na Ásia”.

O que significa um milhão de euros, o valor do prémio, para a HKI? “Significa muito. É incrivelmente raro receber um fundo para ser gasto como quisermos, sem restrições”, responde Kathy Spahn.

Neste ano, a organização dispõe de 37 milhões de dólares (26 milhões de euros) para as suas actividades, dados por governos, fundações ou empresas, sem incluir por exemplo doações de medicamentos por empresas farmacêuticas.

Como vai usar-se o prémio? Kathy Spahn diz que nos seus planos está a continuação dos programas de distribuição de suplementos de vitamina A, hoje em curso em 18 países africanos e asiáticos e que abrangem 19 milhões de crianças.

“É relativamente fácil chegar a 80 por cento das crianças. Com este fundo, queremos fazer programas que ajudem a atingir os últimos 20 por cento.” Essas são principalmente as crianças com menos de seis meses. “Vivem em áreas remotas ou em bairros de lata”, explica Kathy Spahn. “Também queremos fazer com que os suplementos de vitamina A não sejam necessários. Uma maneira é treinar as mães a cultivar frutas e vegetais ricos em vitamina A.” Sinal disso é a cor alaranjada de papaias, cenouras ou mangas.

Entre outras iniciativas, a HKI está envolvida no tratamento do tracoma, a principal causa de cegueira infecciosa, que origina cicatrizes no interior das pálpebras, levando as pestanas a curvarem-se para dentro do olho e a arranharem a córnea. Nas fases iniciais, é tratável com antibióticos. A erradicação da cegueira dos rios, causada por parasitas, ou o tratamento das cataratas através de cirurgia são outros exemplos de iniciativas.

Mas há ameaças novas, lembra Kathy Spahn. Com a epidemia de obesidade, a diabetes não tem parado de aumentar e uma das suas complicações é o aumento da retinopatia diabética. No Bangladesh e na Indonésia, onde esta doença está a tornar-se uma ameaça, a HKI tem projectos-piloto.

Tratar grande parte dos casos de cegueira é sobretudo uma questão de recursos humanos e financeiros, frisa Kathy Spahn, que deixa a mensagem: “Oitenta por cento da cegueira é evitável ou tratável. Isto quer dizer que existem os conhecimentos para tratar estes casos.”

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