A infância distorcida no espelho da anorexia nervosa

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Não existem dados epidemiológicos exactos sobre a incidência da doença na idade pediátrica Fernando Veludo/PÚBLICO (arquivo)

E não têm culpa. Calem-se os que os acusam de birra ou mau feitio. Ninguém é anoréctico porque quer, asseguram os especialistas.

Não existem dados epidemiológicos exactos sobre a incidência da doença na idade pediátrica. Um dos estudos mais recentes elaborados em Portugal aponta para uma prevalência idêntica à média europeia - 0,4 por cento. Afecta, sobretudo, adolescentes entre os 15 e os 19 anos, mas, embora sejam casos mais raros, há crianças com nove, dez e onze anos que têm a doença. A consulta especializada do Hospital Pediátrico de D. Maria Pia, no Porto, recebeu, desde 2000, 300 doentes com menos de 17 anos, com uma idade média de 14 anos. Sobre um eventual aumento da incidência, os especialistas dividem-se. Há quem refira que o número se mantém estável e há quem valorize um maior esforço e eficácia na detecção dos casos.

Não se sabe também como começa. Os possíveis culpados vão desde a pressão social até à vulnerabilidade ou predisposição genética, passando ainda pela instabilidade familiar ou por uma situação traumática. No caso das crianças e adolescentes, a própria fase etária pode ser um importante "gatilho". "Relacionamos a adolescência com a fase de preocupação com o corpo e com a imagem, mas isso também pode acontecer na infância", nota Pedro Monteiro, pedopsiquiatra do Maria Pia. Já Dulce Bouça, do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, constata: "Ninguém consegue explicar exactamente o que é a anorexia". O facto é que não se trata de um fenómeno recente: há registos da doença que remontam ao século XVII.

Assim, enquanto se procuram as causas e hipóteses de prevenção, é preciso cuidar das consequências. "A maioria destes doentes é muito inteligente, acima da média. Percebe os factos e argumentos sobre a importância da alimentação e, confrontada com exames e análises, até pode reconhecer os danos que está a provocar no corpo, mas, na altura de agir, é mais difícil", refere Helena Mansilha, pediatra do Maria Pia. A comida transformou-se numa fobia. Por outro lado, há traços comuns na personalidade de um doente: são perfeccionistas e exigentes consigo próprios.

"Família é o motor da recuperação"

Mais ou menos atentos, são os pais que contribuem mais para o início da viagem das crianças e adolescentes nas consultas de comportamento alimentar. O emagrecimento drástico é um sinal de alarme incontornável. Os manuais consideram que a perda de 15 por cento da massa corporal pode ser sinal de anorexia. Mas há outros mais subtis: o desinvestimento na vida social, exercício físico a mais, baixa auto-estima. Detectados alguns sinais, os pais procuram apoio directamente nas consultas de comportamento alimentar de vários hospitais ou aconselhamento junto da Associação dos Familiares e Amigos de Anorécticos e Bulímicos (telefone 222000042).

As famílias chegam perturbadas, doridas e cansadas, com as vidas a girar em torno da comida e as horas das refeições transformadas num inferno. Muitas vezes, desconhecem até que "a resistência à mudança e ao tratamento fazem parte da doença", frisa Dulce Bouça, autora do livro Anorexia Nervosa Minha Amiga (Ambar, 2000).

A terapia continua a ser principal arma de combate e a família o maior aliado. "A família é o principal motor da recuperação", sublinha Dulce Bouça. Pedro Monteiro avisa: "O foco da nossa atenção não pode ser só o peso e o corpo, mas toda a personalidade. Temos de intervir na relação do doente consigo mesmo, com a família e com os seus pares".

Não há nenhum medicamento específico capaz de fazer reverter a doença, mas, por vezes, é necessário recorrer a fármacos, como antidepressivos, para, por exemplo, regular o sono. O internamento também é um caminho possível para os casos em situação limite. No Maria Pia, apenas cerca de 10 por cento dos casos necessitam de internamento.

Percentagem elevada de cura

Porém, seja em que fase for, quando o tratamento começa, já há danos no organismo. Alguns poderão até ser corrigidos com o tratamento adequado, outros podem revelar-se irreversíveis. "Há períodos críticos na fase de desenvolvimento. Na infância e na adolescência, temos de maturar e diferenciar todos os sistemas de órgãos. A massa óssea, por exemplo, faz-se nesta altura. A partir daí, não importa o cálcio que se tome, nunca mais faremos osso. Há crianças que nos chegam já com osteoporose. A estatura é outra coisa que se perde", nota Helena Mansilha, concluindo que "todos os órgãos são afectados". O que mais assusta os doentes, diz, são as eventuais consequências da malnutrição na área do cérebro.

Mas, se os danos são mais dramáticos nestas faixas etárias, há um lado menos mau. Dulce Bouça assinala que, nestes doentes, existe uma percentagem elevada de cura. "Cerca de dois terços das crianças e adolescentes com anorexia acabam por fazer uma recuperação boa e permanente. Na população em geral, já constatámos taxas de recuperação na ordem dos 30 por cento. Mas tudo depende do estado da evolução da doença." O tratamento pode durar meses ou anos.

A anorexia faz muitas vítimas. E algumas mortais (as médias internacionais apontam para entre 5 a 10 por cento de óbitos), por colapso do organismo. "Em Portugal, também se morre com anorexia", confirma Dulce Bouça. É a doença mental mais prevalente nas crianças e adolescentes. Sentindo-se incompreendidos e culpabilizados, refugiam-se num mundo só deles.

A Internet já se transformou num local privilegiado para o debate. Há de tudo. Há sítios onde se consegue informação fidedigna, outros nem tanto. Mas há também blogues que se declaram a favor destas doenças. Dulce Bouça admite que são sítios "confusos e complexos", mas onde os doentes podem conversar livremente.

É claro que também podem servir como base de dados para mais dicas para fugir ao controlo dos que os rodeiam. Mas as tais dicas não existem também nas descrições mais científicas da doença? Ou mesmo em notícias como esta?

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