"É uma questão de vocação: há intérpretes e há coreógrafos. Imagino a Leonor a dançar muitos mais anos, eu fico-me por aqui. Isto foi muito complicado, mas também foi fácil numa coisa: deu para perceber que não volta a acontecer. A carne é fraca e sofre-se muito."
Cinco anos depois de ter dançado pela última vez - foi em Tristes Europeus, Jouissez Sans Entraves, que criou para a Companhia Paulo Ribeiro -, três anos depois de ter saído de Viseu para ir dirigir o Ballet Gulbenkian, primeiro, e o Teatro Aveirense, depois, Paulo Ribeiro está de novo em casa. Sozinho, com Leonor Keil, num dueto que ela andou anos a pedir e ele andou anos a adiar. "Esta ideia tem 13, 14 anos. Na altura eu era miúda, chegava-me à frente e desafiava as pessoas. Tinha acabado de conhecer o Paulo e achava que podíamos funcionar bem. Mas os anos foram passando e nunca houve oportunidade", explicou Leonor Keil ao PÚBLICO. Até agora. "Mas agora nós já não funcionamos bem", interrompe Paulo Ribeiro.
Malgré Nous, Nous Étions Là, que se estreia esta noite no Teatro Viriato, vive dessa disfunção: do atrito entre o corpo totalmente feito para a dança de Leonor Keil e o corpo pesado, ultrapassado, de Paulo Ribeiro. É isso que impressiona quem está de fora, e foi isso que o impressionou a ele: "Isto corre sempre muito bem quando estou lá dentro, porque ver-me de fora... Para já, nunca gostei muito de me ver dançar. E, de repente, ver-me a dançar ao lado da Leonor Keil é horrível. Mas com o tempo fui dando um desconto. Até porque, ao longo do processo, fomos convidando vários observadores, e a forma como as pessoas reagiram foi tão verdadeira que percebemos que havia aqui qualquer coisa de vital, e que isso valia a pena", diz Paulo Ribeiro.
Um objecto "inexplicável"Ao contrário de anteriores criações em que existia uma tentativa, mesmo que irónica, de contextualização, Malgré Nous, Nous Étions Là é um objecto "inexplicável". É por isso que há uma pilha de livros no palco - não servem para nada. Paulo Ribeiro entra em cena a falar disso: "Normalmente contextualizo, mas a Leonor acha que me repito. Desta vez não vamos reflectir sobre o estado do mundo, não vamos comparar o nosso trabalho com o de outros coreógrafos, não vamos usar os suportes da dança contemporânea. Ou seja: não vamos dançar nus, nem em silêncio".
Ele até podia "citar William Forsythe", mas é melhor não: "Nesta coisa de criar, às vezes há que ter a coragem de ir para as coisas sem grandes teorias, confiando no que a vida nos tem dado, como se fôssemos só uma membrana que filtra coisas. No fundo, nada disto quer dizer nada. Porque não é isso que interessa. Isto não é a história de duas pessoas, e seguramente não é a nossa história. O facto de estarmos os dois sozinhos nisto é um pretexto para uma série de outras coisas que são tão abertas quanto uma relação entre duas pessoas pode ser".
Leonor Keil também está diferente. "Queria fazer o oposto do que fiz nas duas últimas peças, Memórias de um Sábado com Rumores de Azul e Noite de Reis. Mas surpreendeu-me ter conseguido manter a calma do princípio ao fim. Não é normal em mim, eu tenho muitos repentes". Aqui ela teve de medir tudo: gestos, passos, palavras. "Pela história pessoal que temos, por estarmos sozinhos em palco sem ninguém de fora, a dirigir, tivemos de pensar duas vezes muitas vezes", nota.
É disso que falam quando falam, citando O Livro da Dança, de Gonçalo M. Tavares, em "hesitar entre a perfeição e o desastre". "O desastre esteve sempre iminente - o desastre era não fazer, e isso esteve sempre para acontecer. Mas por ter sido feito assim, no fio da navalha, tornou-se uma coisa muito vital: a maneira como pomos as coisas e como nos pomos no palco é muito despudorada. A peça é cheia de contradições, porque nós também somos um bocado assim: apoiamo-nos e provocamo-nos, equilibramo-nos e desequilibramo-nos. Estamos ali completamente envolvidos e ao mesmo tempo a vermo-nos de fora - e isto é muito fiel a um relacionamento entre duas pessoas que se conhecem há muito tempo".
Depois de meses às escuras - "Como se não víssemos nada e fôssemos andando de gatas e identificando os objectos" -, as luzes acendem-se hoje para Paulo Ribeiro e Leonor Keil. O espectáculo, que tem banda sonora de Bernardo Sasseti e vídeo de Paulo Américo, vai estar em digressão nos próximos meses (Lagos, Coimbra, Guimarães, Bragança, Guarda, Porto, Caen e Lisboa), a seguir Paulo Ribeiro sai do palco. "Estamos aqui de corpo inteiro e o corpo tem um prazo de validade. E eu sou muito mais útil como olhar exterior do que ali dentro".