O falhanço da União Europeia na adesão da Turquia
Erdogan já percebeu há muito tempo como funciona a União Europeia: as suas divisões internas e fragilidades intrínsecas levam-na a ser forte com os fracos e fraca com os fortes.
1. “A utopia da Europa em construção (?) é a de que a Turquia, como outrora os ex-inimigos de Roma, se torne no seu melhor aliado. No caso presente, e perante a real ou fantasma da ameaça do islão fundamentalista, o país de Atatürk teria vocação para a conter nos limites do aceitável e proveitoso, segundo a óptica mundial e, antes de mais, da Europa. A História — se nos ensina alguma coisa — ensina-nos que o Islão não se dissolve [...] A nossa impotência de ocidentais, e, sobretudo, de europeus, é o nosso último luxo, mas custar-nos-á caro.” Este artigo Eduardo Lourenço, “A Turquia na Europa”, in Público (27/10/2004, p. 9), foi um aviso premonitório. A Turquia parece estar hoje a caminho de uma autocracia islamista. É o primeiro Estado envolvido em negociações de adesão à União Europeia onde ocorre um golpe de estado (falhado). Pior ainda, foi o pretexto para um contragolpe que está a reverter a democracia, as liberdades fundamentais e os direitos humanos.
2. O que explica a aceitação da candidatura da Turquia e a abertura de negociações de adesão? Os mais atlantistas invocavam normalmente argumentos estratégicos. Entusiasmavam-se pelo facto de a Turquia ser um antigo membro da NATO, dos tempos da Guerra-Fria. Essa era a linha diplomática do Reino Unido, seguida, também, pela diplomacia portuguesa. Mas o Reino Unido foi também o primeiro — e até agora único — a fazer um referendo para saída da União. Apoiava a adesão da Turquia por más razões europeístas. Via-a como útil para impedir uma maior integração e qualquer aprofundamento que não lhe fosse conveniente. A Turquia seria sempre uma fonte de divisões europeias. Agora já nem precisam disso. Por sua vez, para os EUA, de uma maneira ainda mais óbvia, a adesão sempre foi vista como vantajosa. Não teriam qualquer problema, nem com os elevados custos financeiros da adesão, nem com a deslocação da fronteira da União Europeia para o Médio Oriente — Síria, Iraque, Irão. Os europeus é que ficavam com esse fardo. Apoiavam-na a custo zero, claro.
3. As vantagens estratégicas da União Europeia passar a ter a sua fronteira no meio da turbulência do Médio Oriente sempre foram para mim um mistério insondável. Quando questionados, os crentes nessas vantagens estratégicas, nunca conseguiam dar qualquer argumento convincente. Mas a fé dogmática é mesmo assim, tanto na religião como na política. Houve, também, outra argumentação, imbuída de similares convicções acríticas. Era frequente entre os adeptos do multiculturalismo ideológico e nos muitos que aderem a qualquer moda intelectual, desde que seja a última e lhes dê um status de pessoa culta e progressista. Para estes, o argumento não era estratégico, nem atlantista, mas de superioridade moral. A Turquia era necessária ultrapassar estereótipos do passado e corrigir o pecado original da União Europeia: ser um “clube cristão”. Que o argumento tenha sido levado a sério é, no mínimo, irónico, para não ser mais cáustico. Primeiro porque a União Europeia tem uma população largamente secular, coisa que a Turquia não tem. Segundo, a maioria dos Estados europeus, especialmente a Ocidente, têm um grau de diversidade religiosa superior ao da Turquia, com mais de 99% da população muçulmana, em termos culturais / religiosos. Terceiro, foi a retórica de Erdogan que popularizou o argumento que os ingénuos multiculturalistas ocidentais reproduziam cheios de convicção e superioridade moral.
4. A convicção europeia de poder integrar a Turquia resulta, também, de uma leitura superficial da sua realidade política e sociológica. O governo do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) e Erdogan foram vistos como reformistas e democratizadores durante os primeiros anos do processo de adesão. O posterior desvio desse caminho foi interpretado como consequência das dificuldades levantadas pela União Europeia na adesão. Essa interpretação é frágil e obscurece o problema. É verdade que sempre houve resistência à adesão da Turquia — a França é um caso bem conhecido. Mas Erdogan sabia-o desde o início e nunca teve ilusões sobre isso. O que europeus interpretaram como uma conversão aos valores da União Europeia, foi, de forma bem mais plausível, uma mera concessão táctica em situação de fraqueza interna. Onde os europeus viam reformas democratizadoras e sucessos económicos na Turquia, Erdogan via o enfraquecimento dos seus inimigos, possibilidades de mais Islão e de fortalecimento do seu poder. Tudo indica, por isso, que a União Europeia foi, desde o início, instrumental para enfraquecer os inimigos internos durante os primeiros anos no poder. Essa é a dura realidade que os europeus não viram, ou não quiseram admitir durante muito tempo.
5. É altura de fazer um balanço da estratégia da União Europeia para a Turquia da última década e meia. Sem meias palavras: o resultado é um falhanço. Falhou praticamente em toda a linha. Não democratizou o país de forma consistente, não consolidou as liberdades fundamentais, não levou a um respeito pelas minorias, nomeadamente os curdos, os quais voltam a estar em guerra contra o Estado turco. Também não resolveu a questão da reunificação de Chipre, nem levou a Turquia abandonar a ocupação militar da parte Norte. Não reforçou a relação estratégica político-militar. Pelo contrário, há cada vez mais desconfiança de parte a parte. Vista retrospectivamente, a decisão de abertura de negociações de adesão com a Turquia, tomada em finais de 2004, foi um grande passo em falso. Por paradoxal que possa parecer, podemos até admitir que Erdogan não teria tido o caminho aberto para a autocracia e re-islamização se não fosse a União Europeia. Naturalmente que nunca saberemos qual o rumo dos acontecimentos se a Turquia não tivesse sido aceite como candidato. Nem podemos saber como estaria hoje. Poderá sempre argumentar-se que estaria ainda pior. Mas sabemos — porque esse foi o rumo que os acontecimentos de facto tomaram —, que as negociações de adesão foram instrumentalizadas. Foram usadas para enfraquecer os grandes inimigos internos do AKP e de Erdogan: o exército, o sistema judicial, a administração e o ensino público, ou seja, os pilares do Estado secular criado por Atatürk.
6. As massas da Turquia dos subúrbios das grandes cidades e do interior rural do país são profundamente conservadoras e imbuídas de valores islâmicos tradicionais. Por isso, são largamente favoráveis ao AKP. São também a maioria sociológica da Turquia. Erdogan sabia isso. Os europeus parece que não. Imaginavam uma Turquia a partir do centro de Istambul, Ancara ou das bonitas estâncias balneares da costa mediterrânica. Nessas partes há, de facto, muita gente secularizada, com hábitos à europeia, que fala bem inglês. Mas são uma minoria. Uma minoria numerosa, mas ainda assim uma minoria numa população de perto de 80 milhões. Há, também, islamistas educados que sabem criar uma boa imagem para consumo externo. Apresentam-se como democratas muçulmanos, tal como a Europa tem os seus democratas cristãos. Com estas imagens tranquilizadoras as outras Turquias eram marginais no quadro mental europeu e nos relatórios de progressos de adesão da Comissão. Por muito que os europeus não gostem, a maioria do eleitorado turco sufragou várias vezes o AKP e Erdogan, o seu autoritarismo e políticas de re-islamização do Estado. Deveriam ter percebido isso antes de darem o passo em falso da abertura de negociações de adesão. Prestaram-se ao papel de serem a caução política de Erdogan. Agora é tarde. O mal está enraizado. Não adiante ficarem a desejar secretamente que o golpe de estado tivesse resultado.
7. Por último, uma ainda mais dura realidade. Erdogan respeita a Rússia de Putin — que parece ver até com modelo para si próprio — mas não respeita a União Europeia, à qual oficialmente diz continuar a querer aderir. Menospreza o soft power europeu que vê como fraqueza e não imbuído de valores. Respeita a Rússia devido ao seu poder, sobretudo militar. Por outras palavras, tem-lhe medo. Em finais do ano passado, primeiro a intervenção militar russa directa na guerra da Síria, depois o abate de um caça russo na zona fronteiriça entre os dois países, levaram a um forte reacção de Putin. A Rússia retaliou em termos diplomáticos, políticos e económicos. Exigiu um pedido formal de desculpas. Erdogan e o governo turco ainda ensaiaram uma resposta forte. Durou pouco tempo. Em meados de 2016, numa total reviravolta diplomática, a Turquia tomou a iniciativa de voltar a aproxima-se da Rússia e de normalizar relações. Quanto à União Europeia, Erdogan já percebeu há muito tempo como funciona: as suas divisões internas e fragilidades intrínsecas levam-na a ser forte com os fracos e fraca com os fortes. Como previa Eduardo Lourenço, num mundo que não se compadece com as utopias europeias, a nossa impotência como europeus está a sair-nos caro.
Investigador