O dinossauro na sala
Os nossos sistemas políticos, como o Titanossauro, têm corpos imensos mas memórias de galinha e esqueceram-se de como as democracias se podem auto-destruir.
Nova Iorque, EUA — O Museu de História Natural está à pinha para ouvir um cientista da Universidade de Princeton, Sam Wang, falar sobre um tema inesperado naquele lugar: previsões eleitorais. Por cima de nós paira o esqueleto de um Titanossauro encontrado na Patagónia, cuja cauda começa junto ao púlpito do orador e o corpo se estende tanto que a cabeça sai para lá da porta da sala a quase 40 metros de distância.
O que aqui nos trouxe foi a ansiedade com as eleições presidenciais nos EUA. E em particular a pergunta, que é a primeira a ser feita pelo público: por que é que o modelo estatístico do orador dá 99% de hipóteses a Hillary Clinton de ser eleita, ao passo que o seu rival Nate Silver tem estado a diminuir as probabilidades de uma Presidente Clinton a cada hora: antes de entrarmos na sala estava nos 74%, no fim da palestra já está nos 69% (e à hora a que envio esta crónica está nos 65%)? A este ritmo chegaremos a terça-feira com um Presidente Trump na rifa. A resposta do orador é que a polarização mediática oculta uma campanha muito estável: as pessoas já se decidiram e em princípio o dia de amanhã é igual ao de ontem.
A América está obcecada por sondagens. Os especialistas em sondagens tornaram-se celebridades. Até eles o lamentam: Sam Wang, do palco, vai dizendo que há semanas não se fala da economia, das alterações climáticas ou das questões sociais porque toda a gente só quer falar de números.
Isto acontece por razões compreensíveis. Que os dois candidatos são muito diferentes já toda a gente sabe. Agora o que resta conhecer é em que mundo vamos viver durante os próximos anos.
Mas há também a razão mais profunda que faz sobressaltar o público quando o orador diz que “a não ser que algo de muito inesperado aconteça” Hillary Clinton já terá ganho a eleição. O público acha que algo já aconteceu. Pode ter tomado a forma do último escândalo em torno dos e-mails de Clinton, mas a verdade é que com Clinton qualquer história faz mossa ao passo que Trump passa incólume por dezenas de escândalos. Essa polarização assimétrica é sinal de uma doença profunda na política americana.
Que o Partido Republicano está doente todos sabem: nos últimos dias sucederam-se declarações de candidatos ao Senado dizendo que nunca deixarão passar nenhuma nomeação da Presidente Clinton para o Supremo Tribunal. Esse é o “elefante na sala”, como se costuma dizer fazendo referência à mascote e símbolo do partido: os republicanos consideram que só nomeações de juízes conservadores são nomeações legítimas. Mas há mais sinais de perigo: o FBI intromete-se nas eleições, o Congresso não funciona e um possível Presidente Trump já prometeu processar jornais até que estes tenham de fechar as portas.
Há pois até um dinossauro na sala, e não é só o literal esqueleto por cima das nossas cabeças. É uma muito provável crise constitucional nos EUA à nossa frente. E não é a única: em Londres, o governo acabou de ver a sua estratégia europeia derrotada em tribunal (o loquaz Boris Johson diz que o "Brexit" será “um sucesso titânico”, lembrando com a escolha de adjetivo um certo navio que também era suposto não afundar). Na Hungria vigora uma “democracia iliberal", a Polónia vai pelo mesmo caminho.
Os nossos sistemas políticos, como o Titanossauro, têm corpos imensos mas memórias de galinha e esqueceram-se de como as democracias se podem auto-destruir. É um esquecimento perigoso: também o Titanossauro, há cem milhões de anos, andava pela Patagónia achando que o dia de amanhã não poderia deixar de ser parecido com o dia de ontem.