Erdogan lança purga no Exército e na Justiça, turcos festejam fiasco de golpe
A mesma praça que já foi símbolo da oposição ao líder turco, encheu-se agora para o apoiar. Com pelo menos 265 mortos, incluindo dezenas de civis e 104 revoltosos, contabilizados, Governo prende milhares de militares e afasta milhares de juízes.
Foi o golpe mais curto da turbulenta história democrática turca e terminou de uma forma digna de filme. O Presidente que passou os últimos anos a dividir para reinar, descrevendo qualquer opositor como “inimigo”, ordenando a repressão de protestos, perseguindo jornalistas e bloqueando as redes sociais, falou ao país através do telemóvel (FaceTime) para apelar aos turcos que saíssem à rua, unidos, em sua defesa. Desafiando os militares que diziam querer “restaurar a democracia”, os turcos desarmaram-nos e subiram aos tanques armados de bandeiras.
Nas primeiras horas da manhã, quando Recep Tayyip Erdogan aterrou triunfante no aeroporto de Istambul, já era certo que o golpe tinha fracassado, mesmo que a situação estivesse longe da normalidade possível num país cada vez mais instável. Também já era certo que Erdogan, chefe de Estado e ex-primeiro-ministro decidido a fazer da Turquia um regime presidencialista e a perpetuar-se no poder, sairia reforçado.
Entre os militares, responsáveis no passado por quatro golpes de Estado, e os seus líderes repletos de defeitos mas escolhidos em eleições livres, os turcos escolheram a democracia – todos os turcos, mesmo os que Erdogan tem perseguido.
Os partidos da oposição condenaram o golpe, da extrema-direita nacionalista do MHP aos secularistas do CHP, que se vêem como defensores da herança de Kemal Atatürk e são aliados tradicionais, precisamente, dos militares. Houve jornalistas que se envolveram em confrontos com os golpistas (um fotógrafo foi morto) e nem os líderes curdos hesitaram em apoiar o Governo do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), o mesmo que recorre ao Exército para reprimir a minoria curda no Sudeste do país e aos tribunais para perseguir os seus dirigentes.
Passadas 24 horas depois de iniciada a atabalhoada tentativa de golpe protagonizada por uma parte dos militares, o balanço era muito pesado. O Governo diz que há pelo menos 265 mortos, incluindo dezenas de civis e 104 revoltosos. Os feridos contabilizados são 1440. Houve caças a sobrevoar Istambul e bombas a cair na cidade da ponte que se atravessa para sair da Ásia e chegar à Europa. Aí mesmo, sobre o Bósforo, atiradores furtivos dispararam contra civis que avançavam na direcção dos tanques. Houve bombas a cair em volta da Assembleia Nacional, em Ancara.
Entre a madrugada de sábado e o início da madrugada de domingo, a praça Taksim encheu-se várias vezes com turcos a apoiar Erdogan; primeiro enfrentando os militares, depois festejando o seu fracasso. A Taksim, a praça que é o epicentro da vida de Istambul, é a mesma onde em 2013 começaram as manifestações contra o derrube de um pequeno parque que o então primeiro-ministro decidiu reprimir ferozmente, dando origem a manifestações onde participaram três milhões de pessoas em 79 das 81 províncias do país, alimentadas por cargas policiais sucessivas.
A mesma praça onde a Turquia que não se conhecia e nunca se cruzava – curdos, homofóbicos e homossexuais, laicos ferozes e mulheres de lenço islâmico, a classe média e a classe baixa – se uniu para enfrentar Erdogan e o gás lacrimogéneo voltou a encher-se em sua defesa, enquanto o mesmo Erdogan que baniu várias vezes as redes sociais usava o Twitter para pedir aos turcos que continuassem nas ruas “porque ainda é possível uma nova vaga de violência”.
Teorias da conspiração
Se há países dados a teorias da conspiração, a Turquia é um. Desde que o AKP chegou ao poder, em 2002, que os opositores falam da sua “agenda escondida” para transformar o membro do G20 e da NATO numa república dos mullahs inspirada no Irão. Afinal, o que Erdogan escondia era a deriva autoritária (entretanto assumida). A ambição aguça a paranóia e o político mais popular da Turquia desde Atatürk passou os últimos anos a denunciar golpes inexistentes para o derrubar. Até os tanques voltarem mesmo à rua.
“Tayyip só acredita em Alá… mas não se fia nem de Deus”, confessava há anos um colaborador do líder turco ao embaixador dos Estados Unidos em Ancara, num telegrama divulgado pelo Wikileaks. No reino da paranóia, tudo parece absurdo e pode, ao mesmo tempo, fazer todo o sentido. Como o homem a quem os dirigentes da Turquia acusam de estar por trás do golpe, Fethullah Gülen, sugerir que este não passou de uma encenação de Erdogan para reforçar os seus poderes.
“Depois de anos de promessas quebradas e paranóia crescente, o Presidente turco teve o que merece”, escreveu na revista Foreign Policy o académico Michael Rubin, analista do Instituto American Enterprise e autor de obras sobre os curdos. Os turcos é que não merecem nada disto, nem Erdogan nem um grupo de militares auto-intitulado “Paz no País” que dispara contra eles.
Gülen, o pregador fundador de uma rede de escolas e inspirador de um movimento político que vive desde 1999 num exílio auto-imposto na Pensilvânia, negou qualquer envolvimento no golpe e até o condenou. Afinal, quando era aliado de Erdogan, Gülen ajudou-o a dobrar os militares e os magistrados, estabelecendo pela primeira vez no país uma verdadeira separação de poderes (a mesma que Erdogan tem destruído em seu benefício).
Os sírios e os egípcios
Erdogan pediu aos Estados Unidos que extraditem rapidamente Gülen; Washington pede “provas concretas” da sua suposta traição. União Europeia, Casa Branca e países da região, todos manifestam o seu apoio a Erdogan. Ao mesmo tempo, conhecendo o autoritarismo com que o Presidente tem tratado minorias e opositores anos, num desrespeito absoluto por direitos humanos e liberdades, apelaram “à contenção e ao respeito pelas instituições democráticas”.
Perto de 3000 militares, incluindo altas patentes, foram detidos, e mais de 2800 juízes (dois deles membros do Tribunal Constitucional) já foram afastados dos seus cargos (há mandados de detenção contra outros). Erdogan passou os últimos anos a substituir altos cargos da justiça e a promover purgas nas chefias militares a pretexto de alegadas conspirações. “Esta tentativa de golpe entrou em colapso antes mesmo de ter começado”, diz Fadi Hakura, analista do think-tank Chatham House, sugerindo que o apoio limitado dos revoltos dentro da instituição militar indica que a Turquia de 2016 já não é país onde um golpe possa ter sucesso.
Na Turquia, não foram só os turcos a respirar de alívio. Os quase 3 milhões de refugiados sírios celebraram a permanência de Erdogan no poder. Alguns estão na Turquia depois de terem sido expulsos do Egipto em 2013, quando os militares derrubaram Mohamed Morsi, eleito apenas um ano antes na primeira vez que os egípcios puderam escolher o seu Presidente de forma democrática.
Para os militares egípcios, assim como para os turcos, antes um ditador no poder em Damasco do que a possibilidade de um futuro com dirigentes islamistas eleitos. Morsi, da Irmandade Muçulmana, está preso e já foi condenado várias vezes à morte, em sentenças que só alimentaram ainda mais a paranóia de Erdogan. Os turcos escolheram Erdogan aos militares. E no Conselho de Segurança da ONU, o Egipto bloqueou uma resolução proposta pelos EUA a condenar o golpe de Estado. Os muitos egípcios que apoiaram os militares contra Morsi e, entretanto, se arrependeram, gostaram que a Taksim não tivesse sido, desta vez, a Tahir do Cairo.