"Demasiado inteligente” para ser primeiro-ministro

Aluno de 19, punha gravata e respeitava a regra de nunca correr no pátio da escola. Nunca foi snob e soube granjear o respeito dos colegas que o elegeram várias vezes chefe de turma.

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Guterres após vitória nas legislativas de 1995 Luís Vasconcelos

Cumpridor “até naquelas coisas de ter de andar de gravata no primeiro ano do liceu”, António Guterres era um “aluno bom em tudo: no comportamento, no aproveitamento e até nas suas capacidades de chefia”, recorda Luís Miguel Cintra, colega de turma do ex-primeiro-ministro no Liceu Camões, em Lisboa.

Tantas qualidades somadas poderiam suscitar a animosidade dos colegas, mas o actor e encenador da Cornucópia garante que não. “Ele era de uma grande lealdade e honestidade em relação a todos”, descreve, para desatar a rir com um episódio desses anos: “Tive hepatite no 5.º ano, que me obrigou a ficar de cama. Ele, que morava no meu bairro e tinha de passar em frente a minha casa todos os dias, fazia o favor de deixar os seus cadernos das aulas de Química. E os seus apontamentos eram tão bons que eu nesse ano acabei por tirar melhores notas do que ele!”

Se Guterres foi chamado a integrar as turmas de elite do Liceu Camões não foi porque proviesse delas, mas por causa das suas qualidades. “Ele levava os estudos mais a sério do que a maior parte de nós. Se calhar por ter vindo da província, não tinha o snobismo que nós tínhamos”, contextualiza Cintra, referindo-se ao facto de, tendo nascido na capital, a 30 de Abril de 1949, António Guterres ter passado a sua infância dividido entre Lisboa e a terra natal da mãe, na Beira Baixa.

Para contestar regras como a que proibia correr no pátio da escola, não contassem com Guterres. Para tudo o resto, sim. Daí que tenha sido eleito vários vezes chefe de turma pelos colegas. “Conseguia exercer o cargo sem chatices nenhumas. Era inteligente, falava muito bem, escrevia muito bem, não tinha dificuldades de comunicação. Muitos dos políticos são-no por se terem desviado dos seus projectos pessoais, no caso de Guterres não. Nasceu para isso.”

Aluno de 19

Em 1965, Guterres sai do liceu com uma média de 19 valores. No ano seguinte, vai estudar Engenharia Electrotécnica no Instituto Superior Técnico (IST) de Lisboa, de onde sai em 1971 com uma média também de 19. “Era um curso de prestígio e a escolha natural para quem gostava muito de Matemática e de Física”, recua José Tribolet, colega de turma. “Ele tinha uma capacidade de compreensão de situações e de intuição de soluções profundíssima e rapidíssima — muito superior à minha. Mas depois, em termos de trabalho estruturado e de terreno, era menos paciente e menos sistemático do que eu. E isso não se coaduna com os requisitos de decisor e de líder político no terreno. Ele nunca devia ter ido para primeiro-ministro, porque é inteligente demais para isso”, descreve o hoje professor no IST.

Tribolet licenciou-se com uma média de 18, um ponto abaixo de Guterres, e tem uma explicação para isso. “Eu nunca prescindi dos meus três meses de férias e Guterres sim.” “Nas férias, enquanto a maior parte de nós se divertia, ele estudava a parte da matéria que ia dar a seguir”, corrobora José Queiroz, outro colega de turma e do grupo de estudo que costumava reunir-se em casa de Guterres. A companhia de Guterres foi, aliás, o que estimulou o ex-presidente da Empresa de Desenvolvimento do Aeroporto de Beja, agora reformado, a acabar o curso. “Eu tinha regressado da tropa, uma experiência traumatizante, e a extrema dedicação dele ajudou-me. Mas ele tinha também um notável sentido de humor e de procura de consensos.” Já na altura, complementa Tribolet, Guterres “tinha uma capacidade espantosa para a Matemática e para a Física mas era também muito interessado pelas ciências não exactas, como a Economia e a Sociologia”.

Discreto como poucos, só lhe conheceram uma namorada desses tempos, a que viria a ser sua mulher. No que Guterres se distinguia também era no seu trabalho no Centro de Acção Social Universitária, conotado com a esquerda católica, onde o ex-primeiro-ministro, então sim, demonstrou que também sabe trabalhar no terreno. “Aí meteu as mãos na massa a sério, quando se tratou de ajudar as pessoas a reconstruir as suas casas destruídas por umas cheias que mataram muita gente e que o regime procurou esconder.” Mas nem aí foi ostensivo. "Nunca se impôs com vaidade fosse a quem fosse", retoma Luís Miguel Cintra, para rematar: "Tenho a sensação de que é uma pessoa que conseguiu cumprir o seu objectivo de vida. E isso é sempre bonito".  

O político humanista

O diplomata que adora o “terreno”

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