Turquia determinada a travar pelas armas um Curdistão na Síria

Agrava-se batalha pelo controlo do território entre Alepo e a fronteira turca, fazendo temer uma intervenção de Ancara. Bombas mataram sete pessoas num hospital dos MSF e 14 numa clínica na estratégica cidade de Azaz.

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Imagens divulgadas pouco depois do ataque ao hospital apoiado pelos MSF Social Media Website/Reuters

A Turquia avança a passos largos para um envolvimento directo na guerra da Síria, onde os avanços do Exército de Bashar al-Assad e dos combatentes curdos junto à fronteira ameaçam fazer desmoronar o que ainda resta da sua estratégia para o conflito. Com os vários beligerantes a movimentarem-se no tabuleiro em redor de Alepo, a batalha que é vista como decisiva, nenhum alvo é poupado – dois hospitais foram bombardeados no nordeste do país, em ataques que provocaram pelo menos 17 mortos.

No final desta semana deveria entrar em vigor a “cessação de hostilidades” acordada na sexta-feira entre os grandes intervenientes internacionais na guerra síria, para que a ajuda começasse por fim a chegar aos milhares de sírios cercados pelos combates. Mas as hostilidades intensificam-se a cada dia, com a multiplicação de frentes de batalhas onde se enfrentam, à vez, o Exército, a rebelião, os jihadistas do Estado Islâmico e as milícias curdas.

As atenções estão concentradas no corredor, vital para a oposição, entre Alepo e a fronteira com a Turquia. Depois de terem cortado a principal estrada de ligação ao país vizinho, as forças governamentais, com o apoio da aviação russa, tentam fechar o cerco aos bairros controlados pelos rebeldes em Alepo, ao mesmo tempo que avançam em direcção à fronteira.

Aproveitando a situação – e o poder de fogo dos aviões de Moscovo – as milícias do YPG (o braço armado do movimento curdo sírio) anteciparam-se, numa ofensiva que as deixou às portas de Tal Rifaat e Azaz, últimas cidades antes da fronteira, sem as quais o abastecimento a Alepo pode ficar definitivamente comprometido.

Tomar a zona, onde se misturam forças seculares e grupos salafistas, permitiria aos curdos unir os territórios que controlam no Norte da Síria, num primeiro passo para a formação de uma região autónoma semelhante à que é detida pelos curdos iraquianos. Um cenário intolerável para Ancara, para quem o YPG é tão só uma extensão do Partido dos Trabalhadores do Curdistão turco (PKK), com quem está há décadas em guerra.

Ignorando os apelos à contenção dos seus parceiros da NATO, alarmados com a possibilidade de um país-membro da aliança entrar na guerra, a artilharia turca atacou, pelo terceiro dia consecutivo, posições curdas na zona. “Os elementos do YPG foram rechaçados de Azaz. Se voltarem a aproximar-se a nossa reacção será ainda mais dura. Não permitiremos que Azaz caia”, avisou o primeiro-ministro turco, Ahmet Davutoglu, reafirmando aquela que é há meses “a linha vermelha” de Ancara – o YPG não pode entrar na faixa de território entre Afrin, seu bastião no nordeste, e a margem ocidental do Eufrates, mais a noroeste. Horas mais tarde, contudo, o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, que reúne informações de activistas locais, anunciou que a guerrilha tinha tomado já “70% de Tal Rifat”.

De visita à Ucrânia, outro dos palcos da intervenção de Moscovo, Davutoglu elevou o tom do discurso contra a Rússia, a quem acusou de se comportar “como uma organização terrorista”. A entrada da aviação russa na guerra foi um enorme revés para o Governo turco, um dos primeiros a exigir o afastamento de Assad e que não hesitou em apoiar a oposição com dinheiro e armas. A irritação de Ancara é tanto maior quanto os seus aliados ocidentais vêem nas milícias curdas uma das poucas forças no terreno com capacidade para enfrentar o Estado Islâmico.

O Governo russo ripostou, denunciando os disparos da artilharia turca e acusando o antigo parceiro de continuar a permitir a entrada de “novos grupos de jihadistas e de mercenários armados” através da fronteira. “Acções agressivas” que, diz, demonstram “um apoio não velado ao terrorismo internacional”.

Hospitais atacados
Com Azaz ameaçada por todos os lados (o Estado Islâmico controla o território a leste) é muito difícil saber quem disparou os mísseis que nesta segunda-feira de manhã caíram sobre a cidade, atingindo, entre outros alvos, um hospital pediátrico e uma escola que albergava deslocados fugidos dos combates mais a sul. Residentes contaram à Reuters que pelo menos 14 pessoas, incluindo duas crianças, morreram no ataque. A Turquia atribui o bombardeamento à aviação russa, mas não divulgou que posições a sua artilharia visou durante o dia nos arredores da cidade.

Numa infeliz coincidência, um segundo hospital, este apoiado pelos Médicos Sem Fronteiras, era destruído na mesma altura em Idlib, província a oeste de Alepo que é um dos últimos bastiões dos rebeldes no noroeste do país. Pelo menos sete pessoas morreram e oito funcionários estavam dados como desaparecidos, temendo que estivessem entre os escombros. “Trata-se de um ataque deliberado contra uma estrutura de saúde”, denunciou Massimiliano Rebaudengo, chefe de missão dos MSF na Síria, afirmando que a destruição do hospital de Marat al-Nouman “priva de acesso aos cuidados de saúde 40 mil pessoas que vivem numa zona de conflito aberto”.

Ainda as buscas pelos desaparecidos começavam e já o presidente dos MSF, Mego Terzian, dizia não ter dúvidas sobre quem disparou os quatro mísseis que atingiram a unidade: “O autor do ataque é claro… ou o governo [sírio] ou a Rússia”. A Rússia rejeitou as acusações  – “este ataque contradiz a nossa ideologia”, afirmou a ministra da Saúde Veronika Skvortsova – e horas mais tarde o embaixador sírio em Moscovo garantiu que o hospital “foi destruído pela aviação dos Estados Unidos”. Desde o início do ano, cinco dos 153 hospitais que os MSF apoiam na Síria foram alvo de ataques.

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