Martin Schulz: É preciso aproveitar o referendo britânico para discutir reforma da UE
Presidente do Parlamento Europeu é o alemão de quem os portugueses gostam. Esteve em Lisboa para dizer não às sanções.
Martin Schulz esteve em Lisboa para participar no Congresso do PS. Tem o mérito de ter conseguido afirmar o Parlamento Europeu como uma força política mais relevante. Fala sem complexos dos problemas europeus e é uma voz crítica de muitos aspectos do rumo actual da União e da zona euro. Compreende as dificuldades portuguesas. É contra as sanções.
Estamos ameaçados de sanções, temos dificuldade em fazer a economia crescer. Como vê hoje a situação portuguesa?
Creio que o povo português fez sacrifícios excepcionais, enormes, por isso não vejo como é que a União Europeia pode impor sanções contra Portugal. Estou em contacto permanente com o presidente da Comissão e espero que fale de um modo construtivo, respeitando o que Portugal já fez na gestão do problema orçamental.
Por vezes dá a ideia de que Bruxelas e algumas capitais europeias querem penalizar Portugal por ter hoje um governo de esquerda, e avisar a Espanha de que não quer o Podemos. Se isto é verdade, como é que explicaria aos portugueses que eles não têm o direito de escolher quem os governa?
Não excluo nada. Há porventura gente que tem intenções políticas, mas não tenho contacto com ela. As pessoas com quem falo, na Comissão, no Parlamento Europeu ou ao Conselho Europeu, são as que tomam em consideração as circunstâncias específicas, que variam de país para país. Dois exemplos. Conseguimos um compromisso com Portugal com um governo de esquerda; conseguimos um compromisso para este ano com a Espanha, com um governo de direita. Jean-Claude Juncker, apoiado por uma maioria no PE que eu me empenhei a criar, está consciente dos problemas e tenciona levar em consideração, no quadro do Pacto de Estabilidade, as circunstâncias específicas de cada país. Sei também que o encontro entre António Costa e Angela Merkel foi muito construtivo. Isso mostra que não há a intenção de politizar as decisões. Mas há forças que querem politizar, é verdade.
Como sabe, há nos países com mais dificuldades a ideia, certa ou errada, de que o seu voto serve de pouco. Acredita que, em Berlim, Haia, Bruxelas haja um conhecimento real dos resultados das suas políticas de austeridade?
A resposta é muito simples. Nesses sítios que mencionou há pessoas que pensam que é preciso dar atenção a esses problemas que referiu. E há outras que têm uma opinião completamente diferente. As duas escolas políticas que permanecem no centro do debate económico na Europa existem em todas as capitais. E, na minha opinião, não se enquadram no campo do confronto esquerda-direita. Há, à esquerda como à direita, opiniões distintas e as duas escolas incluem gente de esquerda e de direita. Há uns que dizem que é preciso reduzir a despesa nos orçamentos e, imediatamente, a confiança dos investidores regressa. E há outros que dizem que nunca se conseguirá equilibrar as contas públicas sem investimento estratégico, que também pode ser público, porque, com desemprego e sem crescimento, não se consegue aumentar o rendimento e, sem rendimento, não é possível resolver o problema do défice orçamental. As duas escolas confrontam-se há anos…
Só que tem havido sempre uma escola mais forte do que a outra, que defende a austeridade para a resolução de todos os problemas.
Nenhuma das escolas detém uma maioria. Mas, na medida em que no Conselho Europeu prevalece o princípio da unanimidade, não temos nem uma pura política de austeridade, nem uma pura política keynesiana. Temos uma estagnação também ao nível da decisão política. E é esta a razão pela qual digo que é preciso utilizar o referendo britânico como uma oportunidade. Seja qual for o resultado. É preciso discutir a sério a reforma da zona euro e a reforma do sistema de decisão política.
Os sociais-democratas estão no poder em França, Itália, Portugal, o líder do SPD faz parte da grande coligação de Merkel. Mas vemos as dificuldades que têm para negociar uma outra maneira de resolver os problemas da zona euro. Porquê?
Pergunta porquê, mas não estou de acordo com a sua premissa. Mais uma vez, Matteo Renzi está a fazer reformas enormes, está a tornar o seu país mais eficaz, o défice é muito menor e, mesmo assim, conseguiu aumentar as prestações aos cidadãos. Não podemos dizer que na Itália haja um governo da esquerda que não faz nada. Em França, é verdade que o governo está numa situação muito difícil e, apesar disso, creio que François Hollande começou a reformar o país. E se olhar para o papel que a França desempenha, por exemplo, na batalha contra o terrorismo, no Mali e em outros países, é preciso reconhecer que estes esforços custam muitos milhares de milhões ao orçamento francês.
E digo-lhe mais uma coisa. [O vice-chanceler e líder do SPD] Sigmar Gabriel, eu próprio e outros membros da comissão executiva do SPD temos discutido muito estas questões. Recomendo-lhe que pergunte em Atenas as soluções que encontrámos nas últimas semanas para chegar a um compromisso. Tem razão quando diz que ainda não há na Europa o poder suficiente dos socialistas para mudar o quadro político. Mas, sem nós, a situação seria certamente pior.
Mesmo assim, as forças populistas e nacionalistas crescem por toda a parte, incluindo na Alemanha. O SPD desce nas sondagens e a Alternativa para a Alemanha sobe. O que é que os governos estão a fazer para travar esta escalada?
Estou convencido de que muita gente que vota nestes partidos dos extremos, seja à direita ou à esquerda – mas, sobretudo, os que votam à direita – não correspondem ao núcleo duro dos extremistas. É um voto de desespero e de revolta, que torna necessário analisar quais são as razões que os movem. E as razões são que há na Europa, não apenas um sentimento de injustiça, mas uma realidade de injustiça. Se os governos pedem sacrifícios aos pais – menos salários, mais trabalho, mais impostos, menos serviços públicos –, dizendo-lhes, como diziam aos meus pais, que é para benefício dos seus filhos no futuro, eles compreendem. Agora, quando se lhes pede que aceitem estes sacrifícios para salvar os bancos e os seus filhos estão no desemprego, revoltam-se. Portanto, a resposta séria é organizar uma economia mais justa. Temos um crescimento considerável do grande capital nos últimos anos e, do outro lado, um aumento considerável da pobreza. Isso mostra que não vivemos numa sociedade justa e razoável. O acesso dos jovens ao mercado de trabalho é um enorme problema. Há regiões com 40 e 50% de jovens no desemprego. É catastrófico.
Seria necessário fazer alguma coisa, não?
Dou-lhe um exemplo. Estamos a reflectir sobre as pequenas e médias empresas. Se uma PME empregar um jovem, estou preparado para defender que se lhe deve dar um prémio, uma vantagem fiscal ou das taxas de juro. Investir nas PME é ligar o investimento ao emprego. Isto pode parecer velho, porque esses mecanismos existiam nos anos 70 e 80 com sucesso. Mas porque não repeti-los agora?
Houve crise do euro, com as divisões Norte-Sul. Agora, a crise dos refugiados, que divide toda a gente. Como vê esta indiferença perante os outros?
A questão é saber se é uma indiferença europeia ou uma indiferença dos governos, que preferem soluções nacionais a enfrentar um desafio global. Venho de Nova Iorque, onde tive um encontro com o secretário-geral das Nações Unidas, que me disse que há, neste momento, 66 milhões de refugiados. Tome nota de um número: o milhão de refugiados que chegaram à Alemanha no ano passado. Se distribuíssemos esse milhão pelos 500 milhões dos 28 Estados-membros, não haveria qualquer problema. Se são apenas quatro países – incluindo Portugal, cinco – que os acolhem, isso levanta um grande problema. Vivemos uma crise que nós próprios fizemos. Se toda a gente participasse, nem sequer haveria uma crise. Há uma crise porque a maioria diz que não tem nada a ver com isso, que o problema é da Alemanha. Que alguns governos, que não querem participar na redistribuição de refugiados, critiquem a União Europeia pela ineficácia da gestão desta crise migratória, é no mínimo cínico.
A política de portas abertas da chanceler foi muito corajosa, mas nem sempre compreendida pela opinião pública alemã ou pelo seu próprio partido. A pressão política obrigou-a a um acordo com o Presidente turco Erdogan, que não está a ter grande resultado. Os franceses não querem falar muito nisso por causa de Marine Le Pen. Este sentimento de rejeição sente-se um pouco por todo o lado.
É verdade que há muita gente céptica no que respeita aos refugiados e à sua integração. E é justificável que as pessoas levantem questões sobre a integração e, sobretudo, sobre a eficácia do processo. Mas devo dizer-lhe que, na Alemanha, uma grande maioria pensa que um país grande e rico como o nosso deve receber os refugiados. Não devemos enganar-nos. O facto de a Alternativa para a Alemanha fazer muito barulho não significa que a maioria dos alemães pense o mesmo. Tem 12% nas sondagens, o que quer dizer que quase 90% não o apoiam. Não partilho dessa opinião que referiu. Se vi alguma coisa foi a mobilização da sociedade civil alemã, no ano passado, que me fez sentir verdadeiramente orgulhoso dos meus compatriotas. Tem razão quando fala de partidos como o de Marine Le Pen. Mas esse partido existia antes desta crise dos refugiados. Infelizmente, está lá há muitos anos.
Mas agora sabe tirar partido desta crise.
Os cavaleiros do medo estão lá, é verdade. Eles tentam intimidar os cidadãos, alimentar os seus medos, misturando tudo e criando uma grande amálgama. A resposta tem de ser clareza e eficácia. [O primeiro-ministro francês] Manuel Valls disse claramente que a França estava preparada para receber os 30 mil que lhe cabiam no sistema de relocalização de 160 mil proposto pela Comissão. A Alemanha está preparada para 40 mil, Portugal dez mil. Só em três países já temos 80 mil, correspondendo a metade do total. Isso quer dizer que o problema não são os países que querem receber refugiados. A ineficácia da gestão desta redistribuição em matéria de registo e de procedimentos do direito de asilo deve-se em boa parte aos diferentes regimes de um país para outro, e porque as decisões europeias são sempre muito lentas. É este o nosso problema.
E o acordo polémico entre Merkel e Erdogan?
Aqui também é preciso ser franco. Angela Merkel e mais 27 chefes de Governo, e não apenas a Alemanha, fizeram um acordo com a Turquia. Que é um golpe duro contra os traficantes. Desde o momento em que os refugiados saibam que é mais rápido encontrar protecção através do sistema de registo em vez de ter de pagar aos traficantes, estamos a ajudá-los. Mas isso não justifica que nos tenhamos de inclinar perante Erdogan. Foi essa a razão pela qual travei o debate sobre a liberalização dos vistos [turcos] no PE (uma das exigências de Ancara). O que disse foi que o acordo sobre os refugiados é uma coisa; outra é esquecer as reformas exigidas à Turquia em muito domínios, incluindo a lei antiterrorista. A Turquia não reformou essas leis e, por isso, parei o processo.
O problema é que o Presidente turco, nos dias que correm, não parece ser alguém em quem se possa confiar.
Mas a Europa está disposta a pagar qualquer preço? Não. Viu a aprovação do genocídio arménio no Bundestage? Fiz parar a liberalização dos vistos. Não pagamos qualquer preço ao senhor Erdogan.
Estamos a menos de duas semanas do referendo britânico. As coisas não estão a correr muito bem. É um risco enorme para a Europa, se o Reino Unido sair?
Será muito mau. A União Europeia sem a Grã-Bretanha será mais fraca, mas a Grã-Bretanha também será mais fraca sem a União Europeia. Levemos em conta apenas três parâmetros. É um país do G7, a segunda economia do Mercado Interno, um membro permanente com direito de veto do Conselho de Segurança. Só estes parâmetros mostram que, sem a Grã-Bretanha, a União perde influência. Mas podemos por a questão ao contrário. Porque é que eles são um país do G7 ou a segunda economia da Europa? Porque são um membro da União Europeia. Também eles perderiam muito se saíssem. Espero que fiquem.
Se saírem, não teme que esta tendência de fragmentação seja contagiosa?
Esse risco existe. Alerto todos os meus colegas que dizem: se eles querem ir-se embora, então que vão. Não tenho essa opinião. Corremos o risco de que a saída da Grã-Bretanha não seja o fim de um processo mas o princípio. Por isso, seja qual for o resultado, teremos necessidade de uma reforma integral da União Europeia com regras claras. Somos uma comunidade de direito, não uma comunidade de arbitragem onde se diria: se isto me serve, eu aceito, mas não estou preparado para contribuir. Ou recuperamos uma vontade e um espírito comunitário, ou iremos em direcção a um futuro muito arriscado.
Merkel e Hollande preparam alguma coisa em caso da vitória do Brexit?
Como não sou o porta-voz da senhora Merkel nem do senhor Hollande, não posso responder-lhe. Mas espero que os Estados-membros da União se preparem para os dois cenários.