Contra burkas e burkinis, pela liberdade e igualdade de género
Somos não só frontalmente contra o uso da burka e do burkini (e símbolos equivalentes), como achamos que pode haver fundamentos para tal proibição.
A discussão sobre a proibição do uso do burkini por algumas autarquias francesas levou a um aceso debate, algo enviesado por ambas as partes. Se o argumento securitário subjacente ao medo do terrorismo pode não se aplicar ao burkini, pelo menos do ponto de vista objetivo (algo que pode ser diferente do ponto de vista subjetivo…), também a liberdade da mulher de vestir o que bem lhe aprouver não é o cerne da questão. Para nós, é irrelevante que se trate de burka, burkini, niqab ou chador porque o que nos move não é o temor de possíveis atentados islâmicos, nem tão pouco a suposta castração da liberdade (religiosa) das mulheres de se vestirem como desejarem. Com efeito, o que pretendemos defender, assertivamente, é a liberdade e a igualdade de género; e, por essa via, defender um dos elementos-chave do núcleo duro das nossas sociedades liberais e democráticas: os direitos humanos fundamentais, nomeadamente o direito à igualdade (e à liberdade) de género. E, por isso, somos não só frontalmente contra o uso da burka e do burkini (e símbolos equivalentes), em espaços públicos das nossas sociedades democráticas, como achamos que pode haver fundamentos histórico-políticos e, acessoriamente, jurídico-constitucionais para tal proibição, mesma que fira a liberdade religiosa.
A nossa perspetiva contra o uso da burka e do burkini assenta em três eixos fundamentais. Primeiro, na necessidade de defendermos os direitos humanos fundamentais, nomeadamente o direito à igualdade de género, como núcleo duro das nossas sociedades liberais e democráticas desde o alvor do liberalismo político (Revoluções Americana, 1776, e Francesa, 1789), mais tarde atualizado pelo democratismo, pelo republicanismo e pela social democracia. O mínimo ético irredutível estabelecido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem postula no seu artigo 1º que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência”, confirmando a ideia de que os direitos humanos decorrem da dignidade humana, como um valor ínsito ao homem, exatamente por esta sua condição de racionalidade. Os direitos humanos nas sociedades liberais e democráticas são direitos inalienáveis dos indivíduos, ou seja, tem uma raiz individualista e não coletivista (como nas visões marxistas de tipo soviético) ou comunitarista (como nas visões multiculturalistas). Portanto, sendo nas nossas sociedades liberais e democráticas os direitos humanos uma proteção dos indivíduos contra a arbitrariedade do poder, não podem os mesmos ser usurpados nem pelo governo do dia, nem pela pertença a determinadas comunidades: às mulheres muçulmanas não pode ser subtraído o direito à liberdade e à igualdade de género só porque pertencerem a uma comunidade étnico-religiosa que não se revê nesse axioma.
Em segundo lugar, do nosso ponto de vista o que está aqui em causa não é a suposta liberdade da mulher de vestir o que bem lhe aprouver. Achamos aliás que seriam patéticas, se não fossem trágicas, as comparações (que por aí pululam, nas redes sociais, na imprensa, etc.) comparando a proibição do burkini com uma eventual proibição da utilização de leggies, fatos de mergulhador, de motard, indumentárias de freira, etc. Por um lado, porque não estamos a falar de membros do clero muçulmano, mas sim de cidadãs em geral. Por outro lado, porque o burkini é um símbolo de menorização e subalternização das mulheres que fere ostensivamente os nossos princípios da liberdade e igualdade de género. Alguém já viu algum homem muçulmano com esta indumentária? Sobre este assunto vale a pena citar as palavras de uma voz dissonante na comunidade muçulmana, Kamel Daoud, que escreveu em 14/2/2016 um interessantíssimo artigo para o New York Times sobre “A miséria sexual no mundo árabe”: “O sexo é um completo tabu em países como a Argélia, a Tunísia, a Síria ou o Iémen, devido a um ambiente conservador associado a uma cultura patriarcal (…). Em alguns países é-lhes (às mulheres, leia-se) permitido o acesso ao espaço público apenas se renunciarem aos seus corpos pois deixá-las ir descobertas seria revelar o desejo que o islamita, o conservador e o jovem fanatizado querem negar. As mulheres são vistas como uma fonte de destabilização”. Também a organização de mulheres muçulmanas "Women Without Veils” publicou uma declaração, no Dia Internacional da Mulher, intitulada “O véu negador da liberdade e da igualdade" na qual declarava que "Nós nos recusamos a usar o véu, pois representa uma violência simbólica visível num espaço público... os islamitas estão formalizando a desigualdade entre os sexos no contexto familiar e social em detrimento dos valores fundamentais da República”. Por isso as comparações citadas são perversamente míopes porque enformadas por uma visão assente numa (suposta) liberdade ahistórica e apolítica das mulheres muçulmanas.
Claro que as comunidades muçulmanas não são homogéneas e mesmo do ponto de vista do grau de conservadorismo e patriarcalismo há uma significativa diversidade. Basta pensar, do lado mais liberal e secularizado, na comunidade ismaelita, onde as mulheres andam geralmente sem quaisquer véus. Todavia, também sabemos que o recrudescimento do uso destes símbolos ultraconservadores e das orientações e práticas que lhes estão associadas, nos tempos mais recentes, está ligado à crescente influência de duas das mais conservadoras correntes do islamismo, o wahbismo e o salafismo (ver Yasmin Alibhai-Brown, Refusing the Veil, Biteback, 2014).
Relativamente ao pressuposto de que há uma decisão livre e autónoma destas mulheres no uso destes símbolos, gostaríamos de sublinhar que tal é algo que está por demonstrar (e que será, tendo em conta os dados que conhecemos sobre esses grupos sociais, algo residual, na melhor das hipóteses). Com efeito, o exercício da plena liberdade pressupõe autonomia no processo de deliberação face às escolhas individuais, mas os últimos dados referentes à liberdade das mulheres e o “Global Gender Gap Index 2015” revelam um recuo, nos últimos 10 anos, das liberdades das mulheres e um agravamento do hiato entre homens e mulheres nos países muçulmanos, encontrando-se a Arábia Saudita, Oman, Egipto, Mali, Líbano, Marrocos, Jordânia, Irão, Chad, Síria, Paquistão e Iémen no fundo da tabela.
É verdade que pode haver aqui um conflito entre valores fundamentais das nossas sociedades demoliberais, nomeadamente entre o direito à liberdade religiosa, por um lado, e os direitos à liberdade e igualdade de género, por outro. Logo, impõe-se uma escolha que é sobretudo do domínio da política e não tanto do foro jurídico. Do nosso ponto de vista, do que se trata é, num contexto em que é preciso optar e afirmar como queremos viver nas nossas sociedades democráticas e liberais, de defender os nossos valores matriciais da liberdade e da igualdade de género mesmo que tal implique comprimir a liberdade de uma determinada religião que, pelo menos em determinadas leituras, os põe claramente em causa. E estão enganados aqueles que acham não se podem produzir determinadas normas que visam apenas certas comunidades: basta pensar que, num contexto de plena liberdade e pluralismo partidários, determinadas sociedades proíbem os partidos fascistas e/ou nazis. É que acima do direito está a história e a política, ou seja, a consolidação do direito à liberdade e igualdade de género traduz um conjunto de lutas sociais e políticas, nas nossas sociedades, que urge defender assertivamente, para não as defraudarmos.
Professor de Ciência Política do ISCTE-IUL
Professora de Relações Internacionais da UBI