A seta da história, o progresso, a Tina e Trump
Hoje, a direita está rapidamente a reciclar-se no pró-trumpismo porque lhe agrada a “reversão” de muita legislação social, a proibição do aborto, a vingança contra os media, os intelectuais e a esquerda dos anos 60, que é um dos seus inimigos predilectos.
No debate à volta de Trump há uma contínua recorrência de um argumento que vai de uma interpretação da história para a política e que curiosamente é usado quer à esquerda, quer à direita. Esse argumento pode ser enunciado da seguinte forma simples: “não se pode voltar para trás”, na história há o “velho” e o “novo” e a tentativa de manter o “velho” contra o “novo” é inútil e reaccionária, a história “anda sempre para a frente”. Quando se traduz esse argumento nas várias partes em que é usado, encontramos diversas variantes que vão do pregressismo comteano à esquerda ao “não há alternativa” (Tina) à direita, tendo todos em comum a ideia de que na história há uma seta do tempo que define um “progresso”, e que, a partir dela, se pode definir e classificar determinados eventos como indo no sentido da história e outros não.
É uma ideia já com algumas centenas de anos, mas não mais do que isso. Data do século XVIII e tem sucesso porque é psicologicamente amável, dá-nos a entender que o que fazemos tem sentido, fornece-nos uma teorização do presente que pode ser politicamente instrumental, e introduz uma pretensão de “ciência”, onde não há ciência nenhuma. A única seta do tempo que conheço existe na física e é a da segunda lei da termodinâmica, que explica a entropia, bem pouco amável para os humanos, porque mostra a inevitabilidade da morte, da usura das coisas, e é uma teoria mais de perda do que ganho. Na história não conheço seta nenhuma, nem o passado é repetível, nem o futuro é previsível, a única parte da história que é vivível é o presente, ou seja, a parte que não é história.
É interessante verificar como a eleição de Trump nas suas interpretações é vista à luz desta teoria da história. Nesse sentido, repetem-se muitos argumentos do "Brexit", muita discussão sobre a globalização, muita da transposição social e política daquilo que se entendem ser os efeitos das novas tecnologias, muito do deslumbramento psicológico com as “redes sociais”, os “mundos virtuais”, etc., etc. Ainda recentemente o seu papel no debate político foi evidente na discussão da Uber e da “uberificação” da sociedade, do trabalho, dos direitos sociais, mesmo da democracia. Embora isto fique para outra discussão, tenho para mim que esta interpretação dos eventos “velhos” e “novos” é pouco compatível com a democracia, desvaloriza o presente em nome ou de um passado mítico ou de um futuro hipotético, e dá origem a uma curiosa amálgama de teorias teleológicas da história como o marxismo, com a “inevitabilidade” da economia de modelo singapuriano, assente em várias interpretações neomalthusianas e na ideia de que existe uma “realidade” inescapável.
Se há matéria em que esta teoria da história não resiste a uma análise dos factos, é exactamente no domínio dos movimentos sociais e políticos em que “novos” e “velhos” elementos se misturam e há tanto de subversivo, ou, se quiserem outra palavra, crítico, na defesa do “velho”, como há de reaccionário na defesa do “novo”. Nos movimentos sociais e políticos tanto há ludismo como vanguardismo e os resultados da acção e da luta social de uns ou de outros podem dar aos homens concretos melhores condições de vida, ou seja, o único objectivo democrático do “bem comum”. Muitas vezes é na resistência ao “novo” que “se progride”, mais do que na aceitação acrítica de tudo o que vem com esse rótulo. Outras vezes, não.
Para nos mostrar que as coisas na história concreta não são assim tão simples basta lembrar-nos do sucesso de instituições consideradas caducas, velhas e ultrapassáveis, a começar pela monarquia nos países europeus, que muita gente dava como extinta ou em extinção há dezenas de anos. Ou na mais improvável aliança como a que fizeram grupos de activistas LGBT com um dos mais “arcaicos” sindicatos ingleses, o dos mineiros, na luta contra Thatcher. Ou, ainda mais significativo nos dias de hoje, a contínua resistência operária contra a introdução do “científico” sistema Taylor nas fábricas, retratada nos Tempos Modernos de Charlot. “Modernos”, tão modernos, que entusiasmaram o senhor Ford e Lenine e Estaline.
O anátema do “velho” é hoje um instrumento do conflito social usado como classificação para homens como Jeremy Corbin ou Bernie Sanders que são o “velho Labour” ou o “velho socialismo dos anos 60”, para os jornais em papel que estão caducos, porque ler em papel está “ultrapassado” por “ler” nos telemóveis, para justificar a desregulação, a Uber, o fim da privacidade, o trabalho precário, tudo aquilo a que nos temos de “habituar”, porque é o “mundo novo” que as “novas” tecnologias e globalização trazem inevitavelmente, tornando “ultrapassado” as soberanias, o proteccionismo, as nações, e por aí adiante. Não estou a misturar coisas não misturáveis, bem pelo contrário, estou a uni-las exactamente pelo modo como elas são usadas no debate político. Veja-se, por exemplo, os argumentos contra o "Brexit" ou Trump, tal como são usados por este novo internacionalismo europeu, que aceita o TTIP e o CETA, mas mete os seus refugiados em várias “selvas”.
Na verdade, aquilo a que Trotsky chamava com desprezo o “caixote do lixo da história”, uma típica frase desta maneira de pensar, é capaz de conter mais “novidades” esfuziantes do que “velhas” sobrevivências e como se vê o “lixo” mexe-se. Foi do “caixote do lixo da história” que se levantaram muitos milhões de eleitores de Trump, dos campos ignorados pela nossa ideia da América, das cidades industriais póstumas, de uma coorte de pessoas a quem a crise financeira tirou as casas e os rendimentos e as fez passar de uma vida que lhes parecia mais digna para outra muito menos digna. Não adianta ver apenas as estatísticas do emprego, ou as melhorias da Administração Obama – tem de se ver como estas pessoas foram colocadas em guetos reais e virtuais e se sentiram desapossados do poder por “eles”. O mundo deles era “velho” disseram-nos, queriam fábricas e indústrias “ultrapassadas”, explicaram-nos como os sindicatos “resistiam” ao “progresso” em nome das suas corporações reaccionárias, todos os dias nos dizem como as mais importantes decisões devem ser tomadas in camera (típico argumento dos dias de hoje na União Europeia), e depois surpreendem-se que, órfãos de representação, se voltem para quem lhes aparece à frente e lhes dá inimigos reais e imaginários, Washington e os emigrantes, duma mesma assentada.
Trump foi atacado à esquerda e à direita na Europa. A esquerda mais radical não o queria ver nem pintado pelo seu desprezo por muitas das causas “fracturantes” que substituíram nessa esquerda as causas sociais do “passado”; e noutra parte da esquerda, como aconteceu com muitos partidos sociais-democratas e socialistas, há demasiados compromissos com a agenda económica e financeira dos grandes interesses que capturaram há muito o sistema político. Hillary Clinton era por isso a sua candidata, com aquela carreira de conúbio que a fez a candidata de Wall Street e dos “mercados”.
A direita queria pôr-se a milhas daquilo que percebia ser o lado revolucionário e anticonservador de muito do que Trump dizia. Andou a lavar as mãos de Trump durante meses, tomava como um insulto qualquer associação a Trump, comportava-se como o Partido Republicano nos EUA. Hoje, a direita está rapidamente a reciclar-se no pró-trumpismo porque lhe agrada a “reversão” de muita legislação social, a proibição do aborto, a vingança contra os media, os intelectuais e a esquerda dos anos 60, que é um dos seus inimigos predilectos, mas acima de tudo agrada-lhe, mesmo que o não diga, o pendor claramente autoritário de Trump. Basta ver a evolução do conteúdo dos artigos portugueses no Observador, o farol da nossa direita, para se perceber a rápida adesão a Trump.
A vontade de mudar, o elemento mais decisivo nestas eleições, foi parar às piores das mãos, mas foram as únicas que lhes apareceram. Quando Bernie Sanders, outro “antiquado”, cuja candidatura “falava” para estas mesmas pessoas, foi afastado – conhece-se hoje o papel de um conjunto de manobras dos amigos de Hillary Clinton no Partido Democrático –, ficou apenas Trump. E, como já disse, não tenho a mínima simpatia por Trump, a mínima. Mas tenho uma imensa simpatia pela vontade de mudar, que tanta falta faz nos dias de hoje nas democracias esgotadas na América e na Europa.