Símbolo relutante, herói imperfeito

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A piscina da casa de Rialto Jay L. Clendenin/Los Angeles Times/MCT

Os acidentes marcaram a sua vida e também a sua morte - afogou-se na piscina. Um fim trágico para o homem que há 20 anos mostrou à América que a luta pelos direitos cívicos ainda estava incompletaTexto de Rita Siza

A edição especial do jornal Los Angeles Times que assinalava o 20.º aniversário dos piores motins urbanos da História dos Estados Unidos incluía um grande perfil de Rodney King. É o homem cujo brutal espancamento por quatro agentes da polícia, posteriormente absolvidos de qualquer crime, esteve na origem do violento levantamento popular contra a mistura explosiva de discriminação racial, arbitrariedade e prepotência policial que imperava na cidade. "Um símbolo relutante", descreveu-o então o LA Times, reflectindo sobre a sua importância no contexto dos motins.

Também um homem acossado e atormentado pela memória dessa noite e até, possivelmente, um oportunista que usou o incidente para justificar os seus defeitos e falhanços pessoais e procurava explorar e lucrar com a ocorrência - completaram agora os jornais, ao escrever o seu obituário.

King morreu afogado no domingo na piscina de sua casa em Rialto, um subúrbio na zona leste de Los Angeles. Tinha 47 anos.

"Não estudei para ser Rodney King", explicou ele ao grande diário da sua cidade, admitindo algumas qualidades e abraçando, igualmente, muitas vulnerabilidades.

Rodney Glen King era um trabalhador da construção civil, desempregado e em liberdade condicional, que conduzia embriagado e em excesso de velocidade na noite de 3 de Março de 1991. Tinha saído há pouco tempo da cadeia, onde cumprira o primeiro de dois anos de pena por roubo e agressões num supermercado. Quando a patrulha de trânsito o detectou a 160 quilómetros por hora, iniciou uma perseguição. Em vez de parar, King acelerou para fugir às autoridades - a polícia de Los Angeles (LAPD) também já seguia no seu encalço.

Por que é que fugiu? Vinte anos depois, King reflectia sobre a sua decisão impulsiva. "O meu pai era do Sul, e durante toda a infância ouvi-o dizer: se a polícia estiver atrás de ti, não deixes que te apanhem ou matam-te. Naquele momento foi como se o meu pai estivesse ali, a lembrar-me que nos odiavam por sermos negros", contou à Newsweek.

A fuga durou 12 quilómetros. King parou o carro no Foothill Boulevard - dois passageiros saíram imediatamente, mas o condutor permaneceu ao volante. Quando deixou o veículo, o seu comportamento foi "errático": começou a dançar, a acenar para o helicóptero da polícia que o vigiava do alto. Em segundos, foi imobilizado pelos polícias. E já no chão, sem capacidade de reacção, foi submetido a descargas com armas taser e mais de 50 golpes de bastão e pontapés. Resultado: onze fracturas no crânio, danos neurológicos irreversíveis, dentes e ossos partidos e lesões no fígado.

O violento espancamento foi captado em vídeo por George Holliday, que se apercebeu da confusão e filmou tudo da varanda do seu apartamento. As imagens da agressão - 81 segundos - rapidamente chegaram às cadeias televisivas norte-americanas. Como escreveu o colunista Clinton Yates, do site The Root, Rodney King transformava-se, nesse momento, na primeira estrela mundial de um género ainda desconhecido: a Reality TV.

E contra a sua vontade, tornava-se também no símbolo da desigualdade e abuso racial da América dos anos 90: o seu retrato, prostrado, esmagado no chão, era também o retrato de um país onde a luta pelos direitos cívicos permanecia incompleta.

Um ano mais tarde, a absolvição em tribunal dos polícias que o agrediram (decidida por um júri integralmente composto por brancos) fez explodir a tensão racial em Los Angeles. Uma multidão formou barricadas contra a polícia. O condutor branco de um camião foi arrancado do veículo e espancado durante 20 minutos. Gangues enraivecidos começaram a atacar - mais de 150 edifícios arderam em poucas horas.

Os motins alastraram pela cidade, com saques de lojas, destruição de escritórios, tiros na rua. O mayor de Los Angeles decretou o recolher obrigatório; o governador da Califórnia chamou a Guarda Nacional. Mas a panela de pressão continuou a assobiar: cinco dias de violência, destruição, e a mais absoluta anarquia. Quarteirões inteiros da zona sul de Los Angeles foram dizimados: mais de sete incêndios, mais de 2300 feridos, mais de mil milhões de dólares de prejuízos.

Rodney King nunca conseguiu ultrapassar o trauma. No pátio de casa, tinha pintadas em negro as duas datas, 31/3/91, o espancamento; 29/4/92, a sentença do tribunal. A sua ideia era acrescentar outra inscrição ao seu memorial privado: 54, o número de pessoas que morreram nos motins raciais de Los Angeles. "Até pensei em pintar o número na parede da piscina, mas achei que era de mais. Já chega de morte", disse ao jornalista Kurt Streeter, em Abril.

Com a cidade a arder, e as tropas e os tanques na rua, Rodney King apareceu a lançar um apelo à calma e à legalidade. Encolhido, amedrontado, desconfortável, ignorou o guião que lhe tinha sido entregue por advogados. "Não nos podemos dar todos bem?", atirou. "Não podemos?", repetiu. "Nada disto está certo. Não está certo e não vai mudar nada", balbuciou.

A mesma pergunta voltou a ser feita há pouco mais de três meses, quando um adolescente negro da Florida, Trayvon Martin, foi morto por um cidadão branco envolvido no patrulhamento civil de um bairro residencial. Esse incidente - e o 20.º aniversário dos motins - "ressuscitou" King na psique dos americanos. O seu telefone voltou a tocar, chamadas constantes de jornalistas e produtores de todo o país a pedirem um comentário.

Os Estados Unidos da América reencontravam-se com o último "herói acidental" do movimento pelos direitos cívicos: o homem que recusara ser uma vítima, que depois da violência preconizara a paz e o entendimento. "Rodney King tinha-se tornado uma lenda viva. Era a personificação do caminho e da vida dos negros americanos. Ele representava a promessa e a dor de ser um homem negro na América - alguém que de um momento para o outro podia perder toda a esperança", explica Michael Eric Dyson, professor de Sociologia da Universidade de Georgetown.

Se dúvidas houvesse quanto ao seu estatuto, basta ler as reacções à notícia da sua morte (que a polícia está a tratar como acidental). "Rodney King era um símbolo dos direitos cívicos e representava a luta contra a brutalidade policial e a perseguição racial que ainda é preciso travar", decretou o reverendo Al Sharpton em comunicado.

Para o chefe da polícia de Los Angeles, Charlie Beck, King tem um lugar especial na história da cidade e do seu departamento. "O que aconteceu naquela noite fria de Março há mais de duas décadas mudou-me a mim e à organização que lidero, para sempre. E o seu legado não deveria ser o dos problemas e lutas da sua vida pessoal; devia ser da profunda mudança - no sentido positivo - que a sua existência trouxe a esta cidade e a esta polícia", destacou.

Há dois meses, Rodney King lançou uma autobiografia: The riot within: my journey from rebellion to redemption (O motim interior: a minha viagem da rebelião à redenção), na qual fala dos demónios pessoais com que conviveu ao longo da vida, antes da noite fatídica em que foi espancado e depois. "Sinto-me feliz por ter escapado, estive a esta distância da morte e safei-me", dizia ao repórter do LA Times, com o indicador e o polegar afastados dois centímetros para reforçar o efeito dramático da descrição.

King não se referia só aos acontecimentos de 1991. Essa foi uma de muitas escapadelas. Durante anos, viveu numa espécie de limbo, empurrado pelo consumo de álcool e drogas (uma constante na sua vida desde a adolescência) até essa linha de limite. "O que eu digo às pessoas é que não sou perfeito e que nem sempre tomei as melhores decisões na minha vida. Aliás, acabei por cometer os mesmos erros muitas vezes, umas atrás das outras."

As dores, os pesadelos, a perda de memória não foram um exclusivo da violência policial de que foi vítima. Em 1994, Rodney King foi ressarcido pela justiça com uma indemnização de 3,8 milhões de dólares. Lançou então uma editora discográfica de hip-hop, que viria a falir.

Um ano depois dos motins, sofreu um violento acidente de automóvel: bêbado, espetou-se contra um muro. Entrou para uma clínica de reabilitação, mas o problema não foi resolvido. Dois anos mais tarde, um novo acidente de carro e outra vez a prisão - 90 dias de pena por tentativa de atropelamento da mulher. Em 2003, o filme repetia-se, apanhado a passar um vermelho, em excesso de velocidade, "sob a influência" de drogas. E de novo, em 2007 ou 2010, o seu nome em relatórios da polícia por envolvimento em tiroteios acidentais, despistes acidentais ou consumos acidentais.

"É muito fácil desqualificar King como um toxicodependente, um criminoso, eventualmente até como uma caricatura dele próprio. Quando comparado com outros líderes do movimento dos direitos cívicos, claramente não se encaixa no molde. Não foi um pastor, não viveu a vida de um activista, nunca teve aspirações políticas e concorreu em eleições", escreve Clinton Yates. Não será pelos seus "feitos" que será recordado. "Foi a admirável honestidade e candura com que lidou com as suas fraquezas que fez dele um herói", argumenta.

Rodney King queria que o seu rosto fosse o do perdão e não o da vingança. Foi isso que disse numa entrevista à rádio KPCC há dois meses: "Não queria ir para a cama com toda aquela raiva todos os dias. Queria que as coisas pudessem ser melhores".

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