Braço-de-ferro entre Rússia e EUA trava adopção de centenas de crianças
Lei que entra em vigor nesta terça-feira proíbe adopção de crianças russas por famílias americanas. Diploma foi promulgado em retaliação pelas novas directivas de Washington sobre os abusos dos direitos humanos
A esperança de centenas de crianças russas, que são órfãs ou foram abandonadas pelos seus progenitores, de vir a integrar uma família caiu por terra nesta semana, depois do Presidente Vladimir Putin ter promulgado uma controversa proposta de lei que inviabiliza todos os pedidos de adopção provenientes dos Estados Unidos da América.
Apesar de só entrar em vigor amanhã, a nova lei, que foi aprovada em retaliação por novas directivas de Washington relativamente a casos de abusos dos direitos humanos na Rússia, suspendeu imediatamente todos os processos em trâmite: seis crianças, cuja adopção já tinha sido ratificada em tribunal, foram autorizadas a deixar a Rússia, mas outras 46 cujos processos estavam em vias de ficar concluídos já não viajarão para os Estados Unidos, informou o porta-voz da presidência, Dmitri Peskov.
Maria Drewinsky, de Sea Cliff, Nova Iorque, ainda não sabe se o seu processo, já na fase final, faz parte da lista. A fisioterapeuta norte-americana, cuja família é originária da Rússia, pensava que em breve ia ter em casa Aliosha, um menino de cinco anos que vive num dos muitos orfanatos russos. Maria e o marido, que falam com ele todos os dias pelo telefone, visitaram-no duas vezes na Rússia para preparar a mudança para a América. "Temos o quarto pronto para ele, o armário cheio de roupas novas. É o nosso filho", contou ao jornal The New York Times, acrescentando que a notícia de que Moscovo tinha acabado de proibir as adopções a deixou "petrificada".
Calcula-se que cerca de 1500 crianças estivessem na iminência de ser adoptadas - esse é o número de processos de que o Conselho Nacional para a Adopção dos Estados Unidos tem conhecimento. Segundo o The New York Times, mais de 200 famílias já conheciam a criança que lhes tinha sido atribuída. O processo de adopção, que pode custar mais de 50 mil dólares, é habitualmente um teste à resistência e paciência dos futuros pais, que sentem sérias dificuldades em lidar com a burocracia russa. Mesmo assim, muitas famílias americanas submetem-se. Só nos últimos 20 anos, mais de 60 mil crianças russas refizeram as suas vidas nos EUA, segundo os números do Departamento de Estado.
A nova lei, que foi aprovada por unanimidade na câmara alta do Parlamento russo e por larga maioria na Duma, é a resposta de Moscovo à votação pelo Congresso norte-americano do chamado "Magnitsky Act", uma lei que impede cidadãos russos condenados por violações dos direitos humanos de viajar ou deter propriedade nos EUA.
A Administração Obama deu conta do receio de que a iniciativa pudesse "complicar" as tensas relações diplomáticas entre os dois países, mas os legisladores resolveram ultrapassar a oposição da Casa Branca e introduzir essa cláusula numa outra lei que atribuía à Rússia o estatuto de parceiro comercial dos Estados Unidos - o Presidente não pôde evitar a sua promulgação.
A reacção americana à decisão de Putin veio do Departamento de Estado, num curto comunicado que censura que "o futuro de crianças inocentes tenha sido posto em causa por considerações políticas que as ultrapassam". "Já reiterámos às autoridades russas a nossa preocupação pela aprovação desta lei, quer em contactos privados, quer através dos canais diplomáticos", esclareceu o porta-voz Patrick Ventrell.
Mais de 650 mil crianças russas estão oficialmente declaradas como órfãs (algumas porque não têm pais, outras porque foram abandonadas ou retiradas à família pelo Estado), mas segundo o Ministério da Educação e da Ciência russo, só 110 mil vivem à guarda do Estado, em orfanatos e outras instituições (os números são de 2011).
Na mesma cerimónia em que promulgou a nova lei que anula o acordo de adopções com os EUA, o Presidente Vladimir Putin prometeu "modificar os mecanismos de apoio das crianças órfãs" do seu país, com o objectivo de evitar que sejam enviadas para o estrangeiro. "Há muitos países no mundo onde as condições de vida são melhores do que aqui, mas vamos mandar os nossos filhos para lá?", observou.
Segundo explicou à Al-Jazira a responsável da agência de adopções americana New Hope Christian Services na Rússia, os órfãos russos só são "disponibilizados" para adopções internacionais depois de terem sido objecto de um determinado número de recusas por parte de famílias russas: "Muitas destas crianças têm diagnósticos muito complicados, algumas têm doenças muito sérias".