Síria: refugiados de uma guerra esquecida
Desde o início da guerra na Síria, há dez anos, a Turquia já recebeu quase quatro milhões de refugiados sírios. Já não vivem em tendas, mas a pobreza é a realidade de todos os dias.
Há quase dez anos, Husseyin El Osman e a família tiveram de cruzar a fronteira que separa a Síria da Turquia para fugir ao Estado Islâmico. Desde então vivem em Nizip, no distrito de Gaziantep, a meros 30 quilómetros em linha recta de Jerablus, a sua cidade na Síria. Noutra vida, Husseyin conduziu tractores, cultivou campos, fazia o que podia para conseguir dinheiro. Não precisava de ajuda de ninguém. Eram tempos diferentes.
Quando o Estado Islâmico chegou a Jerablus, “começaram a degolar as pessoas com facas”. “Tivemos medo. Depois vieram os aviões do regime para nos atacar. Começaram a raptar as mulheres. Tenho uma filha que podiam levar. Viemos para aqui para proteger a miúda.”
Apesar da proximidade da guerra, deste lado da fronteira encontrou paz, está “vivo e a salvo”. “Continuamos pobres, dinheiro não temos — é o dia-a-dia.”
Aproximamo-nos da casa onde vive a família de Husseyin El Osman e somos recebidos por um grupo de mulheres que fala em voz baixa. As vizinhas despedem-se à pressa enquanto as nossas anfitriãs nos recebem: “Sejam bem-vindos”. Por fora, a casa nada destoa das outras construções do bairro: cada uma com o seu estilo, conforme as possibilidades ou o gosto de quem lá vive. Algumas têm um segundo andar; parte está pintada, mas a maioria não.
Assim que o pesado portão de ferro em tons de azul se abre, conseguimos ver toda a casa. Aqui vivem cinco pessoas. O mais velho é Husseyin El Osman, o patriarca, com 73 anos, mas quem nos recebe é Emine Cesim, de 62, e a filha, Hene, de 26.
Um corredor esconso dá directamente para a cozinha, composta por um frigorifico e um fogão. Não há janelas. Ao lado, a sala, que também faz as vezes de um dormitório porque é a única divisão da casa. Os dois colchões ficam no chão. Há apenas uma cama, onde Ahmed, 28 anos, tenta dormir, tapado por um cobertor. Está ferido nas duas pernas na sequência de um ataque na Síria, e é assim que passa os dias. Pouco mais existe: um móvel com uma televisão antiga e um router da Internet, um ventilador e um cabide com alguns casacos.
Husseyin tem uma agilidade que desafia os seus 73 anos e a sua hérnia discal. Foi às compras e trouxe Fanta para os convidados. Senta-se, levanta-se, serve-nos, vai buscar os seus documentos. Pergunta vezes sem conta se queremos beber ou comer.“Não quero que volte para Portugal a dizer que não a alimentei”, justifica. Acocora-se ao lado da filha, levanta-se para se sentar ao nosso lado. Recebe o neto, que vem da escola: “Ele também fala turco!”, diz orgulhoso. Mostra-nos a identificação dos membros mais velhos da família e percebemos que nos três casacos deste cabide cabem as histórias de todos eles. É lá que ficam os documentos pessoais, médicos, financeiros. E o pai-avô, chefe da família e guardião destes papéis, apresenta-os com orgulho, beija-os. São as provas de que existem.
“Eles gostam de nós e nós deles”
Sobre a vida durante a guerra civil — ou “os problemas”, como se referem ao conflito —, Husseyin recorda o medo. Cruzaram a fronteira de noite, num grupo com quase 100 pessoas. Foram de carro. Tiveram de explicar aos militares que fugiam do Estado Islâmico e corriam perigo. Ultrapassada a vedação, falou com o chefe de freguesia de uma aldeia turca colada à fronteira, que lhes disse para entrarem. Abriram-se as portas: “Foi aí que sentimos que estávamos em segurança”.
Ahmed, ferido, foi transportado pelos soldados. Passada a fronteira, a Turquia arranjou transporte para todos os refugiados. “Dissemos que conhecíamos algumas pessoas em Karsiyaka [Gaziantep] e levaram-nos até lá.”
Passaram mais membros da família para a Turquia, mas, com o evoluir da situação na Síria, alguns já regressaram. Um dos filhos, Ahmad, pai do rapazito tímido que se diverte a ver vídeos no TikTok num canto da sala, voltou para Jerablus para ser polícia. A mãe morreu antes de cruzarem a fronteira. Ahmad casou novamente e agora tem uma família na Síria. Othman, o segundo filho, também voltou para trabalhar numa empresa de petróleo.
Chega algum dinheiro desses filhos, mas é “raro”. O único membro da família que trabalha é Hene na apanha do pistácio, azeitona, alho, o que houver. Para os outros membros, os dias são passados em casa. “Se temos um vizinho doente, levamos uma prendinha, seguimos os hábitos”, afirma o patriarca. A maioria deles são sírios, mas a relação com os turcos é boa: “É como se vivêssemos com os turcos há 100 anos, eles gostam de nós e nós deles.”
Neste momento recebem ajuda em géneros – arroz, bulgur… – e em dinheiro. Recebem-no num cartão de débito que podem usar da forma que quiserem. Foi-lhes entregue pelo Crescente Vermelho turco no âmbito da ajuda da Rede de Segurança Social de Emergência (ESSN), o maior programa humanitário na Turquia financiado pela União Europeia. Quando foi criado, em 2016, recebeu um financiamento de 348 milhões de euros. A última transferência aconteceu em Dezembro do ano passado, mais 352 milhões de euros. A atribuição de apoio usa a estrutura do Ministério da Família e serviços sociais turcos.
Fazem parte dos 1,5 milhões de refugiados na Turquia que recebem dinheiro neste cartão, destinado a famílias com mais do que quatro crianças, com um alto nível de dependência (por exemplo, se tiverem muitas pessoas idosas) e mulheres.
Husseyin sabe disso e não se sente esquecido pela Europa, mesmo que já tenham passado dez anos desde o início da guerra na Síria: “Esta é a bondade de Deus e a vossa bondade. Isto é graças a vocês, vem de vocês.” Recebem pelo menos 1100 liras turcas – quase 63 euros —, um valor que cobre cerca de 40% de um cabaz de compras. Usam o dinheiro para pagar “renda, electricidade, água e Internet”.
É o “suficiente”, diz o chefe da casa. Mas as preocupações estão concentradas noutro lado: precisa de cerca de dez mil liras (quase 600 euros) para a segunda operação do filho. Mostra o cartão do ortopedista que lhe deu o orçamento e que fez a primeira operação. A morada fica noutra parte da Turquia.
Gostavam de voltar à Síria um dia? “Estou bem aqui, nada de guerra, nada de problemas. Voltar para quê? Metem uma bomba num motor qualquer e explode com toda a gente à volta.”
Hene toma a palavra: “Ao início foi difícil porque não sabíamos falar nada, éramos estrangeiros num país estrangeiro. Quando começámos a aprender a língua, a sair com as pessoas, a trabalhar, tornou-se mais fácil.” O pai interrompe: “Quando começámos a falar, a comunicar até foi um alívio psicológico."
A filha continua: “Estamos tão bem integrados agora que já nem vamos à Síria”. Podem, contudo, passar livremente, pelo menos durante as datas festivas. Esta permissão foi mal vista pela oposição na Turquia e levou à sua proibição durante o Id al-Fitr (o fim do jejum do Ramadão) este ano. “Já há seis anos que não vamos, nem pensamos ir visitar”.
Porquê a Turquia?
Há 11 anos, quando a guerra começou, a Turquia recebeu os refugiados vindos da Síria numa óptica de porta aberta. Desde esse ano até à actualidade, o país já acolheu quatro milhões de refugiados – a maioria, perto de 3,6 milhões, são sírios – e tornou-se no país do mundo que mais migrantes recebe. Nessa altura, a Turquia era usada como uma das principais portas de entrada na Europa.
Em 2015, chegou à Europa um número nunca antes visto de refugiados: chegavam não só da Síria, mas também do Afeganistão, Paquistão, Nigéria… Os números começaram a colocar pressão no sistema comum de asilo europeu. A extrema-direita europeia fortaleceu-se com discursos contra os refugiados, especialmente nos países que mais pessoas recebiam, como Itália. A imagem de Alan Kurdi, um bebé sírio que morreu numa praia da Grécia enquanto tentava entrar na Europa, correu mundo.
Um ano depois, em 2016, era anunciado um acordo entre a União Europeia e a Turquia, com o objectivo de limitar o número de requerentes de asilo que chegavam aos países da fronteira europeia.
Foi anunciado um pacote de seis mil milhões de euros no total para “projectos concretos” nas áreas da saúde, educação, infra-estrutura e alimentação na Turquia. Em troca, todos os migrantes que tentassem chegar à Grécia a partir de território turco passariam a voltar para a Turquia, num esquema de um-por-um: “Por cada sírio devolvido à Turquia a partir das ilhas gregas, outro sírio proveniente da Turquia será reinstalado na UE, tendo em conta os critérios de vulnerabilidade das Nações Unidas”, lê-se no documento do acordo. A prioridade seria dada aos migrantes que não tivessem tentado entrar de forma irregular antes.
O acordo favorecia Ancara: não apenas pela lógica um por um, mas também porque se reduziram as regras sobre vistos de forma bilateral entre o grupo dos 27 e a Turquia e se reacenderam as conversas sobre a possível adesão da eterna pretendente à União Europeia. Para Bruxelas, os ganhos também eram óbvios: reduzia-se a pressão dos migrantes nos países da fronteira e mostrava-se que a União Europeia ainda falava a uma só voz.
Nos últimos anos, porém, Ancara tem mostrado que, cada vez mais, precisa de uma acção concreta. Em 2020, Erdogan ameaçou deixar entrar centenas de milhares de migrantes para a Grécia. Tratou-se de uma tentativa de obter mais apoio ocidental na Síria e um pedido para que a Europa “pegue na sua parte do fardo”.
Em 2021, a UE anunciou o envio da segunda tranche de três mil milhões de euros, que servirão para financiar projectos até 2025 através do mecanismo de apoio de refugiados na Turquia. Já em Junho de 2022 foi transferida uma parte desse pacote: 50 milhões de euros. O objectivo é continuar a financiar “serviços de saúde especializados”, “aconselhamento legal e apoio psicossocial, assim como o acesso à documentação civil.”
“Olhem para nós: somos três pessoas, feridas de guerra, na mesma casa”
Omar Kafrantony tem dez anos e já sabe o que quer ser quando for grande: pintor. Ainda só está no 3.º ano da escola, mas o talento já lhe é reconhecido — a professora elogia as pinturas e decora as paredes da sala de aula com as suas criações.
Na escola, é o único com uma amputação. Também é o único com uma prótese, mas diz que não se sente diferente dos outros miúdos, agora que até pode brincar à apanhada com eles.
Tinha quase dois anos quando um ataque com uma bomba de barril à casa onde vivia, em Saraqib, Idlib, no noroeste da Síria, lhe roubou uma perna. A mãe perdeu as duas. A irmã ficou desfigurada. Em 2017, com o conflito em Idlib, as respostas na área da saúde já não chegavam. Saíram.
Omar vive agora em Reyhanli, na província de Hatay. Vai à escola, passa as tardes numa espécie de catequese islâmica — onde aprende árabe a partir do Alcorão — tem uma rotina normal para uma criança de dez anos. Os pais tentam que ele e os seis irmãos não percam a ligação à Síria.
A fronteira está a apenas a três quilómetros em linha recta. Aqui os turcos também falam árabe, o que facilitou a integração. Vivem na Turquia desde 2017 quando as coisas “se complicaram” na Síria. Decidiram vir quatro anos depois do ataque que feriu Omar, a mãe Rehana e a irmã Lojain, e matou um dos irmãos – Othman –, os avós e uma tia paterna. Todos os sobreviventes ficaram dependentes de cuidados de saúde em diversos graus.
Mahmod, o pai de Omar, parece hesitar ao dizer que passaram a fronteira de forma “não oficial”. A cobertura mediática do ataque que os feriu pôs-lhes os holofotes em cima. Em 2017 saíram, mas logo depois passaram três meses num limbo legal — e três meses para quem precisa de cuidados de saúde é muito tempo. Vieram para Reyhanli por causa do centro da Relief International, que já conheciam antes. “É famoso”, diz Mahmod.
É neste centro que nos encontramos. Aqui, atende-se quem precisa de próteses, de fisioterapia, de apoio psicológico (nas zonas de conflito, uma pessoa em cada cinco sofre de problemas de saúde mental, segundo a Organização Mundial da Saúde). Há também uma pequena oficina, onde se produzem todas as componentes das próteses e ortóteses e se fazem acertos. Hoje não está muita gente. Apenas os casos mais urgentes tiveram de vir à clínica. Quando entramos na oficina, vemos um funcionário a trabalhar numa pequena ortótese decorada com imagens do universo Hello Kitty. A maioria das pessoas que precisam de próteses são adultas, mas há mais de 700 crianças inscritas.
A maioria dos beneficiários são sírios. A maioria dos trabalhadores também. O árabe é a língua franca aqui.
Samer Al-Masri trabalha neste centro desde que veio para a Turquia, em 2012. É técnico de próteses e ortóteses e guia-nos através do labirinto de gesso e resina que compõe este lado do centro. Veio de Homs, mas saiu do país com os três filhos porque “a vida começou a tornar-se muito difícil”. Aqui, tem um trabalho que lhe permite pôr os filhos a estudar e orgulha-se disso. “Este centro é muito especial.”
“Estes serviços são únicos e ficamos felizes quando ajudamos os beneficiários que não têm dinheiro, permitindo que tenham acesso a um serviço que é caro no privado. Especialmente quando os beneficiários têm duas amputações. Se não recebessem este serviço e estes dispositivos, iam apenas ficar no chão ou confinados a uma cadeira de rodas.”
Omar vem ao centro quase todos os meses. Precisa de fazer a manutenção e substituir algumas partes com desgaste mais rápido, como a protecção de látex que impede que a prótese toque na pele, descreve o pai que aperta a perna do filho com carinho. Crescer com uma prótese não é simples. A juntar às cirurgias de correcção de amputação junta-se a deformação do outro pé, que lhe causa dor.
Mahmod é ferreiro e o único ganha-pão da casa. “Mas com três pessoas em casa a precisar de cuidados médicos, não consigo ficar num trabalho durante muito tempo”, diz. Da última vez que precisou de levar a filha a Gaziantep, teve de se ausentar quatro dias e quando voltou não tinha trabalho. Trabalha sem contrato e ganha sete dólares por dia, o que, num país onde a taxa de inflação em Junho chegou aos 78% e que ainda lida com as consequências da pandemia, se torna curto.
Arranjar trabalho está difícil até para os turcos e pior para quem vem de fora. E, a partir do momento em que entram no sistema de trabalho formal, perdem o acesso a apoio em dinheiro. Actualmente, recebem o apoio em cartão de débito da ESSN, mas para terem acesso ao valor mais alto precisam de um relatório médico que comprove a deficiência de Omar. O que não é fácil de obter porque a lista de espera para consultas no hospital é longa.
Viver com Omar obriga a procurar uma casa com certas especificações. Não pode ter escadas “porque quando ele anda, salta e isso é incómodo para as outras pessoas” e era bom que tivesse um jardim. Vivem numa casa com essas especificidades, mas sem condições. “Chove dentro de casa” e os pais temem que partes do tecto caiam em cima dos meninos, “como acontecia na Síria”.
Não conseguem sair. Não têm uma rede de apoio porque o resto da família está no sul da Síria e não os consegue ajudar. Os vizinhos tentam fazer o que conseguem. Rehana diz que tem uma vizinha turca que é “muito boa companhia, muito boa” para ela. “Volta e meia vai comprar coisas para os miúdos, vê o que eles precisam.”
Para além da parte física, também recebem apoio psicológico sempre que vêm para uma consulta. “Por causa da guerra, toda a gente ficou com o psicológico em baixo”, conta Mahmod, mas também “devido à falta de recursos”. “Toda a família está à beira de um ataque de nervos”, afirma o chefe de família. Rehana defende-o, a cumplicidade com o marido é palpável: “Olhem para nós, estamos aqui três pessoas, feridas de guerra, na mesma casa. O meu marido não consegue tomar conta de tudo.”
“Eu não fugi por ter medo — fugi pela minha filha”
Dos seis filhos que Neirus Elfandi, 39 anos, deu à luz, apenas quatro estão vivos. Kasim, que teria 15 anos se fosse vivo, morreu no mesmo ataque que vitimou o pai e que destruiu a casa onde todos viviam. Neirus estava grávida de três meses. Metin, que ainda estava na barriga da mãe quando o ataque aconteceu, tem agora quase quatro anos.
Sem casa e sem apoio, Neirus saiu de Alepo para Idlib. Viveu num campo de refugiados. A intenção não era vir para a Turquia, era ficar na Síria, mesmo que fosse num campo. A deslocação só aconteceu porque a filha Lena, dez anos, foi diagnosticada com cancro na medula e teve de cruzar a fronteira para receber tratamento.
Neirus teve de fazer a escolha impossível: acompanhar a filha doente ou ficar com os outros quatro filhos. Escolheu ficar com eles. Mandou a filha sozinha para a Turquia, mas com a promessa de cruzar a fronteira quando pudesse. Tardou alguns meses, mas conseguiu. Os tratamentos é que ainda não tinham começado: “A situação era mesmo muito má.” Lena não resistiu à espera.
A casa de Neirus fica na tórrida cidade de Adana, num prédio estreito perdido nas traseiras de uma rua principal. Vamos galgando as escadas e é como se se abrissem janelas para a vida das famílias que vivem em cada andar. No rés-do-chão, uma bicicleta cor-de-rosa de criança. No andar seguinte, com as paredes pintadas de azul, pilhas de madeira. No último, onde fica o apartamento de Neirus, a tinta desaparece, deixa de haver corrimão nas escadas e azulejos no chão.
Entramos e vamos directos à sala, onde uma televisão pequena e barulhenta passa desenhos animados. Os brinquedos das duas crianças mais pequenas estão no chão. Bonya, de cinco anos, e Metin, de três, parece que estão ligados à ficha. Dividem a atenção entre a televisão e os brinquedos, mas não chega – querem correr, querem gritar, querem sair.
Neirus só teve uma imposição para esta entrevista: não quis ser entrevistada por homens. Por isso estamos quase sozinhas. Fala com uma sinceridade que, a espaços, é desarmante. “Eu não vim para a Turquia por ter medo”, diz. “Eu vim para a Turquia pela minha filha.”
Veio para aqui, mas não sabe nada sobre a cidade. Passou os primeiros meses no hospital, com Lena. Foi difícil conhecer pessoas e fazer amizades. Agora, vive de ajudas. Não tem forma de trabalhar: “Na Síria trabalhava quatro horas por dia com o algodão, empacotava-o. Aqui, pedem-me que trabalhe 12 horas por dia. Não consigo passar tanto tempo no trabalho”, diz. “Eu sou a mãe e o pai dos meus filhos.”
Recebe ajuda para pagar a renda, mas esse auxílio tem os dias contados: seis meses. A GOAL, uma associação com financiamento europeu que trabalha na área de Adana, dá aconselhamento jurídico e ajuda aos refugiados da zona, focando-se na população nómada. Só nesta cidade de mais de dois milhões de habitantes vivem 256.497 sírios em acolhimento temporário. À família de Neirus, ajuda-a com materiais escolares e medicamentos. O Crescente Vermelho também a ajuda: com óculos para a filha e 1250 liras turcas em cartão de débito. “Aqui é tudo mais pesado do que na Síria.”
“Eu quero mudar de casa, mas não consigo por causa da questão financeira. Às vezes peço dinheiro às pessoas que conheço”, admite. “Já pensei em matar-me porque não consigo ajuda para mim nem para os meus filhos, não consigo fazer nada por mim nem pelas crianças.”
Diz que sente o preconceito na pele. Na procura de casa, não é apenas o dinheiro que pesa, é também a origem. Diz que se torna mais difícil por ser síria. No dia-a-dia, os filhos sofrem discriminação na escola pela nacionalidade: “Afectou-lhes a vida social.”
“Por todas estas razões, sempre quis viver na Síria. Depois da guerra, quero voltar. Já tentei voltar, mas não consegui por causa da guerra.”
“Há tanta gente presa da qual não sabemos nada”
Nasra Dahir, 45 anos, não conhece o paradeiro do marido desde 2013. Tanto quanto sabe, ainda “está preso”, mas não consegue ter a certeza. Também ela esteve presa para interrogatório durante cerca de três meses. Dois meses em Adra, nos arredores de Damasco, e um mês nos serviços de segurança do Governo sírio.
Nunca foi torturada, “mas ouvia os gritos dos homens que estavam a ser torturados noutras salas”. “Isso afectou-me. O que aconteceu foi um choque”, lembra. “Quando eu chorava, os guardas viam, através das câmaras de segurança, e iam perguntar-me porquê, iam mandar-me calar. Eu respondia que tinha medo, que ouvia os sons das pessoas a serem torturadas.”
A família pagou-lhe a fiança, restituindo-lhe a liberdade, e desde então soube que tinha de fugir. “De cada vez que me movia em Damasco, os serviços de segurança paravam-me e começavam a fazer perguntas, assustavam-me. De todas as vezes que me paravam, levavam-me para um interrogatório.” Passou a fronteira por Hatay de forma ilegal, em 2017. Chegou a Istambul, onde vive agora. E a única certeza que tem é que fará de tudo para nunca mais ser presa.
Vive em Esenyurt, Istambul, uma zona onde vivem muitos migrantes, tanto turcos como estrangeiros, vindos da Palestina, Irão, Egipto e, claro, Síria. Uma das razões que atraía os migrantes eram as rendas baixas, mas isso está a mudar. Também é cada vez mais difícil arranjar sítio para viver: desde Dezembro que, em 16 províncias da Turquia (onde se inclui Istambul e Ancara), há um limite aos registos de protecção internacional e temporária. Na prática, equivale a uma região fechada a migrantes se a percentagem de refugiados representar mais do que 25% da população.
É num centro para mulheres migrantes e refugiadas deste bairro que encontramos Nasra. Em Dezembro de 2021, descobriu a Mavi Kalem, uma associação direccionada para o empoderamento feminino através da aprendizagem da língua turca, mas que oferece também aulas de pintura ou de artesanato como croché ou bordados. Vem cá para ter aulas de turco. “A maioria das mulheres daqui estão a viver com as filhas e os filhos que crescem sem um pai porque estão na prisão ou na guerra, a lutar.”
É o caso do marido de Nasra. Na Síria, trabalhava na área da construção. Ela fazia vestidos de noiva. “Tínhamos tudo: casa, carro, uma boa vida. Perdemos tudo por causa da guerra. O Governo da Síria ficou-nos até com as contas do banco.”
Vivia em Darayya, uma área rural nos arredores de Damasco. Quando lhe perguntamos por que razão é que o marido foi preso, revela apenas que estava “numa praça, com os amigos, as autoridades chegaram lá e prenderam-no”. Diz que a origem – Darayya – foi o motivo. Algumas perguntas depois, explica porque é que ela também ia sendo presa: “Alguém escreveu um relatório contra mim e a minha família. Diziam que conhecíamos alguém do Exército Livre da Síria”, apoiado pela Turquia e que se opõe ao regime de Bashar Al-Assad. “Diziam que trabalhávamos contra o Governo, que odiávamos o Governo. Esse relatório, tudo o que estava lá escrito, era negativo contra a minha família. Por isso, o juiz disse-me que ia para a prisão se não contasse toda a verdade, estava em sarilhos e ia ser presa.”
O primeiro filho já tinha vindo para a Turquia, em 2016, de forma legal. Ela passou clandestinamente, “por haver uma procuração, uma ordem do tribunal”. Agora vive com os dois filhos, que já trabalham. A juntar aos salários dos dois, a família recebe apoio monetário de uma associação internacional que ajuda pessoas que já estiveram detidas na Síria – cerca de 1000 liras por mês. “Há tanta gente presa da qual não sabemos nada”, afirma. O marido é uma dessas pessoas há nove anos.
É quando lhe perguntamos se voltaria à Síria que a figura estóica de Nasra desaparece: “Se houvesse segurança, sim. Voltaria para o meu país.”
Por estes dias, Istambul é uma panela de pressão. Na “capital europeia” da Turquia, os ataques à comunidade refugiada aumentaram depois do Id al-Fitr. Em Maio, Erdogan, respondendo à pressão crescente, anunciou as suas intenções de deslocar quase um milhão de refugiados de volta para as zonas seguras da Síria. “Se houver uma mudança política na Turquia e quiserem devolver-nos”, continua Nasra, “eu vou decidir não ir para a Síria, vou tentar ir para a Alemanha ou outro lado qualquer. A Síria não é segura para nós”.
Se voltar, “serei detida”, diz já entre lágrimas. “Nunca irei para a prisão, não gosto de ser confinada.”
Quase depois, pede desculpa por ter chorado, por ter falado demais. E expressa um desejo: “Rezo para que o meu marido já tenha morrido, para não ser mais torturado. Isso ou que volte para mim.”
“Eles viveram aquilo e nós isto”
Elham Elhakim, 66 anos, e Roula Savvan, 36 anos, são mãe e filha e ajudam como voluntárias na Mavi Kalem. Ambas são palestinianas. “Eu nasci depois do dia da nakba, [palavra para “catástrofe”, para designar o êxodo palestiniano de 1948]. Não sei como é a Palestina. A minha mãe e o meu pai são de Haifa. Quando a nakba começou, foram para a Síria”, começa por dizer a matriarca. O mesmo aconteceu com a família do marido — que nasceu antes da nakba, em 1945 —, originária de Safed.
“As nossas famílias viveram a nakba e a naksa [nome para o êxodo palestiniano de 1967, após a vitória israelita da Guerra dos Seis Dias] e passaram um mau bocado. Também passámos o mesmo problema na Síria: eles viveram aquilo e nós isto.”
Estudou Análise Alimentar, mas fez-se jornalista e activista. Escreve para um jornal na Síria. Sempre viveu na Síria: casou na Síria, teve quatro filhos na Síria. Viveu em Homs e no campo de Yarmouk, criado em 1957 nos arredores de Damasco e atacado e ocupado pelo Estado Islâmico desde 2015 e até 2018. Ali viviam muitos refugiados palestinianos. Foi aí que Roula nasceu.
Roula estudou Belas Artes e, ainda na Síria, foi professora durante sete anos. Trabalhava com a UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo), com as raparigas que tinham sido deslocadas no campo Yarmouk. Quando o apoio dos Estados Unidos às actividades da UNRWA acabou, ela foi dispensada e começou a equacionar a saída do país. Os irmãos tinham emigrado para a Alemanha e não conseguiam voltar para os visitar. “Na Síria, éramos perseguidos, éramos desrespeitados e degradados”, alega. Não havia electricidade nem água; a economia era má. “Consideravam-nos sempre a mais, pessoas para além deles”.
A família chegou à Turquia em 2021. Não pensam em voltar: “Nunca voltarei para a Síria, independentemente de tudo. Mesmo se a situação política mudar aqui na Turquia. Sou palestiniana e não síria”, afirma Roula, enquanto mexe no seu colar, com um pendente de resina com o mapa do país do coração. “Eu cresci numa família que me ensinou a amar a Palestina, o país onde pertenço e nunca me esquecerei dele”, afirma. A mãe corrobora e explica que, como saíram em 1948, são considerados refugiados e não podem voltar, de acordo com a lei 242: “Vocês podem visitar a Palestina, mas nós não. Só vejo a Palestina em fotografias e na televisão.”
A jornalista viajou a convite da Comissão Europeia.
Fotografias: Diego Cupolo/UE/ECHO, Umit Bektas, Bassam Khabieh, Khalil Ashawi, Murad Seze/Reuters
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