As vozes da linha da frente
Lucília presenciou os últimos minutos de vida da pianista. Ana não vai esquecer o senhor “rezingão” que pedia que não o deixassem sozinho. Patrícia perdeu o pai no hospital onde trabalha. Sónia viu uma doente dos cuidados intensivos a dançar no dia em que teve alta. O PÚBLICO pediu a 65 profissionais de saúde que contassem, de viva voz, o momento que mais os marcou desde que a covid-19 entrou pelas portas dos hospitais. Estas foram as histórias que eles escolheram. Vamos ouvi-las?
A sua voz é a única coisa que eu me lembro daqui [dos cuidados intensivos].
Eu falava muito com ela apesar de ela estar totalmente sedada, eu estava sempre a falar com ela.
- Eu nem me pude despedir dele.
E lembro-me das lágrimas me caírem pela face, e aí ainda bem que estávamos a falar ao telefone. A verdade é que ela me pediu para lhe dizer que ela tinha ligado e, para que ele pudesse acreditar que tinha sido ela a ligar, ela disse:
- Diga-lhe por favor que foi o mô que lhe ligou.
Porque era a forma como eles se tratavam entre si. Ela dizia:
- Não é amor, nem mor, é mô.
- Está bem, pronto, então eu digo-lhe isso.
Assim que entrei no quarto, na próxima vez, disse-lhe.
- Olhe que o mô ligou-lhe e deu-lhe um beijinho.
Era uma pessoa que estava em estado praticamente comatoso, abriu os olhos, olhou para mim, sorriu, e a partir desse dia foi sempre a recuperar, sempre a recuperar.
- Olhe, este oxigénio que a gente está a fazer já não está a ser suficiente, os seus pulmõezitos estão aqui fraquitos, o seu coraçãozito também está aqui a querer uma ajudinha, e isto não vai lá sem a gente levá-la para outro serviço.
E então a senhora disse-me:
- Ahhh, mas eu nem sequer voltei a ver o meu marido, nem a minha filha.
E eu disse:
- Olhe, mas agora isso não vai dar, sabe, porque infelizmente não há visitas.
Ela cuidava da filha deficiente e do marido que já tinha demência e a senhora estava preocupadíssima porque foi o INEM buscá-la, a ela e ao marido, e teve de deixar a filha com os vizinhos. A filha que era a sua bebé, embora já tivesse cinquenta e não sei quantos anos.
- Eu queria levar umas garrafas de água para a pediatria, daquelas pequenas para vocês poderem beber na hora e deitar fora. Porque não podíamos correr o risco de as conspurcar.
- Onde é que as devo entregar?
Eu disse que podia entregar então na urgência da pediatria. Ela disse:
- Não, não, é que são muitas.
Veio entregar 1890. Eu decorei: 1890 garrafas de água.
- Então, senhor Manuel?
- Ai, estou muito triste, veja lá, não tenho roupa para vestir, estes pijamas do hospital...
E eu fiquei a pensar no assunto, mexeu um bocadinho comigo. Então, fui fazer uma comprinhas para o senhor. Pijaminhas, cuecas, meias, umas pantufas e fui oferecer-lhe. O senhor coitadinho começou a chorar e disse:
- Olhe, não sabe o quanto significa este pijama para mim, menina.
Desculpe lá, eu estou um bocadinho comovida porque me estou a lembrar do velhinho, coitadinho. [Disse] para mim:
- A menina vai ficar sempre, sempre no meu coração.
O senhor, passados três ou quatro dias, teve alta e mandou a auxiliar chamar-me para eu ver que ele ia com o pijama que lhe tinha oferecido para casa.
- Olhe, doutora, eu deixei a minha mulher à porta da urgência, só fui estacionar o carro e nunca mais a vi.
A senhora foi directamente para a sala de emergência, da sala de emergência veio para aqui e foi internada logo nos cuidados intensivos.
- Ai, senhora enfermeira, eu nunca mais vejo o meu Carlitos! Ai, o meu Carlitos, que nunca mais o vou ver!
As palavras da senhora parece que me queriam dizer alguma coisa. Provavelmente, a senhora nem sabia da existência do vírus porque nós também não queríamos alarmar... Foi o início de tudo. A senhora foi para uma unidade covid. E, claro, nunca mais viu o Carlitos. O Carlitos, que era o filho com quem ela vivia, o Carlitos que já era um senhor porque estamos a falar de uma senhora com idades ali já na ordem dos oitentas e muitos.
- Doutora Adelaide, nós estamos consigo. A doutora tem 60 anos, portanto não vai para a frente de combate, não vai para lado nenhum. Nós fazemos o trabalho que quiser que façamos e a doutora dirige-nos e diz o que quer que nós façamos.
Eu fiquei comovidíssima com aquilo.
- Guida, estou a afundar-me, mas tenho a sorte de estares ao meu lado, vou calmo e em paz.
E apertou-me as mãos e morreu. Foi o meu segundo doente, e é das coisas que ainda hoje me custa e que me marca.
- OK, são dez e meia, a encomenda chega às onze, nós vamos buscar, não se preocupe.
A doente desceu para os cuidados intensivos, foi ventilada, acabei o meu turno de quatro horas lá dentro e quando saí para a área limpa [riso] deparei-me cá fora com aquilo que tanto angustiava a doente numa altura em que todas as preocupações dela deveriam ser outras e não essa. E, portanto, quando cheguei cá fora tínhamos várias caixas de bolas de Berlim que a doente tinha pedido para nós.
- Filha, eu é que tenho esta idade, mas eu tenho tanto medo de te perder, minha filha.
- Senhor João, temos muita pena, mas temos que o entubar novamente.
E ele respondeu:
- Deixe-me só acabar o meu Sporting, visto que ele vai ganhar a taça e eu acho que nunca mais vou ver o meu Sporting jogar.
- Olhe, tenho a minha filha a viver comigo mais o meu neto, e eu precisava de ir à câmara para pedir autorização para que a minha filha ficasse na minha casa, onde eu tenho a casa alugada, que é uma casa social porque a renda era menor e ela provavelmente terá de ser despejada de lá porque nós não tratamos de nada antes de eu entrar.
Eu infelizmente, apesar de compreender, eu disse:
- Olhe, ó senhor F., vocês não pode sair daqui. Não consegue arranjar maneira de passar uma procuração ou algo?
As visitas estavam proibidas, mas nós facilitávamos, se fosse caso disso. E ele nunca chegou a tratar de nada e passado uns dias teve de ser entubado endo-traquealmente e acabou por falecer, infelizmente para mim numa altura em que eu não estava cá e, claro, fiquei muito triste.
- Então? Como é que foi, como é que estás, como é que te sentes?
E ele estava a dizer justamente isso:
- Pronto, às vezes fazia a comida, ou mandava vir, mas passava a maior parte do meu tempo deitado porque havia momentos em que eu nem força tinha para escovar os dentes.
Na sexta-feira dessa semana, entrei no quarto e o senhor respondeu-me com: “Lembro-me dos seus olhos’’. E lembro-me de acabar o turno muito mais feliz, não só porque o senhor estava a melhorar. Ouvi aquela frase e senti de volta todo o carinho que também lhe dei e que me encheu completamente o coração.
- Então, bom dia, como é que está? Vi que passou bem o fim-de-semana, está a melhorar!
E ele, muito seco, muito triste disse:
- Eu não estou bem, estão neste momento a enterrar a minha esposa.
Ouvi aquilo e fiquei congelada. Ficamos assim a olhar para ele, e eu disse:
- Então? Que se passou?
E ele disse-me que a esposa tinha morrido pela mesma infecção no fim-de-semana, noutra enfermaria, e que estava naquele momento a ser enterrada sozinha com o coveiro e que ele não estava e que os filhos também não estavam porque estavam emigrados no Canadá.
- Eu quero esta fotografia para a minha sala.
- Olhe, eu vou ler esta carta que a sua esposa mandou para si e espero que goste.
Dizia coisas do género:
- Eu sinto muito a tua falta, quando estou deitada na nossa cama estou constantemente a esticar o braço à tua procura, tenho uma mágoa muito grande de não te encontrar durante a noite na nossa cama.
E no final desta última frase, em que a senhora dizia que tinha imensas saudades dele, o senhor esboçou, muito ligeiro, mas esboçou um sorriso.
Acabou por ser um momento um bocado emotivo, não para o senhor em si porque ele também voltou ao mesmo estado neutro que estava, mas para mim acabou por ser um momento extremamente emotivo porque eu nunca pensei, em momento algum, que o senhor fosse reagir à minha leitura da carta da esposa.
- O que é que se passa, o que é que é isso?
E eu retirei a máscara e fui dizendo os procedimentos que íamos fazer. Imediatamente ele acalmou-se, fez um gesto tipo ''ok''. No fim, claro, o senhor chorou e é óbvio que também nos veio as lágrimas aos olhos porque ele disse que nunca ninguém tinha tido o gesto tão simples como baixar a máscara e afastar-se para lhe explicar algo.
- Senhor enfermeiro, por favor, cuide muito de mim porque as minhas netas ainda precisam muito de mim.
Nós tivemos oportunidade de telefonar e ela teve a oportunidade de falar com as netas e de explicar o que se passava. Ela foi entubada e pronto, a verdade é que não voltou a acordar e não voltou a falar com as netas.
- E então e o teu irmão?
- Vocês são tão bonitas, aqui no serviço são todas tão bonitas.
E eu disse:
- Oh, dona A., então? Como é que me pode dizer uma coisa dessas se quase nem nos vê, que nós estamos com estas fatiotas, parecemos umas astronautas.
E ela disse-me, quase a chorar:
- Não, eu vejo os vossos olhos e isso basta, porque os vossos olhos mostram-me o vosso coração.
- Mas vocês não querem mesmo uma televisão?
E eles [diziam]:
- Não porque dá só coisas da doença e doentes já estamos nós.
E passaram-nos a pedir se tínhamos o jornal, as coisas todas, percebe? O que tivéssemos para eles lerem… E passamos a trazer os nossos jornais, as nossas revistas temporalmente completamente desfasadas, mas o que interessava era isso, era a sopa de letras para entreter, era o jornal A Bola porque havia muitos homens. Foi a forma que encontrámos de, obviamente os doentes que estavam com a consciência para isso não é, de os motivar e de os fazer passar as longas horas que passaram connosco.
- Não, agora não me apetece, voltem mais tarde.
Fomos ficando e ela disse-me espontaneamente:
- Tenho falta de ar, não parece, mas tenho.
Pronto, tentamos resolver essa parte, fomos-lhe colocar um penso de medicação e tocámos-lhe. Quero acreditar que foi mais que o toque físico porque naquele silêncio ela espontaneamente falou e contou-nos um pouco da sua história. E disse-nos que:
- Eu é que deixei as coisas avançarem, é que deixei a doença andar. Sabe, eu sentia-me muito mal, mas ignorei. Já tive filhos tarde, sabe, e eles ainda eram, ainda são muito novos, queria que crescessem mais um pouco.
E nisto nós perguntamos que idade é que tinham os filhos. E ela disse-nos: 27 e 29.
- Olhe, deixe-me morrer, deixe-me morrer porque eu sei que com esta doença já não vou ver mais a minha família.
Isto fez muita confusão nessa faixa etária. A solidão… para eles aquilo... eles preferiam morrer, eles diziam-nos mesmo.
- Ou fazemos isto ou eles morrem [choro].
Tive um [doente], que por acaso era meu colega, mas podia não ser, que estava na última cama do serviço e que precisava de um ventilador e não havia. E ele tinha noção, estava consciente, orientado. E agarrou-me a mão e disse-me:
- Colega, não me deixes morrer [choro].
E eu ainda hoje me lembro da cara dele a pedir-me isto.
- Meu amorzinho, vamos comer que olhe, o seu marido está aqui ao lado e vai ficar triste, se você não comer.
Ela levantou a cabecinha, viu o marido, e pela primeira vez e eu consegui dar-lhe tudo o que tinha a ementa da comida. Entretanto o senhor piorou, faleceu, e dois dias depois a senhora faleceu também de tristeza, de falta do marido, só chorava.
- Eu também queria ir para a vossa beira, posso? [riso]
E eu:
- Olhe, só se vier com a garrafa de oxigénio e ainda assim acho que isto não vai correr bem.
E ela:
- Ai, mas eu queria tanto. Venham para a minha beira.
E pronto, e lá fomos nós para a beira dela e estivemos um bocadinho na brincadeira com ela.
- Por favor, faça tudo o que puder que eu quero voltar para casa e ver a minha família.
Eu reparei mesmo nos olhos dele que ele estava muito assustado. E às vezes nós pouco conhecemos da doença e ficamos a pensar:
- Eu vou fazer tudo o que posso, mas não posso prometer que vai ficar bem, entende?
Queríamos fazer mais e às vezes não podíamos porque ninguém podia. Não era porque nos faltava meios ou conhecimento, simplesmente não podíamos fazer mais.
- E a doutora é a mestra do meu navio.
E eu perguntei-lhe:
- E qual é o nome do navio?
E o doente respondeu:
- Vamos à Vida.
- Podemos estar de mãos dadas porque esta é a minha esposa.
E assim morreu, de mão dada.
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