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Como um bairro problemático se transformou numa galeria de arte pública

É hoje a maior galeria de arte urbana a céu aberto da Europa, com mais de 46 pinturas nas fachadas e nas empenas dos prédios. O projecto tem obras de artistas portugueses e estrangeiros e tem ajudado a melhorar a imagem do bairro.

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Guilherme Marques
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Só o nome do bairro suscitava apreensão em muitos, desconfiança em alguns. Como uma nuvem negra, há um estigma associado ao bairro de Sacavém: crimes, drogas, violência. Os taxistas recusavam-se a entrar no bairro, os moradores escondiam a sua residência quando procuravam emprego. Esteve abandonado à mercê das más notícias e a intervenção da Câmara era quase nula. Hoje, a Quinta do Mocho tem uma alma nova. A criação do festival de arte urbana O Bairro i o Mundo – feito com dezenas de pinturas nos prédios de habitação – foi um ponto de reviravolta na história da Quinta do Mocho.

“Já estou para vir aqui há imenso tempo mas estou sempre a ser desencorajada pelas pessoas”, conta Patrícia Lopes, uma das participantes das visitas guiadas, que ocorrem mensalmente. “Ainda bem que vim, vou voltar mais vezes”, diz com entusiasmo, afirmando que “o bairro está a ganhar vida, estão a conseguir que as pessoas não estejam fechadas e a desmistificar a má ideia que existe dos bairros sociais”. A Quinta do Mocho faz parte da urbanização municipal Terraços da Ponte e pertence ao concelho de Loures.

“Mostrar o bairro ao mundo e trazer o mundo ao bairro” é o mote da Galeria de Arte Pública da Quinta do Mocho. Depois de alguns anos de ausência por parte da câmara municipal, decidiram revitalizar a zona e organizar o festival O Bairro i o Mundo, em parceria com a associação de teatro IBISCO, realizado pela primeira vez em Outubro de 2014. Na altura, foram seis as pinturas que inauguraram a iniciativa e o sucesso foi imediato. A partir desse ano, começaram a notar-se diferenças na maneira como as pessoas viam o bairro. “Hoje, a Quinta do Mocho é um bairro que tem uma alma nova, recebe visitas de pessoas de dentro e fora do concelho e com muita hospitalidade”, explica a vereadora de Acção Social da Câmara de Loures, Maria Eugénia Coelho. Para além da vertente artística, há ainda um processo de requalificação urbana, nomeadamente na recuperação de espaços verdes.

“O Mocho não é aquele monstro que as pessoas dizem que é”, afirma Deydey, um dos guias e um dos 2800 moradores da Quinta do Mocho. “Temos de mudar mentalidades, estamos todos a trabalhar para mostrar às pessoas que conseguimos fazê-lo em conjunto com respeito e dignidade”, explica, contando que antes não percebia nada de arte mas que agora percebeu que esta muda as pessoas.

“Há três anos não havia nem um táxi a entrar aqui”, afirma o morador, acrescentando que os residentes tinham de percorrer longas distâncias para ter acesso a transportes públicos. Só há pouco tempo é que se conseguiu que o autocarro 300 da Rodoviária de Lisboa passasse a circular no bairro. “Agora, as pessoas têm orgulho em dizer que são da Quinta do Mocho, o ambiente é muito mais tranquilo e os moradores sentem que o pesadíssimo estigma que tinham sobre si está a desvanecer-se”, assegura Maria Eugénia.

A história do Mocho
A primeira visita guiada foi feita em Fevereiro de 2015 e, desde essa data, passou a realizar-se no último sábado de cada mês, gratuitamente. Tem início na Casa da Cultura de Sacavém, onde é feita uma pequena introdução pela vereadora da Acção Social, que começa por contar a história do bairro. “A Quinta do Mocho é um bairro municipal e a sua origem consistiu no realojamento de um conjunto de famílias oriundas de países de origem africana, como Angola, Moçambique ou São Tomé”, diz, acrescentando que eram famílias que, por viverem em outros locais do concelho sem condições, foram realojadas neste bairro de iniciativa municipal.

“Ao longo dos anos, quando se falava na Quinta do Mocho, as pessoas retraíam-se e achavam que aqui só vivia gente má e isso não corresponde à realidade”, sublinha Maria Eugénia, exemplificando que os habitantes do bairro também se levantam cedo para trabalhar, como qualquer pessoa.

As visitas guiadas são apresentadas por quatro jovens moradores do bairro – Deydey, Kali, Kedy e Giovani – e o número de visitantes tem crescido ao longo dos meses. Na de Novembro, estavam presentes mais de 70 visitantes. “Este é o caminho certo na envolvência das pessoas e na procura de soluções”, declara a vereadora.

Na visita tem-se contacto, não só com a arte, mas com as pessoas do bairro, desde as crianças que brincam na rua, à senhora que assa e vende chouriças, ao jovem escritor Osvaldo de Sousa que mostra o seu livro de poesia “Amor sem passaporte nas lágrimas de lusofonia”, uma obra que reflecte a vida na Quinta do Mocho.

A arte da diversidade
Marcelo Gomes foi convidado para pintar e terminou a sua obra no final de Outubro deste ano. Foi feita no edifício de um infantário e a sua pintura é, precisamente, a mão de uma criança a pousar na mão de um adulto, ambas multicolores. “O que eu quis mostrar foi que independentemente da nossa cor ou da nossa cultura, o importante é proteger as crianças dos maus tratos, abandono ou mesmo dos cortes na educação”, explica Marcelo, referindo que foi a primeira vez que fez uma obra desta dimensão. “As crianças dependem de nós mas o futuro depende delas”, conclui.

Stélvia Zamora, de nome artístico Moami, mora a 20 minutos do bairro e é a autora da obra número 46, a mais recente da galeria de arte pública. “O tema desta obra é a multiculturalidade e a globalização”, conta ao PÚBLICO, em frente da sua pintura que tem como protagonista o desenho de um menino com um urso panda por cima. Demorou três dias até estar concluída.

Durante a visita, fica o aviso de Kali, um dos guias: “Se alguma mulher quiser participar, está à vontade”. Das 46 pinturas, quatro foram pintadas por mulheres, duas portuguesas (Tamara Alves e Moami) e duas estrangeiras (Zabou e Maria Noé). Das restantes, destacam-se nomes como Vhils, Bordalo II, Odeith, Slap, Adrés ou Pantónio. “Os artistas de renome nacional e internacional vêm de forma gratuita, acaba por ser também uma forma de intervenção social”, explica a vereadora, referindo que têm em lista de espera cerca de 30 artistas de várias partes do mundo. A câmara disponibiliza um espaço para dormir – uma “residência artística”, como lhe chama Maria Eugénia – e as refeições. Deydey explica que as tintas são oferecidas pela Robbialac e que a câmara fornece o resto do material, como os pincéis e a grua.

As pinturas abordam diferentes temas, geralmente relativos a questões sociais: A discriminação racial, os direitos das crianças, a natureza, a multiculturalidade, a igualdade e também o impacto da arte. Há ainda vários edifícios com pinturas de mochos, em alusão ao nome do bairro, mas também de girafas, cães ou peixes. Esta original galeria pretende mostrar que a diversidade é uma coisa boa pelo que há pinturas para todos os gostos.

Além das visitas guiadas, a Câmara de Loures tem tentado inovar de forma a atrair cada vez mais visitantes ao local. No fim das visitas – que têm a duração de aproximadamente duas horas –, os visitantes são convidados a passar num dos três restaurantes do bairro que estão a confeccionar comidas tipicamente africanas, como cachupa ou muamba. O município encontra-se também a desenvolver um Festival de Arte Urbana, que decorrerá em Junho do próximo ano, um “festival que ultrapasse as fronteiras do bairro e que tenha várias formas de manifestação artística”, adianta Maria Eugénia Coelho.

Apesar de não ter sido o projecto vencedor, O Bairro i o Mundo foi um dos cinco finalistas do concurso europeu Diversity Advantage Challenge, uma iniciativa que premeia pecuniariamente os projectos que consigam atenuar preconceitos existentes. Até a cidade alemã de Nuremberga já se inspirou no projecto desenvolvido na Quinta do Mocho para tornar a sua cidade mais colorida, estando em preparação um plano de arte urbana.

Texto editado por Ana Fernandes

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