O abraço dos que rifaram o coração
Espectáculo de Mónica Calle decorre até domingo no café Bola 13, no Bairro da Sé.
Ao cair da noite, ali no início da Rua Escura, o entra e sai no café Bola 13 anuncia mais uma noite de confissões sobre o amor. Entre bifanas e cervejas, a música latina faz dar os primeiros passinhos de dança, não fosse a música o que junta todas as histórias contadas no espectáculo.
Eu vou rifar meu coração/ Vou fazer leilão/ Vou vendê-lo a alguém/ Não vou deixar o coitadinho/ Viver sempre sem carinho. Lindomar Castilho canta o amor não correspondido talvez por ter vivido uma história de amor com um final trágico. Ironicamente, as palavras do cantor brasileiro foram convocadas para dar nome a um espectáculo que Mónica Calle encena até domingo, no Bairro da Sé. De Lisboa para o Porto, a encenadora partiu de um documentário brasileiro da Ana Rieper que explora possíveis definições do amor "sempre ligadas à ideia da música. Cada actor que vem de Lisboa está a fazer depoimentos muito pessoais e as pessoas daqui estão a intervir. A partir destas histórias está a construir-se um discurso que toca em muitas questões partindo sempre do que é o amor”, explica a encenadora.
O Bola 13 é o cenário mas não há um palco nem uma plateia. Tudo é palco, todos são plateia e intérpretes. “Estamos todos juntos numa conversa”, diz uma das actrizes. Fora do café, à volta da cerveja e do cigarro, reúnem-se actores e espectadores para prestar atenção a Lai Lai, uma figura matriarcal do Bairro da Sé: seis filhos e um marido que só queria “comer carne”. “A minha filha Carmen é a cara do meu Armando”. E o tal Armando é o homem pelo qual deixou o marido “putanheiro”. Assim se inicia o espectáculo que passa para o interior do Bola 13.
A dança começa ao som da mais que tocada “Bomba”, de King Africa, que contrasta com um tema do romântico Nelson Ned. Mónica Calle conta a primeira história. “O trabalho é o amor mais completo. É o único sítio onde não tenho medo de viver”. Um trabalho que também tem feito outros viver, como o que tem feito na prisão de Vale dos Judeus. Lá, Mónica conheceu Mauro, que está ainda preso, e que é do Bairro da Sé. “Foi através da família do Mauro que nós conseguimos entrar no bairro”, conta a encenadora.
Paulo estava também em Vale dos Judeus quando conheceu Mónica. “Já é a segunda experiência que eu tenho. A primeira foi numa situação muito difícil. Eu comecei a fazer teatro na cadeia”, diz o gaiense. A sua história é contada a duas vozes, com Emília, a noiva, com quem vai casar dentro de dois meses. “E foi um despertar para a vida. Eu antes não dava valor a nada, mesmo a nada, mas quando entrei no grupo da Mónica aquilo foi como um chão”, declara. “A pessoa está lá em baixo e vem ao de cima”. Há seis meses fora da cadeia, Paulo confessa que a vida mudou “a cem por cento”, para melhor. “Vou casar, coisa que nunca pensei”, revela. Numa palavra só: “é maravilhoso”.
Emília também não teve uma vida fácil. Viveu 32 anos num casamento de “sofrimento”. “O que me fez aguentar foram os meus filhos. Não queria que eles ficassem sem pai”, confessa. E aguentou até ir parar quase ao hospital. “Será que não vou ser feliz?”, questionava-se. Depois apareceu Paulo. “Começou a meter-se comigo e tanto andou, tanto andou que a gente começou a nossa história. Estou a conhecer coisas que nunca conheci na vida, a passear, a ir para a praia, ir aos karaokes, e sou muito feliz”, conclui.
O cruzamento entre actores e amadores já é marca no trabalho de Mónica Calle. A peça que vive das estórias vai variando todos os dias com o encontro entre pessoas tão diferentes. “Há um alinhamento mas há muita liberdade no momento de cada um”, admite Sofia Vitória, uma das actrizes que veio de Lisboa. “Muitas vezes o que acontece é que as pessoas que não são actores acabam por conseguir estar num sítio mais certo e mais justo do que os actores”, diz Mónica. Mas isso não é também é um desafio para os actores? “No fundo isto também me permite levar os actores a irem mais longe no seu próprio trabalho, mais próximo daquilo que eu acredito que é o trabalho de intérprete”, remata.
“Eu queria morar numa favela”, um dos versos cantado por Gabriel o Pensador, é o mote para a história de Rui. A Mónica apareceu-lhe “do nada”, através do Mauro, para lhe pedir para contar a sua história e para ser o fotógrafo dos espectáculos. “Isto é sobre mim e sobre um amigo, o Jefferson, da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro”. A Internet era o facilitador do estreitar de uma amizade separada por um oceano. O “miúdo” tinha 18 anos e a vida condenada por uma leucemia. “Conheci-o nos últimos sete meses de vida dele e estive duas, três, quatro horas por dia a falar com o miúdo que me ensinou a viver”, conta. Numa “homenagem” ao amigo, Rui tatuou Jefferson e a favela no braço. “Porque na realidade também vivo num bairro social, no Bairro da Sé, que também tem prédios degradados, tem ratos em várias casas, baratas, lixo espalhado pela rua”, conta. “E aqui somos bairristas como na favela”, remata.
À semelhança da Zona J, em Chelas, onde já foi encenado este espectáculo, também no Bairro da Sé há “um centro de comunidade muito forte, muitas crianças, muitas vidas que aqui se cruzam”, refere Mónica Calle. E são vidas com histórias “muito sofridas, muito difíceis”. E é justamente por isso que o espectáculo integra o programa do “Cultura em Expansão”, promovido pela Câmara do Porto, que leva diversas actividades culturais a bairros sociais. A equipa da peça chegou a “um sítio desconhecido”. “Nós estivemos cá uma semana para começar a perceber as dinâmicas, as estórias do bairro, as pessoas e ir criando ligações”, explica a encenadora.
O “black” alfacinha no bairro do Porto
“Eu sou um milagre”. A frase é de Bruno que admite que “tinha tudo para dar errado”. Vive na Zona J de Chelas e, em 2011, o Boss convidou-o a ir a um ensaio do grupo de teatro de Mónica. “Fui lá, curti e disse que gostava de entrar. E entrei nessa peça três, quatro dias depois”. Em Rifar o Meu Coração interpreta o “macho latino” Marcos que se transforma no travesti Marquise (personagem do documentário) ao som de Ne me quitte pas, de Jacques Brel. Pelo meio, viveu várias aventuras amorosas em Espanha que o fizeram desistir do amor verdadeiro.
Bruno admite que actuar no Porto “é bem diferente” do que em Lisboa. “Aqui temos de estar mais preparados para o imprevisto. As crianças entram, saem, fazem e acontecem e nós temos de brincar com isso tudo”, conta. “Eu estava tipo... Porto, bairro, eu sou black. É aquela coisa de pensar que os outros têm preconceito”. Mas o actor reconhece o “erro”. “Deram-me uma chapada, uma grande chapada sem mão”.
Há aqui uma linha muito ténue a separar a realidade da ficção. É um espectáculo que vive à base do imprevisto e que une actores e moradores no amor entre maridos, esposas, namorados, namoradas, pais, filhos ou irmãos com quem se “partilha tudo e mais um par de botas”. “Cada um de nós conta coisas muito parecidas mas de formas muito diferentes”, num lugar de partilha e de afecto que, para a encenadora, é aquilo que o teatro deve ser cada vez mais: "uma possibilidade de encontro”.