Calçada portuguesa em Lisboa e no Rio: é mais o que as une do que aquilo que as separa

Na cidade carioca, muitos vêem a “pedra portuguesa” como “a vilã”, mas há quem insista em lembrar o seu valor identitário e histórico. A grande diferença em relação a Portugal é que no Rio de Janeiro são os moradores e comerciantes, e não as autoridades públicas, quem tem a responsabilidade de fazer a conservação dos pavimentos.

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Em Março de 2015, cerca de 350 moradores escolheram o fim da calçada portuguesa. Pedro Cunha (arquivo)

Isso mesmo aconteceu no final de 2007, quando a Câmara Municipal do Rio de Janeiro aprovou uma lei segundo a qual “as calçadas e passeios públicos” deveriam ser “de piso antiderrapante e contínuo, com rampa de acesso para cadeira de rodas”. Para que isso fosse uma realidade, previa-se a substituição generalizada dos pisos “com pedra do tipo portuguesa”, excepto na “orla marítima”. Algo que tem vindo a acontecer a pouco e pouco, aproveitando obras de requalificação que vão sendo feitas em vários locais da cidade.    

“Volta e meia, as nossas calçadas de pedras portuguesas ficam sob fogo cruzado. O argumento é sempre o mesmo: o perigo que a falta de manutenção representa para os transeuntes”, escrevia em 2009 Cora Rónai. Pouco convencida, a jornalista d’O Globo perguntava: “O que leva alguém a supor que uma cidade incapaz de manter um calçamento de pedras portuguesas será capaz de manter um calçamento de qualquer outra coisa?”.

Semelhante é o raciocínio de Horácio Magalhães, que defende, em declarações ao PÚBLICO, que o problema está na “falta de conservação” e não no tipo de pavimento. “Não importa se é calçada ou concreto. Se só muda o material, o problema persiste. É como tirar o sofá da sala para evitar que o casal namore”, constata o presidente da Sociedade de Amigos de Copacabana.   

Além disso, diz Horácio Magalhães, “as pedras portuguesas são características de Copacabana, fazem parte da sua história”. Tirá-las, resume o representante dos moradores do bairro, seria “um prejuízo”.

O “calçadão”, uma das mais conhecidas imagens de marca do Rio de Janeiro, foi construído em 1906, com mão-de-obra e pedras vindas de Portugal e com um desenho inspirado no “Grande Mar” do Rossio. Na década de 70 do século passado o artista plástico e arquitecto paisagista brasileiro Burle Marx, que nalgumas obras suas juntou basalto vermelho às tradicionais pedras brancas e pretas, deu-lhe um novo desenho.     

Também Andréa Redondo é, como confessa no blogue Urbe CaRioca, uma “apaixonada” pela calçada portuguesa, “herança da terrinha, de lá onde estão as nossas raízes lusitanas”. “É a nossa memória, a nossa cultura, que deve ser preservada. Quando visitei Lisboa foi uma emoção indescritível ver ao vivo como somos portugueses”, conta a arquitecta ao PÚBLICO.   

“As calçadas são muito mal conservadas, infelizmente. Ficam com buracos, com desnivelamentos e as pessoas caem, se machucam”, acrescenta Andréa Redondo. “Há um consenso geral de que a pedra portuguesa é a vilã”, resume a ex-presidente do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro, lamentando que assim seja.

Olhando para as cartas dos leitores e os muitos artigos publicados no jornal brasileiro O Globo, é também essa a imagem que passa. “Olhe bem por onde todos pisam”, “Armadilhas para os pedestres”, “Pedras portuguesas, um perigo constante” e “Um tropeço, com certeza” são os títulos de algumas notícias recentes, várias delas acompanhadas por fotografias de pessoas com ferimentos causados por quedas na calçada portuguesa.

Em Lisboa, onde existem apenas 20 calceteiros ao serviço da autarquia, quando chegaram a ser quase 400, a falta de manutenção e de qualidade da calçada e os problemas de acessibilidade, segurança e conforto que coloca são também temas de discussão. Uma realidade que parece não ter eco no Rio de Janeiro, a julgar por aquilo que se diz em vários blogues e artigos de opinião. Como o de Cora Rónai, em que a jornalista faz a apologia da pedra portuguesa a partir do exemplo das “ruas lindas e impecáveis de Lisboa, onde é quase impossível, se não impossível de todo, ver pedra fora do lugar”.  

Entre a capital portuguesa, que segundo o município tem “largos milhares de metros quadrados” de áreas revestidas a calçada, e o Rio de Janeiro há no entanto uma diferença significativa: deste lado do Atlântico é à câmara municipal quem compete a manutenção das pedras de calcário e basalto, mas em terras brasileiras são os proprietários das habitações e das lojas quem têm o ónus de zelar pelos pavimentos à sua frente. 

Isso mesmo está estipulado num Decreto do Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro, de 2008, que prevê a aplicação de multas aos faltosos. Andréa Redondo explica que “não existe acompanhamento das obras, nem fiscalização, nem divulgação de como fazer”. O resultado, explica a arquitecta, é que os trabalhos na calçada são mal feitos, havendo vários moradores e comerciantes que acabam por a substituir por concreto ou granito. “É uma coisa muito ruim, porque há uma quebra de unidade”, constata. 

E, mesmo em Portugal, o debate sobre o futuro da calçada não é exclusivo de Lisboa. No Porto, o actual vereador do Urbanismo, Manuel Correia Fernandes, não defende uma utilização extensiva deste pavimento nos passeios. O arquitecto considera que o calcário polido torna-se escorregadio em determinadas condições de humidade, o que coloca problemas de mobilidade.

O arquitecto defende um compromisso entre a estética e a funcionalidade, sendo que, neste caso, a funcionalidade tem muito que ver com a mobilidade de peões, entre os quais se incluem deficientes e idosos. E basta andar na calçada à portuguesa no largo da igreja da Trindade, atrás dos Paços do Concelho, ou chegar com pressa, num dia de chuva, à estação de metro com o mesmo nome, onde foi usado granito polido, para se perceber como os materiais de revestimento podem ser um empecilho.

No Porto, nas últimas intervenções no espaço público da Baixa tem sido usado o granito, seja na versão paralelepípedos, na faixa de rodagem, ou em lajes de grandes dimensões, como nas obras da Rua das Flores. Noutras, como na Rua Ricardo Jorge, ou na Rua das Oliveiras, os novos passeios são mesmo em cimento. Nestes últimos casos o preço foi o factor tido em conta, mas a opção, que vem já do executivo anterior, liderado por Rui Rio, tem sido muito criticada e está a ser avaliada pela actual equipa do Urbanismo, pois coloca outros problemas, do ponto de vista da manutenção e do aspecto visual, por exemplo.

Na cidade todos se recordam da polémica intervenção desenhada pela dupla Eduardo Souto Moura/Siza Vieira na Avenida dos Aliados, aquando das obras de construção da estação de metro no subsolo, em meados da década passada. Entre as várias críticas ao projecto, algumas vozes levantaram-se contra a substituição da calçada dos passeios e de parte da placa central por cubos de granito que, em conjunto com a eliminação dos canteiros existentes, conferiram a todo o espaço uma homogeneidade que o falecido escritor Manuel António Pina chegou a definir como “sizentismo”. Nessa altura, o trabalho da calçada dos passeios, com motivos alusivos ao ciclo do vinho do Porto, foi transferido para uma perpendicular aos Aliados, a rua Sampaio Bruno.

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