A avenida que mudou a cidade do Porto
Centenário da Avenida dos Aliados é assinalado pela Câmara e pela Fundação Marques da Silva com um programa de visitas-guiadas, conferências e uma exposição até final do ano.
No dia 1 de Fevereiro, passaram precisamente cem anos sobre a cerimónia em que o Presidente Bernardino Machado assistiu à remoção da primeira pedra do edifício que durante décadas acolhera a Câmara Municipal do Porto, na antiga Praça Nova. Era o gesto inaugurador de uma nova era no plano urbanístico da Baixa da cidade, que haveria de ser concretizado com a agora designada Avenida dos Aliados, centro físico e cívico do Porto do século XX.
A assinalar o centenário, a Fundação Marques da Silva, em parceria com a autarquia, está a lançar um programa de actividades que começa este sábado com a primeira de cinco visitas guiadas a outros tantos edifícios considerados marcantes na definição do perfil arquitectónico da Avenida – na sua contiguidade entre a Praça da Liberdade e a Praça General Humberto Delgado. Seguir-se-á, até final do ano, um ciclo de conferências e uma exposição histórico-documental sobre o tema.
O arquitecto e professor Domingos Tavares, comissário geral do programa, explica, na apresentação da iniciativa, que “o lançamento da Avenida da Cidade passou a constituir a chave para a afirmação do progresso e matéria do intenso debate público, até que se consolidou o quadro arquitectónico do núcleo urbano do que se convencionou ser a moderna Baixa portuense”.
Em declarações ao PÚBLICO, Domingos Tavares evoca duas figuras que foram determinantes na elaboração desse plano: o urbanista inglês Barry Parker (1867-1947), um nome do movimento Arts and Crafts e especialmente conhecido pelo desenho das cidades-jardins no norte do seu país (como Letchworth e Hampstead), e que foi contratado pela Câmara para desenhar o novo centro cívico portuense; e José Marques da Silva (o autor da Estação de São Bento), que de certo modo se erigiu em líder da contestação portuense ao projecto de Parker, tendo tido um papel determinante na configuração dos Aliados como hoje o conhecemos.
“O projecto de Barry Parker foi bastante contestado pela comunidade dos arquitectos – e pelos engenheiros e pela burguesia portuense –, que estavam dominados pela influência francesa e pela estética Beaux Arts onde tinham sido formados, em Paris, e se manifestaram contra a ideia da cidade-jardim”, explica Domingos Tavares.
É desse confronto, e da sucessiva alteração do projecto deixado no Porto por Barry Parker, em 1916, que nasce a futura Avenida dos Aliados, que acabaria por ser mais marcada pelo figurino do boulevard francês. E a escolha do edifício da companhia de seguros A Nacional para abrir o calendário das visitas guiadas, este sábado, tem directamente a ver com a importância que este projecto arquitectado por Marques da Silva em 1919 teve na planificação do novo centro urbano, já liberto da cerca da muralha fernandina.
Seguir-se-ão, no calendário das visitas, o Banco de Portugal (28 de Maio), a Caixa Geral de Depósitos/Culturgest (4 de Junho), o edifício n.º 156 (18 de Junho) e os Paços do Concelho (2 de Julho).
Influência franco-flamenga
A visita ao prédio A Nacional será guiada pelo arquitecto e professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto Carlos Machado.
Trata-se de um projecto que, em paralelo com o Edifício Pinto Leite, que o mesmo Marques da Silva desenharia logo a seguir, em 1922, “marca o ritmo da arquitectura que vem romper com a menor escala e ambição do projecto de Barry Parker” – explica Domingos Tavares –, e se prolonga depois até aos Paços do Concelho (Correia da Silva, 1916), cuja conclusão só aconteceria na década de 1950.
A contrastar com o recorte franco-flamengo destes dois projectos de Marques da Silva, que denunciam toda a parafernália decorativa da estética Beaux Arts, está ali ao lado o Banco de Portugal (Ventura Terra e José Teixeira Lopes, 1918-22), edifício-monumento em granito, e com formas bem mais contidas do que os seus vizinhos. Nesse sentido, “este é ainda um edifício da velha Praça da Liberdade”, nota Domingos Tavares.
Também a divergir do perfil genérico dos Aliados está a sede da Caixa Geral de Depósitos (João Pardal Monteiro, 1916-31), também em granito e com uma escala igualmente contida. “Pardal Monteiro era o arquitecto da Caixa, que fez projectos para o país inteiro, e o do Porto reproduz esse modelo nacional”, diz o comissário, realçando que, à imagem das outras sedes da CGD pelo país fora, a sua forma respeita o objectivo de “dar confiança ao cliente que aí deposita o seu dinheiro”.
Logo a seguir fica o edifício com o nº. 156, escolhido por ter uma fachada desenhada ainda por Marques da Silva, mas tratar-se de um exemplo da “estética de continuidade” proposta pelo arquitecto, já sem os artificialismos decorativos dos seus dois prédios anteriores.
A terminar, os Paços do Concelho, de recorte neo-barroco, e cuja volumetria – que foi substancialmente aumentada relativamente àquela que Barry Parker tinha também imaginado, em 1916 – assume o valor simbólico de sede do poder autárquico. O projecto original de Correia da Silva, arquitecto municipal, remonta a 1916, mas a obra só começaria quatro anos depois e, devido a diversas circunstâncias políticas e sociais da cidade e do país, a sua conclusão só aconteceu no final da década de 1950.
Entre 19 de Setembro e 3 de Outubro, no café-concerto do Teatro Rivoli, vai decorrer o segundo módulo do programa do centenário: um ciclo de três conferências-debate em que arquitectos e investigadores portugueses e estrangeiros – Rui Tavares, Andrew Saint, Manuel Mendes, Elisabeth Essaïan, Paulo Pereira e Domingos Tavares – vão abordar o longo processo de construção da Avenida.
Também a 3 de Outubro, abre o terceiro módulo: uma exposição, com direcção científica de Clara Vale, que vai documentar como “num espaço restrito se pode condensar um tempo longo de criação e alteração de um espaço urbano e de um conjunto de edifícios que lhe servem de fronteira e definição”, diz a Fundação Marques da Silva.