Rapace, para lá do horizonte

Não pode ser encaixado numa moldura, tal é a amplitude do universo para o qual se projecta. Chamem-lhe reflexão delirante ou impulso desregrado, certo é que Rapace conquista pela diferença, pela capacidade de desencantar ideias no deserto. Por Nuno Sousa

"O ritmo é o som de Deus desidratado." É graças a pérolas verbais como esta que Rapace estende as asas e voa, determinado, em direcção a um horizonte promissor. Livre de rótulos, de moldes e de pretensões que vão além do puro gozo do momento, o filme trilha um percurso tão próprio e característico que nos vemos obrigados a implodir os alicerces do mundo que conhecemos para nos entregarmos, em hipnose, a um universo deliciosamente fantasioso.Hugo no quarto, na cozinha. Depois na sala, a atender chamadas sem que haja um telefone à vista. Mais tarde, em frente ao espelho, a sacudir o corpo ao som de um ritmo circense. Subitamente, dispara a tampa do desodorizante. Apanha-a no ar com o punho erguido, em jeito de vitória, de comando (dispensam-se leituras políticas e ideológicas nesta fase). A câmara aproxima-se. Dentro em breve, estará à mesa do café, para falar de música e de assuntos menos mundanos.
A lente do cineasta João Nicolau reflecte um par de horas na vida de um estudante universitário em fase de descompressão. Um jovem mestre académico que tenta descodificar em som e palavras o ADN do bairro onde vive. Hugo encarrega-se das letras. Manuel constrói a batida para encaixar as ideias. Quando damos por ela, estão os dois vergados sobre a mesa de uma esplanada a abanar a cabeça e a extrair, com o simples olhar, o ritmo de um CD acabado de gravar.
Sem cair na tentação de comparar o incomparável, há em Rapace um cheirinho do universo perfumado de João César Monteiro. Há frases e jogos mentais que desafiam a lógica, há personagens inusitadas, há contextos que, de tão rígidos, se tornam palco das experiências mais desconcertantes. Como a festa brilhantemente filmada num ambiente clínico, quase glaciar, onde o único som que se ouve é o do tilintar do gelo nos copos. Pelo menos até ao momento em que o DJ faz as honras da casa e desperta os corpos de um torpor incomodativo.
É o tiro para a libertação. Através do movimento desbragado dos membros ao sabor da vibração das colunas, Hugo abre as portas do "seu" mundo. Um mundo que congrega pequenos homens esquecidos atrás de fatos de licra vermelha, reproduções de grandes futebolistas em exercício no meio da rua e, finalmente, uma ave. Duas asas que batem freneticamente sem que, de início, consiga sair do lugar. Duas asas que, dentro de segundos, irão planar num ceú azul. De um azul tão límpido e cristalino como o talento de João Nicolau, que, com este delírio criativo, trouxe ao universo nacional das curtas-metragens um sopro de pura genialidade.

Cinema
Rapace, de João Nicolau
As duas vidas da serpente, de Helier Cisterne
Porto
Passos Manuel
Às 21h45

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