BOB MARLEY A primeira superestrela do terceiro mundo morreu há 25 anos

"One good thing about the music, when it hits you you feel no pain" Bob Marley, Trenchtown rock

O pai era branco e rico. A mãe era negra e pobre. Casaram numa zona rural da Jamaica e no dia seguinte o capitão Norval Sinclair Marley desapareceu para a capital Kingston. Desta casual relação nasceu Robert Nesta Marley, conhecido para o mundo como Bob. Numa vida curta - morreu em Miami a 11 de Maio de 1981, aos 36 anos, há um quarto de século -, conseguiu colocar a Jamaica no planisfério musical. Ao aprofundar, divulgar e definir os cânones do que viria a ser chamado reggae, tornou-se uma estrela global, a primeira a consegui-lo com um género nativo de um país do terceiro mundo.Bob passou a juventude em Trenchtown, uma das muitas áreas degradadas de Kingston, provas vivas, pela pobreza e violência, do fracasso parcial da independência face ao Reino Unido. Mas a vida no bairro que mais tarde daria título a um dos seus hinos (Trenchtown rock) foi escolhida pelo jovem Bob, que podia ter alinhado com a endinheirada família do lado paterno. Aos 12 anos, já sabia tudo o que havia a saber sobre sexo, luta, jogo e armas brancas. Ou seja, tal e qual como os outros miúdos que constituíam as milícias dos dois principais partidos políticos.

Um single por 10 eurosMas Marley tinha uma diferença: a música. Aos 16 anos, gravou um single, Judge not, sob o nome Robert Morley, pelo qual ganhou o equivalente a 10 euros. Bob e Bunny Marley, mais tarde um dos seus lugares-tenentes, frequentavam um escola de música dirigida por um dos poucos rastafari (religião de origem etíope, que aceita partes do Novo e Velho Testamento e que considerava o imperador etíope Hailé Selassié a encarnação de Deus) respeitados na ilha. O último factor decisivo foi a proliferação de sound systems, por vezes em competição brutal entre si, que levavam a todas as salas da ilha as festas e o som que a distinguia.
Era uma continuação do mento (versão jamaicana do calipso) e da soca, que agora, com um ritmo aceleradíssimo, se chamava ska. Acalmou um pouco e passou a rocksteady. Abrandou ainda mais, e chegou ao roots reagge, o que agora - por força de Marley - conhecemos mundialmente como reggae. Uma música dengosa, cheia de espaços (mais tarde ainda mais escavados pelas versões dub, quase ou totalmente instrumentais), por onde Bob colocava a sua voz nasalada.

Libertação mentalMas a sua subida à primeira divisão da fama não foi um movimento rectilíneo e ascendente.
Casado muito cedo e com filhos, numa ilha política e socialmente violenta, num meio musical em constante mutação e em que o não pagamento e roubo de direitos (quando os havia de todo) eram comuns, Bob Marley teve que recorrer a todos os seus dotes para manter a carreira. Havia quem o considerasse um vidente, um sábio, predestinado a contar as verdades escondidas. Quase todos lhe reconheciam o carisma, o modo fácil mas decidido com que impunha a sua vontade, e que lhe permitiu ir criando uma fiel legião de colaboradores, desde os Wailers na banda até à editora Tuff Gong. E o carisma nas mulheres, claro. O casamento com Rita, que o acompanhava em palco, não impedia que tivesse casos com muitas outras (que deram frutos, ver caixa Filhos).
Só em 1973 se deu a grande mudança de velocidade, e deu-se na pouco provável figura de Chris Blackwell, um jovem branco que iria transformar a sua pequena editora, a Island, num império.
A primeira colaboração, o álbum Catch a Fire, foi a ponte para Europa e para as digressões, até ao último álbum de originais, Uprising, que termina, profeticamente, com Redemption song. Uma canção despida, apenas voz e guitarra acústica e meia dúzia de acordes. Em 3 minutos 45 segundos, Bob fala da sua religião, da sua raça, da sua terra, da sua mensagem. Que nos libertemos da "escravidão mental", que só nós podemos libertar as nossas mentes.
Num episódio de uma sitcom inglesa, um de quatro amigos de meia-idade escolhe como hino Redemption song, outro ri-se: "Escolhes como teu hino um tema escrito por um negro jamaicano sobre tráfico de escravos?" Acontece que o apelo humano que levou a personagem, através do seu argumentista, a escolher este hino, é o mesmo que tornou Bob Marley universal, mais até do que a sua, genial é certo, veia musical.

James Dean dos tristes trópicos
A morte, com apenas 36 anos, deu-lhe uma aura que apenas poderia aumentar. Jovem, bem-parecido, carismático, extremamente talentoso, e desaparecido muito cedo, poderia ser o James Dean dos tristes trópicos. Até a morte de ambos acaba por ser brutalmente estúpida: o actor norte-americano num acidente de carro, o cantor jamaicano com cancro. E um cancro que poderia ter sido tratado.
No início foi apenas um dedo grande do pé muito machucado - na versão correntemente aceite - numa partida de futebol em Londres contra uma equipa de jornalistas. Mas o dedo piorou, e, fiel a crenças rastafari, Marley recusou quase sempre a medicina ocidental, e recorreu a medicinas alternativas.
Pouco antes de morrer, na última foto oficial junto à mãe Cedella Booker, estava magríssimo e sem os longos dreadlocks de cabelo. O que se mantinha era o olhar, directo para a câmara, como milhares de vezes fizera nos últimos 15 anos. Calmo, profundo, sem medo da morte iminente.

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