Famílias de Ílhavo guardam há cem anos colheres e garfos do Titanic
Os talheres flutuaram um mês e meio, dentro de um móvel, até serem encontrados por pescadores portugueses
Talheres de prata do Titanic, que estavam num móvel à deriva recolhido por um navio bacalhoeiro após o naufrágio, conservam-se no espólio de algumas famílias de Ílhavo, que há cem anos os repartiram entre si.
O segredo foi agora revelado num blogue por Ana Maria Lopes, ex-directora do Museu Marítimo de Ílhavo e detentora de seis colheres de prata, que confirmou a origem junto da companhia RMS Titanic e que motivou já a deslocação a Ílhavo de uma cadeia de televisão francesa.
"Os talheres foram [encontrados no interior] de um móvel que flutuava há um mês e meio após o naufrágio e que foi recolhido pelo veleiro Trombetas, da Figueira da Foz, de que era capitão João Francisco Grilo, de Ílhavo. Quando chegou, entregou-os ao armador, que não se interessou muito, pelo que os repartiu por familiares e amigos", explica Ana Maria Lopes.
É essa a proveniência das seis colheres de sopa que lhe pertencem, que foram oferecidas ao seu avô e que veio a herdar. Desde os nove anos que os talheres e a história a que estavam ligados lhes eram familiares, por conversas da sua avó, quando limpavam e arrumavam "as colheres do Titanic".
Há outros casos na vizinhança, com a mesma proveniência: "Há mais algumas famílias com colheres, e também já vi garfos. Uma senhora que mora perto de mim e não quer ser divulgada tem 17 peças, entre colheres iguais a estas, de sobremesa e garfos, porque o marido era neto do que achou [o móvel]."
Durante praticamente um século, a existência dos talheres foi apenas do conhecimento restrito de familiares, embora houvesse rumores em Ílhavo sobre tais despojos. "Quem os detinha não gostava de falar. Cada um tinha o que tinha na sua casa e acabou, embora se comentasse haver umas colheres do Titanic", explica. Até que, Ana Maria Lopes, por força das suas funções no Museu, deu mais atenção às colheres "que sempre estiveram lá em casa" e começou a investigar.
"Vi que a história oral de Ílhavo tinha razão de ser, porque havia uma coincidência de datas e de rotas. Havia a memória de que os talheres tinham sido apanhados na ida dos navios para os pesqueiros, que era sempre por fins de Abril e meados de Maio, e o Titanic naufragou em 14 de Abril de 1912", diz.
Depara-se com o registo do regresso - a 27 de Outubro de 1912 - do Trombetas que, segundo a tradição oral, terá recolhido o móvel com os talheres, e do Golfinho, de que era capitão o seu avô.
A localização do Titanic, no fundo do mar, trouxe novo entusiasmo e foi à primeira exposição de artefactos do navio, em 1994, no Museu de Greenwich, mas só na terceira exposição, em Lisboa (2009), é que viu "talheres exactamente iguais".
Seguiu-se um encontro na Costa Nova com Christopher Davino, da RMS Titanic, a quem mostrou as suas colheres e que as certificou. Eram de facto iguais, de prata maciça, com a estrela no cabo, símbolo da White Star Line, a punção da prata da época, e a indicação da Elkington Plate, uma joalharia inglesa famosa.
A descoberta levou já uma equipa da France 3 a filmar três dias em Ílhavo para o programa Thalassa.
Agora, Ana Maria Lopes espera que o museu de que foi directora possa vir a receber uma exposição do Titanic. "Será que alguma vez teremos uma exposição do espólio do Titanic em Ílhavo? Acho que a terra portuguesa mais indicada para receber uma exposição é Ílhavo, no Museu ou noutro espaço público", defende. Lusa