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Ficção
Ela teve uma fazenda em África350 páginas de magia e assombro: "África Minha" em edição conjunta com "Sombras no Capim". Eduardo PittaÁfrica Minha
Karen Blixen(Trad. Ana Falcão Bastos e Cláudia Brito)
Clube do Autor
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Isak Dinesen, aliás Karen Blixen (1885-1962), gostava de dizer que tinha três mil anos. Em 1959, quando visitou Nova Iorque pela primeira vez, ninguém por um momento duvidou da sua palavra. Turbante na cabeça e diamantes nas orelhas, a figura espectral da baronesa Blixen-Finecke fazia jus à lenda. Vinte e seis anos mais tarde, Meryl Streep faria dela um ícone popular: "Tive uma fazenda em África, no sopé das montanhas Ngongo." O filme de Sydney Pollack é um compósito das memórias africanas recolhidas no volume que junta "África Minha" e "Sombras no Capim".
Publicado em 1937, "África Minha" relata os dezoito anos (1913-31) em que Blixen viveu no Quénia, explorando uma plantação de café localizada a vinte quilómetros de Nairobi. O facto de estar situada a dois mil metros de altitude permitia "destilar" a paisagem circundante: "A essência forte e depurada de um continente." Infelizmente, também se ressentia no resultado das colheitas...
Nenhum impecilho perturba a leitura desde a primeira frase. Igual ao ar que respiramos ("coisa viva sobre a terra"), a exactidão da voz dispensa floreados. Dito de outro modo: 350 páginas de puro assombro.
Para Blixen, o mundo parecia ter desabado em 1931. Denys Finch-Hatton, amigo e amante, morreu na queda do bimotor que pilotava. O "crash" de 1929, arrastando consigo a cotação do café, arruinou-lhe o negócio. Vê-se obrigada a deixar África, divorciada (o marido abandonou-a em 1921) e na bancarrota: "Não conseguíamos pagar as dívidas e não tínhamos dinheiro para gerir a plantação." Partiu com a certeza de que os guerreiros massai continuariam a olhar para a casa da fazenda como os camponeses da Umbria viam a casa "onde São Francisco e Santa Clara conversavam acerca de teologia." A comparação não é despicienda.
Centrais à compreensão da vida dos colonos brancos no Quénia dos anos 1920, as páginas dedicadas aos que faziam de Ngongo ponto de paragem: Denys Finch-Hatton, caçador, aviador, desportista nato, músico, apreciador de arte e bons vinhos; Berkeley Cole, que todas as manhãs bebia uma garrafa de champanhe na floresta ("Mas, minha querida, é tão triste", comentou no dia em que o bebeu em copos grosseiros); o senhor Bulpett, também conhecido por Tio Charles, que fora amante da Bela Otero e um dos primeiros a chegar ao cume do Matterhorn; Ingrid Lindstrom, que depois da falência da cultura do linho não desistiu e prosperou plantando pítero, essencial ao fabrico de perfumes; Gustav Mohr, o norueguês loquaz, farto de sisal e de bois; Emmanuelson, prestidigitador errante; Darrell Thompson, que lhe deixou um pónei em herança; os outros todos. Finch-Hatton e Berkeley Cole, como também Sir Northrup MacMillan, tinham lugares de destaque "como serpentes de bronze." Blixen não esquece os nativos kikuyu, cujas tradições, rituais e idiossincrasias descreve com empatia. Grande ausente da narrativa, o barão Bror von Blixen-Finecke.
Farah Aden, o criado somali que em 1913 foi esperar por ela ao porto de Adem, dirigiu Ngongo durante quase dezoito anos: "dirigiu a minha casa, os meus estábulos e os meus safaris." Sem nunca terem chegado a nenhuma conclusão sobre a idade de cada um ("os muçulmanos regem-se por anos lunares"), a querela unia-os. Separaram-se quando Blixen regressou à Dinamarca: "tive a sensação de estar a perder uma parte de mim própria." A partir dessa data nunca mais montou ou fez tiro. E passou a escrever com a mão esquerda.
A despeito da sua natural fluência, "Sombras no Capim" não tem o mesmo vibrato. Publicado em 1960, quando África era só lembrança, Blixen racionaliza o que outrora fora matéria de paixão. Discreteia sobre criados (Farah, Kamante, Ismael, Juma, etc.), tribos indígenas (wakambas, kawirondos, etc.), imigração somali, política colonial britânica, comércio de marfim, tráfico de escravos, os Mau-Mau (a sociedade secreta dos nativos kikuyu que deu o tiro de partida do movimento independentista), o quotidiano de Rungstedlund, a propriedade da família situada a norte de Copenhaga, onde morreu, recordando as colinas azuis de Ngongo.
Contudo, Blixen, que não é facilmente comparável com outros escritores, excepto, talvez, com a italiana Natalia Ginzburg (outra demiurga), não cabe nas baias da memorabilia africana. Contos como "Uma História Imortal", com acção em Macau (1952, filme de Orson Welles em 1968) ou "A Festa de Babette", epítome da "gourmandise" (1958, filme de Gabriel Axel em 1987), fazem dela um caso singular. Em Portugal estão traduzidos vários dos seus livros, incluindo os famosos "Sete Contos Góticos" que em 1934 deram início à obra canónica.
Esta reedição recupera a tradução que Ana Falcão Bastos fez de "África Minha" em 1986 (em 2001, Maria Manuel Tinoco fez outra). "Sombras no Capim", que em 1988 fora traduzido por Helena Ramos, surge agora numa versão conjunta de Ana Falcão Bastos e Cláudia Brito.
No silêncio da montanha
Uma récita intensa e poética em forma de parábola de um mundo que perdeu a noção do valor do absoluto. José Riço DireitinhoO Peso da Borboleta
Erri De Luca(trad. por Simonetta Neto)
Bertrand
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Erri De Luca (n. 1950), autor de mais de uma dúzia de livros (alguns deles estão traduzidos para português), é um dos grandes escritores italianos. Estreou-se na literatura em 1989, e desde 1996 que se dedica aos livros a tempo inteiro, não apenas como autor mas também como poeta e tradutor - estudioso da língua hebraica, é autor de sete traduções (pouco canónicas) de livros retirados da Bíblia; traduziu ainda Puskin, a partir do russo. "Na vida não pode haver tempo para descansar", disse Erri De Luca numa entrevista. Parecendo querer respeitar esta sua máxima, encontrou inúmeras ocupações na vida: na juventude foi activista de um grupo da extrema-esquerda, depois pedreiro em França e, durante alguns anos, também em África, foi alpinista de alto nível e acompanhou expedições aos Himalaias, e, entre outros ofícios, serviu também como motorista em mais de quarenta comboios humanitários para a Bósnia no tempo da guerra na ex-Jugoslávia, tendo-se deixado ficar em Belgrado durante os meses em que a NATO bombardeou a cidade.
Originalmente publicada em 2009, a novela (ou conto longo, não chega a uma centena de páginas) "O Peso da Borboleta" é uma récita intensa e poética. Adoptando a clássica forma de narrar, simples e directa, De Luca vai-nos contando duas histórias que se vão desenvolvendo de maneira paralela até ao momento final em que os destinos dos dois antagonistas, homem e animal, se cruzam, "quando o peso de uma borboleta alpina se assemelha ao peso do mundo". Num ambiente sem tempo, apenas se sabe que é Novembro, um majestoso animal, um veado de imponente galhadura, sente aproximar-se o seu fim; do outro lado, está o mais hábil dos caçadores furtivos da região. Ambos são "reis". Aquele parece um encontro que tem vindo a ser adiado pelo destino há muito tempo. No cimo dos penhascos graníticos dos Alpes italianos, no silêncio das montanhas, parados a descansar na magra sombra de uma fraga ou abandonados nos seus pensamentos na beira de assustadores precipícios, percorrendo e atravessando gargantas pedregosas, ambos sabem que caminham de maneira inevitável para o duelo final, agora que o triste ocaso da vida se aproxima. Desde há muito que o animal conhece o cheiro do homem; e este, os trilhos e sinais daquele, os seus refúgios, os pastos em cada estação do ano, as escarpas de onde ele salta perigosamente com a mesma leveza com que uma borboleta levanta para um voo breve. "A mãe tinha sido abatida pelo caçador. Nas suas narinas de cria instalou-se o cheiro a homem e a pólvora. Órfão juntamente com a irmã, sem um grupo por perto, aprendeu sozinho. Cresceu acima do normal para os machos da sua espécie. A irmã foi apanhada pela águia num dia de Inverno e de nuvens. Pressentiu-a suspensa sobre eles, isolados num pasto a sul, onde resistia ainda alguma erva amarelecida."
Evocando o seu passado de seres solitários, ambos, homem e animal, fazem uma espécie de balanço das suas vidas no momento em que parece aproximar-se, de maneira digna e esperada, a necessidade de cederem o lugar com lealdade. Erri De Luca, mestre na escrita de histórias curtas, descreve-nos de maneira subtil e intensa, com a sabedoria de quem conhece bem a montanha, um exercício de caça que por vezes parece evocar a luta do Capitão Ahab com a baleia branca de Melville. "O Peso da Borboleta" é um profundo e sentido hino à natureza num mundo que parece "ter perdido a noção do valor do absoluto".
Ensaio
Humanismo urgenteUm volume de textos que nos convidam a pensar o presente e o futuro do Homem diante das sedutoras quimeras da tecnologia. Incontornável. José MarmeleiraExperimentum Humanum - Civilção Tecnológica e Condição Humana
Hermínio MartinsRelógio d"água
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Num tempo em que as promessas e as desilusões parecem disputar uma corrida sem fim à vista, um livro como "Experimentum Humanum - Civilção Tecnológica e Condição Humana", de Hermínio Martins, chega oportuno e necessário. Composto por vários artigos publicados em revistas científicas, alguns entretanto consideravelmente ampliados, compõe uma teoria crítica, desassombradamente crítica, da submissão da ciência à mercantilização, dos delírios das possibilidades tecnológicas, do tecnocentrismo. Ao olhar, sereno, ironicamente lúcido, deste professor emérito da Universidade de Oxford, antigo aluno de Karl Popper, nada passa desapercebido: da inteligência artificial às novas técnicas de reprodução, todos os futurismos são debatidos e escrutinados pelo racionalismo do humanista.
Para semelhante trabalho, Hermínio Martins convoca a sociologia e a filosofia da ciência e o inter-relacionamento destas com a economia e a tecnologia. Encontramos uma perspectiva interdisciplinar, avessa a solipsismos, que permite reexaminar toda uma literatura, subordinada ou associada às ciências sociais (Sociologia, Antropologia, História), naturais (Biologia) e físicas (Física, Química), fundamental para compreensão da nossa civilização tecnológica. Aliás, uma das maiores qualidades desta obra reside no facto de nos fazer olhar para o presente, iluminando (mesmo às expensas da nossa confortável bonomia) aquilo que XX deixou adormecido ou esquecido (a afinidade da técnica com os regimes autoritários, as experimentações científicas sobre os seres humanos, o eugenismo).
Aqueles confiantes na direcção actual da história da humanidade (mais ou menos tecnólatras, para utilizar uma expressão do autor) poderão ser levados a pensar que a obra de Hermínio Martins é fruto de uma deriva anti-progressista, eminentemente desconfiada dos avanços e benefícios da tecnologia ou da ciência. Que, enfim, a sua posição representa a de um conservador empedernido, que este "Experimentum Humanum" é, numa analogia forçada com a obra de Ortega Y Gasset, uma "Rebelião da Tecnologia". Pelo contrário: Hermínio Martins simpatiza com a visão Prometeica da técnica, ao serviço de fins humanos (como assim a concebiam Proudhon, Comte, ou Renouvier, autores que cita no Capítulo II - Tecnologia Modernidade Política), vê, embora sem ingenuidades (pois a visão prometeica leva à fáustica), no progresso tecnológico uma forma de prover o bem-estar material dos homens, de "mitigar as insuficiências e enfermidades da sua condição humana (pag. 20)". O que o inquieta, o que motiva a sua reflexão é o domínio crescente, disseminado, silencioso da "mercantilização e comercialização de toda vida" (pag 51.), da industrialização da ciência, da explosão de ignorância que acompanha a tão celebrada explosão de conhecimento.
Escreve no texto "Biologia e Política - Eugenismos de Ontem e de hoje": "Muito dos que partilhavam a visão de uma evolução consciente e dirigida do Homem em geral, visão particularmente importante a partir dos princípios do século XIX, veiculada pelo Positivismo, o evolucionismo e o Marxismo, pensavam em termos de uma solidariedade humana universal, solidariedade dos contemporâneos, solidariedade com as gerações anteriores (...). Não é o caso hoje." (pag. 420)
O desencanto atento de Hermínio Martins advém do seu conhecimento profundo da História e da Filosofia da Tecnologia. Confronta-nos com a visão fáustica da técnica, como teorizada por Oswald Spengler, Heidegger e os engenheiros-filosófos de Weimar, e amplamente materializada pela Alemanha Nazi (a técnica ao serviço de uma vontade soberana); com a biomedecina enquanto arma da guerra científica (ilustrado com as práticas infames, na II Guerra Mundial, da Unidade 731 do cientista japonês Shiro Ishii), com a arrepiante missão do eugenismo, que até 1940 (incluindo em países com regimes democráticos) advogou e praticou a esterilização forçada dos incapazes, pobres e doentes.
É-nos revelado o lado obscuro, mefistofélico, da ciência (em muitos casos, ao longo do século XX, foram os cientistas, que tomaram a iniciativa de oferecer os seus serviços e descobertas aos militares), fomentado pela sua industrialização e comercialização, pelo entendimento da técnica e da fabricação como fins, como cultura. E o que tem - perguntarão - tal "descoberta" a ver com o presente? A tese de Hermínio Martins é a de que essa visão faústica da ciência (da ciência como tecnologia) não só sobreviveu, como permeia a nossa civilização: nas biotecnologias, na computação, na cibernética, na tecnomedicina, na criação de vida e inteligência artificiais, no desenvolvimento de novas técnicas de reprodução, na intensificação da tecnologia para resolver problemas económicos e sociais. Os efeitos, os custos, os males são diversos e conhecidos: nos ecossistemas, na saúde pública, na biodiversidade, na condição humana.
Então, como combater, resistir ao sublime e ao niilismo tecnológicos, ao monopólio da ciência sobre o poder espiritual, à anunciado vinda do pós-humano, à tentação do homem experimentar sobre si mesmo para criar um ser superior (que dispensará a sua existência humana, em carne e osso e a da biosfera). Numa sociedade de incertezas, em que o Código de Hipócrates corre o risco de ser suspenso (o eugenismo volta a ser defendido publicamente por cientistas) e em que a vida não é mais de um que uma informação veiculada por corpos orgânicos, Hermínio Martins propõe um humanismo cientifico, que reconhece a assimetria ente o bem e o mal, sustentado no altruísmo criativo, na solidariedade, no amor, na responsabilidade individual e colectiva para com as gerações do futuro e a natureza natural. São valores ultrapassados? Não, são valores perenes.
A geometria fundamental do olhar
O esforço de pensar a evidência e automatismo do olhar. Nuno CrespoO que nós vemos, o que nos olha
Georges Didi-HubermanTrad. Golgona Anghel e João Pedro Cachopo
Colecção Imago
Dafne editora
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Este livro é um mundo: o mundo das coisas que nos rodeiam e transformamos em imagens e o mundo das coisas internas que dão acesso ao sentido, à linguagem, e à visão.
É certo tratar-se de uma investigação sobre a visão ou, melhor, sobre o que se vê quando se olha não ao nível da produção de sentido, significantes e significados, mas em termos mais profundos. Ou seja, a pergunta feita ao longo destas duas lições de Didi-Huberman é sobre o modo como são formados os objectos da visão a que chama imagens. A pergunta é pela origem e génese da imagens, não num sentido psicológico mas estético e conceptual, que depois se transforma em tentativa de encontrar o modo como certas imagens ficam "investidas de energia" ou sentido.
A inquietação que constitui o seu mote e ponto de partida diz respeito à evidência de o sentido duma imagem não acontecer só por ocasião da descodificação de uma mensagem ou história, mas que a visão constitui como seu objecto não o que vê mas o que, a uma distância intransponível (haverá sempre aquele que vê de um lado e, do outro, o que é visto: a que o autor chama cesura), olha para o olhar, isto é: só se vê aquilo que nos devolve o olhar.
Escreve Didi-Huberman: "o acto de ver não é resultante de um mecanismo de percepção do real sob a forma de evidências tautológicas. O acto de dar a ver não é o acto de dar evidências visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do "dom visual" para se satisfazerem unilateralmente. Dar a ver é sempre inquietar o ver, no seu acto, no seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação rasgada, inquieta, exaltada, aberta. Todo o olho traz consigo o seu invólucro, além das informações de que se poderia julgar, a partir de dado momento, detentor." (p.57)
Esta descrição apresenta o acto de ver não como estrutura de afecção meramente receptiva e passiva, mas, como diriam os modernos, uma projecção daquele que vê. Por isso os objectos podem constituir-se de formas tão diferentes a cada acto do olhar ou, o que é o mesmo, para cada sujeito. Que o olhar necessite ser inquietado, significa perceber que não basta olhar para ver e que não se trata de um movimento exclusivo da visão: o sujeito na sua totalidade, com todo o seu invólucro, está presente no momento da formação das imagens.
Continua o autor: "olhar seria compreender que a imagem é estruturada como um diante-dentro: inacessível e impondo a sua distância, por mais próximo que seja - pois é a distância de um contacto suspenso, de uma impossível relação de carne para carne. Isto quer dizer justamente - e de uma maneira que não é apenas alegórica - que a imagem é estruturada como um limiar. Uma moldura de porta aberta, por exemplo. Uma fenda num muro ou uma fractura, mas trabalhada, construída, como se fosse preciso um arquitecto ou um escultor para dar forma às nossas feridas mais íntimas. Para dar, à cisão daquilo que nos olha naquilo que vemos, uma espécie de geometria fundamental." (p.221)
Estar diante-dentro invoca o conceito de Walter Benjamin da imagem dialéctica de que o autor se apropria e discute para apresentar a complexidade da visão: está dentro e fora, próxima e distante, ausente e presente. Trata-se de pensar a imagem para além do habitual princípio de historicidade (p.94), o que implica pensar a imagem longe das grelhas de legibilidade impostas e transmitidas pela tradição e entender cada objecto como motivo de uma inquietação que é preciso explorar. Porque "talvez a imagem só possa ser pensada radicalmente para além da oposição canónica do visível e do legível. [...] Por mais minimal que seja, é uma imagem dialéctica: detentora de uma latência e de uma energética. [...] Exige que pensemos o que percebemos nela perante o que nos "apreende", "prende" - perante aquilo que nela, na realidade, nos desprende." (p.75)
Em síntese trata-se de uma experiência do olhar onde são conjugados "dois momentos complementares, dialecticamente enlaçados: por um lado, "ver perdendo", se assim se pode dizer; por outro, "ver aparecer o que se dissimula"." (p.208)
Esta situação é formulada clara e indubitavelmente pelos chamados artistas minimais. E é com eles que Didi-Huberman vai ter para mostrar o modo como as imagens artísticas são os momento chave da formação do olhar, da sua aprendizagem e história. A imagem minimal é pertinente porque apresenta uma dificuldade aparentemente inexcedível: "Eis, portanto, em todo o caso o que permanece difícil de pensar: que um volume geométrico possa inquietar o nosso olhar e nos possa olhar desde o eu fundo de humanidade em desaparecimento, desde a sua estatura e desde a sua dissemelhança visual que abre uma perda onde o visível se estilhaça. Eis a dupla distância que é necessário compreender." (p.116)
Uma duplicidade das imagens feitas pelos artistas que revelam não a natureza dos objectos, mas a constituição do olhar humano. Por isso a arte, nas suas infinitas variações e ficções, é pertinente de um ponto de vista conceptual e humano: por, nos bons casos, revelar a profundidade da percepção e do pensamento.
Esta obra é notável e apresenta o esforço de pensar a evidência e automatismo do olhar. Nesse esforço Didi-Huberman invoca filósofos e escritores, como Joyce, Freud, Benjamin ou Derrida, e artistas como Judd, Robert Morris, Tony Smith, e todos estao ao mesmo nível, ou seja, todos são igualmente instâncias de validação e conquista de argumentos para a tese da dupla distância do olhar.