Cuba Se isto é uma revolução

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Havana, capital de Cuba, é uma "ruína magnífica" afp

Em Havana, ruína magnífica, um espectáculo de transformistas é a metáfora perfeita de um socialismo cubano que vive de aparências. Debaixo da firmeza revolucionária - o Partido Comunista está reunido em congresso até terça-feira-, os cubanos fazem tudo, mesmo que seja ilegal, para sobreviver. Cuba, ilha com perfil de crocodilo, precipita-se para as saídas. Como fazem os cubanos para não enlouquecerem?

Entrar em Havana é levar com Che de caras. Trinta e seis metros e doze toneladas de Che, mais precisamente. Uma estrutura de metal com o perfil do anjo mártir da revolução cubana cobre a fachada do Ministério do Interior, frente à Praça da Revolução. Um Corto Maltese debaixo do sol. Em 1965, Ernesto "Che" Guevara profetizou o cubano do futuro: a revolução não podia limitar-se a reformar as instituições e estruturas do poder; também deveria produzir el hombre nuevo, uma nova humanidade baseada no interesse colectivo, no trabalho desinteressado, na fraternidade.

"Se quiseres, sábado mostro-te o homem novo", proclama uma noite, depois de jantar, Jorge, o anfitrião da casa particular onde a Pública se instalou. Em Cuba, há que garantir o anonimato para falar abertamente. Jorge é um nome fictício, mas o resto é real: 63 anos, bigode à Errol Flynn, uma carreira médica perdida para sempre porque quando estudava alguém denunciou que ele era homossexual e foi expulso da universidade.

Sábado à noite, onde a Calle 23 (também conhecida como La Rampa) acaba e o Malecón começa, há uma massa compacta de homens na rua: homossexuais, metrossexuais, jineteros (prostitutos), heterossexuais que dormem com homens para ganhar algum dinheiro, transexuais. Jorge apresenta Estrellita, um transexual com saltos altos Sonia Rykiel, e Michael, um rapaz de 30 anos obeso e de lábios pintados. Michael ligara várias vezes durante a noite para saber onde estava Jorge com a sua garrafa de rum Havana Club. Michael queria beber mas não tinha dinheiro. A causa da sua ansiedade, agora, é outra: pede uma caneta para dar o seu número de telefone a um rapaz da província que acaba de conhecer. Infelizmente, o rapaz da província está acompanhado de um amigo. Duas lésbicas beijam-se num muro. A revolução segue em frente, gay-friendly.

O turismo sexual também. Durante a tarde, rapazes com fivelas Playboy e perfumes excessivos plantam-se debaixo das arcadas frente ao Capitólio e esperam. O regime castrista proibiu a prostituição, mas com a abertura de Cuba ao turismo na década de 1990, o comércio sexual floresceu. Ninguém suspeitava que a queda do muro de Berlim e o colapso do bloco soviético teriam este impacto nas Caraíbas. Nas esplanadas de Centro Habana e Habana Vieja, o coração turístico da cidade, não é raro ver homens com rapazes 30 e tal anos mais novos. Jorge parece conhecer bem os métodos do turismo sexual - os cubanos são gente de olhar intenso e frontal. "Um rapaz vai pela rua abraçado a uma rapariga, passa um estrangeiro e estabelecem contacto visual. O estrangeiro pára, e o rapaz vai ter com ele para perguntar: "Qual preferes, ela ou eu"?"

Jorge deplora a forma como o turismo sexual corrompeu os corpos e os valores da juventude cubana. Ele próprio já hospedou em casa um mafioso russo que trouxe companhia para a noite. Os mafiosos russos não preferem ficar em hotéis? "Os hotéis não admitem esse tipo de coisas." Ele sim. É uma forma de sobrevivência.

Em 1965, quando Che idealizou o "homem novo", foram criadas as Unidades Militares de Ayuda a la Producción (UMAP), campos de internamento para católicos, testemunhas de Jeová e homossexuais, considerados contrários aos ideais e funcionamento do regime. Numa entrevista nesse mesmo ano, Fidel Castro afirmou que via a homossexualidade como "um desvio da natureza" que "vai contra a concepção que nós temos do que um militante comunista deve ser".

Os líderes revolucionários acreditavam que conseguiriam reabilitar os homossexuais através da disciplina e do trabalho. As UMAP foram essencialmente campos de trabalhos forçados. Segundo alguns testemunhos, o lema à entrada desses campos era "O trabalho fará de vós homens", ecoando "O trabalho liberta" de Auschwitz.

Na "autobiografia oral" Mi Vida, um livro-entrevista co-autorado por Ignacio Ramonet, director de Le Monde Diplomatique, publicado em 2006, Fidel Castro nega que tenha havido "perseguição aos homossexuais ou campos de internamentos para homossexuais". Como os homossexuais resistiam a cumprir o serviço militar obrigatório, explicou, as UMAP foram criadas para que também contribuíssem para o esforço colectivo de produção. Aí, como noutras ocasiões em que tem sido confrontado com o tema, Fidel Castro responsabiliza o machismo que dominava na cultura cubana. Uma entrevista ao jornal mexicano La Jornada, em Agosto do ano passado, ganhou notoriedade porque foi interpretada como uma admissão de culpa. Mas o que Fidel disse é que ele, pessoalmente, não tinha preconceitos, mas estava demasiado "ocupado com a Crise de Outubro [crise dos mísseis em Cuba], com a guerra [contra os Estados Unidos], com as questões políticas..." O tom, aliás, é apologético: "É como quando o santo peca, verdade? Não é mesmo que pecar o pecador, pois não?"

Como qualquer mudança, os cubanos vêem a pretensa transformação de Fidel com desconfiança: está preocupado com o seu legado, quer ser visto como um patriarca benevolente. É um homem inteligente, dizemos. É uma observação idiota, mas a resposta é real. "O diabo também é inteligente", diz Jorge.

Nos últimos anos, a imprensa internacional tem assinalado os sinais de abertura e tolerância em Cuba em relação aos homossexuais. Desde que Raúl Castro assumiu o poder, em 2008, que é possível fazer operações de mudança de sexo gratuitas no sistema de saúde cubano. A filha de Raúl, Mariela Castro, dirige o Centro Nacional de Educação Sexual, que tem tido um papel activo na defesa dos direitos das minorias sexuais.

No cabaret Las Vegas, um estabelecimento estatal em Havana, existe desde Setembro um espectáculo de transformismo todas as quintas-feiras à noite. Imperio e Margot, com os seus corpos femininos e rostos masculinos, interpretam divas em playback com o dramatismo de actrizes do cinema mudo e muitas lantejoulas. Rapazes de camisa aberta no peito sobem ao palco durante as actuações para lhes meter notas no decote e dar-lhes um beijo casto de lado, como se fossem santas. A avó de Imperio, uma mulata em cadeira de rodas, assiste, numa das mesas, rodeada de homens abraçados. Margot conta anedotas, como aquela em que Jesus Cristo desce à terra para reparar Havana e volta ao céu feito revolucionário. Compañero Jesus Cristo. Um espaço de liberdade no sufoco da ditadura? Imperio, aliás Abraham Bueno, é tão irreconhecível - apetece dizer: tão masculino - quando sai para a rua no final da noite (com a sua tira de cabelo comprido despontando da cabeça rapada e botas militares) que parece a metáfora perfeita de um socialismo que vive de aparências. Abraham pede que lhe ligue sábado à uma da tarde, mas nunca atenderá o telefone. Jorge, que foi o intermediário da combinação, ironiza: "Deve pensar que é a Lady Gaga. Ou então espera que lhe ofereças dinheiro." Mas depois de dois dias de tentativas insistentes e mensagens deixadas no atendedor sem resposta, ele confirma a suspeita: "Creio que ganhou medo."

Autorização superior

"Os cubanos chegam a baixar a voz quando falam de política. Existe alguma paranóia", dissera uma amiga de uma amiga que viveu em Cuba quatro anos. Se existe, essa paranóia é fruto da acção dos chamados Comités de Defesa da Revolução (CDR), a vasta rede de vigilantes que a engenharia social do comunismo cubano criou, um Big Brother do povo, com o povo, para o povo. Em todos os quarteirões existe um CDR, um militante do partido encarregado de organizar o trabalho voluntário da comunidade na limpeza pública e vigilância nocturna (uma vez por mês, entre as 10 da noite e a uma da manhã, cada vizinho tem de vigiar a rua, explica Jorge). Os CDR também zelam pela vacinação das crianças e doações de sangue. "Desempenham muitas tarefas, mas a mais importante é a vigilância. Sabem o que faz todo o mundo", diz Jorge. Ele promete perguntar à sua CDR se não se importa de falar com a Pública. A resposta equivale a uma negativa: é preciso pedir autorização superior.

Diana e Juan Miguel (nomes fictícios) são o oposto de uma sociedade amordaçada, por medo ou por hábito. Durante quatro horas, falam de forma franca com uma jornalista estrangeira aparecida do nada. A conversa decorre no alpendre da sua casa no Vedado, o bairro de Havana de casas apalaçadas onde vivia a burguesia cubana antes da revolução. Diana e Juan Miguel são um casal da classe média onde não é suposto haver classes. Juan Miguel, um motard com uma corrente pendurada nos jeans, tem um BlackBerry, um computador portátil e Internet, utopias para a maior parte dos cubanos. Os sinais de prosperidade económica são visíveis na casa, de onde emergem ocasionalmente os gémeos de oito anos, filhos do casal, ela plácida, ele irrequieto.

Aqui, em plena rua, até que anoiteça, Diana e Juan Miguel dedicam-se a expor as contradições do socialismo cubano. Diana é professora de piano numa escola de música e recebe um salário mensal de 25 dólares. Diana estudou dos sete aos 23 anos, Juan Miguel não estudou. Contudo, se têm uma boa vida, é graças ao negócio de Juan Miguel, que monta e vende esquentadores e fogões. "Conheço um engenheiro termonuclear que cria galinhas", diz Juan Miguel.

Em Cuba existe a política de pleno emprego: o Estado garante que toda a gente tem trabalho. Mas os salários praticados - 25 dólares é a média - significam que toda a gente tem de fazer mais qualquer coisa para sobreviver. Criar galinhas, trabalhar no mercado sexual, ludibriar turistas, roubar no local de trabalho. (Uma noite, Jorge confidenciou que pedira a uma empregada num restaurante estatal para roubar loiça. "Preciso de travessas e isso não se arranja nas lojas. Vou pagar-lhe dois pesos cada. É um restaurante do Estado. Ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão.")

Os cubanos assumem-no sem problemas de consciência. Porque sabem que toda a gente faz o mesmo ou porque consideram que o maior criminoso é o Estado. Porque precisam de viver. Em tempos, Juan Miguel trabalhou na distribuição de carne e roubou para vender no mercado negro. Uma vez foi denunciado e levado a tribunal, correndo o risco de receber uma pena de 18 anos de prisão. Juan Miguel pagou ao juiz e voltou ao mesmo trabalho.

Agora tem o seu próprio negócio "legal" - legal entre aspas, porque está reconhecido legalmente, mas a forma como o pratica é ilícita. Não podia ser de outra forma: as condições não estão criadas para trabalhar de forma legal. Num país de escassez e monopólio estatal, não existem matérias-primas disponíveis para os negócios privados florescerem.

É por isso que Juan Miguel não está particularmente optimista em relação à mudança económica que Raúl Castro ventilou nos últimos meses e que o 6.º Congresso do Partido Comunista Cubano, que decorre até terça-feira, deverá validar. Um dos sinais mais visíveis dessa mudança é a proliferação de pequenos negócios privados nas ruas de Havana. Os cubanos chamam-lhes cuenta propistas, trabalhadores por conta própria: bancas de comida improvisadas na frente de casas, vendedores de rua. Longe de representar uma verdadeira emancipação económica, é um mercado de trabalho limitado, incapaz de responder às aptidões e mais-valias individuais, defende Juan Miguel. Só é uma mudança positiva se a ambição de alguém for vender croquetas (croquetes de carne oleosos e de cor alaranjada) ou pizzas sensaboronas.

"La doble moral"

Dito isto, pessoas como ele têm de encontrar formas de trabalhar com o sistema, apesar do sistema: comprando matéria-prima extraviada, subornando inspectores, pagando por facturas falsas a fornecedores fictícios para manter a aparência de legalidade fiscal.

Em Cuba chamam-lhe la doble moral, o jogo duplo em que toda a gente faz o que é preciso para ir vivendo, ainda que seja ilegal, mantendo ao mesmo tempo uma aparência de firmeza revolucionária. A doble moral, como tudo em Cuba, é vertical, praticada por dirigentes e dirigidos. "Se tu fores falar com a minha CDR, ela vai defender a sua imagem revolucionária. E no entanto ela vende-me azeite de forma ilegal."

"O socialismo, como ideia, tem boas intenções. Mas o sistema é diabólico", resume Diana.

Num outdoor na 7.ª avenida, no bairro de Miramar, onde residia a classe alta antes da revolução e hoje estão sediadas embaixadas, está escrito: Revolución es: no mentir jamás; no violar principios éticos. As cores estão esmaecidas, como o resto de Havana. As frases da revolução que pontuam por toda a cidade, com o seu tom moralista, heróico (Socialismo o Muerte) ou triunfante (Podemos Vencer y Venceremos!), são ruínas fotogénicas, como o resto de Havana.

A doble moral resumida por um economista que prefere o anonimato, num rasgo visual: "O dirigente convoca-te para ires à praça amanhã e todos vão à praça, mas estão a pensar outra coisa. Isto degenera o próprio modelo."

Sábado de manhã, e o trânsito está parado nas ruas laterais da avenida Paseo, um boulevard parisiense na ecléctica Havana, para deixar passar os camiões de fusis e tanques. O aparato militar cubano desfila o seu anacronismo a passo de elefante num ensaio a uma semana do desfile real que assinalará o 50.º aniversário do triunfo na Baía dos Porcos, a falhada invasão de exilados cubanos promovida pelo governo americano de J.F.K.

"Há 20 anos que não se faz um desfile assim, por falta de dinheiro", explica o arquitecto Pedro Vasquez, 64 anos. De um lado e do outro da avenida, jovens com a farda militar formam um cordão verde-azeitona. São rapazes e raparigas actualmente a cumprir o serviço militar, obrigatório para eles, voluntário para elas. O desfile também terá uma participação civil, com estudantes e elementos do povo representando cada um dos municípios de Havana e províncias do país. As projecções antecipam a presença de um milhão de pessoas.

Pedro Vasquez vira para uma artéria lateral e a temperatura baixa. As ruas arborizadas do Vedado proporcionam sombra e frescura. O Vedado é onde Havana conquistou a selva e agora a selva parece reclamar a sua vingança. As raízes das árvores rebentaram os passeios. À falta de manutenção ou desbaste, as árvores cresceram livremente, sorvendo o espaço.

"Havana é uma cidade de um socialismo pobre", diz o arquitecto. "Tem carências, problemas de manutenção e conservação e apropriações urbanas que são os típicos problemas que têm a ver com a pobreza. Mas, por outro lado, é uma cidade protectora, equitativa, amável, alcançável." Teria sido mais difícil dizer isto nas ruas esburacadas, sujas e fétidas de Centro Habana, onde famílias de dez pessoas partilham uma assoalhada. "Não tem ruas privadas, não tem condomínios, os níveis de delinquência são muito baixos. É uma cidade aberta a todos, que te recebe, e isso tem a ver com o socialismo."

"Há um urbanista de Miami que diz que Havana é a última cidade que nos resta. Quando passeias no mundo encontras outras cidades antigas que não são amáveis. Em Paris, a pressão do património é tão grande que é restritiva. Havana é uma cidade descontraída, onde te sentas placidamente a qualquer hora do dia. Não sabemos a que cheira o gás lacrimogéneo."

Cinquenta e dois anos de solidão parecem ter criado nos cubanos um instinto de competição com o mundo exterior. Se os cubanos não têm dúvidas de que os estrangeiros têm uma imagem distorcida do seu país (pressuposto bastante justificado, por sinal) como se só eles estivessem na posse da verdade sobre Cuba ("As pessoas com experiência do capitalismo não conseguem abstrair-se e compreender o sistema cubano"), também têm tendência para imaginar o mundo exterior, inacessível, como um lugar inseguro, violento e pleno de desvantagens.

Ao contrário dos seus compatriotas, Pedro Vasquez é um homem viajado, com o mundo no bolso. Mas o mundo só parece ter confirmado o excepcionalismo cubano. Ele viu cidades tristes, onde as pessoas só riem com a boca. E como riem os cubanos? "São escandalosos."

"Nós, cubanos, rimos muito para não chorar. Sofremos por dentro", diz Yoel, 37 anos, e tão magro que os ossos despontam debaixo da T-shirt. Yoel pergunta de onde somos. "Portugal? A minha irmã vive em França." Mostra uma foto-passe da irmã que traz na carteira. "Para o ano vou a França. Vou aproveitar para comer bem", diz, acariciando a barriga inexistente. O plano é deixar-se ficar, arranjar um trabalho e mandar dinheiro para a mãe. Yoel nunca tinha reparado que a loja de livros em segunda mão onde trabalha também vende postais antigos. Isto é, até agora. Um velho postal com a Estátua da Liberdade parece iluminá-lo. "Não tenho tatuagens nenhumas, estou limpo." Levanta a T-shirt e mostra o tronco ossudo. Mas quando estiver em França - anuncia -vai fazer uma tatuagem com a Estátua da Liberdade. "Porque estarei livre."

Tatiana, 32 anos: a euforia com a perspectiva de uma companhia que a resgate da solidão num domingo à tarde não disfarça a melancolia. "Aquilo que ganhas é a metade da metade da metade de nada. Não temos onde cair mortos. Então vivemos de solidariedade, ajuda e colaboração", diz.

Corpos comprimidos

Como muitos cubanos, Tatiana é opaca quando fala de política. Nunca se sabe muito bem o que pensam ou se o que dizem é o que verdadeiramente pensam. "Não te posso dizer mal do meu país", diz ela, justificando-se. Tarefa inútil a de tentar mostrar que uma coisa é o país, outra o governo. Não se pode derrubar em minutos o trabalho ideológico de meia década, em particular a associação da pátria com os seus líderes.

Tatiana sonha com uma vida melhor. Traduzindo: que um novio estrangeiro a leve consigo um dia. Em Cuba um homem - qualquer homem - encontra mulatas disponíveis para amar. O casamento transnacional é uma das vias de saída da ilha. Quando tinha 21 anos, Tatiana envolveu-se com um português 30 e tal anos mais velho. Ele falou-lhe da revolução de Abril e chamava-lhe "minha fofinha". "É como cariño, no?" Dez anos depois, ela ainda se lembra. A possibilidade de levar Tatiana para Portugal terá sido aflorada, mas ele tinha um filho da idade dela. "Parece que isso era um problema para ele." E a seguir: "Se eu te der o nome dele, podes procurá-lo na lista telefónica?" Isso foi antes dos telemóveis. A última aventura de Tatiana tem 20 dias, um francês de meia-idade que nesta tarde de domingo lhe manda um sms a dizer: "Estou na Arábia Saudita, pensando em ti." Tatiana in excelsis.

"Se me mostrares o cartão do partido, dou-te um peixe." O socialismo tropical também produziu a sua própria versão do marialvismo. O peixe salta no passeio junto ao Malecón, a barra de betão com que Havana segura o Atlântico, onde pontificam canas de pesca. Tatiana não quer nada com homens cubanos. Mas um piropo é um piropo é um piropo.

Frente ao consulado de Espanha em Habana Vieja, o cenário repete-se todos os dias: filas de corpos comprimidos uns contra os outros, para pedir vistos, requisitar o reconhecimento de casamentos hispano-cubanos ou solicitar cidadania espanhola sob o pretexto da genealogia. Cuba a precipitar-se para a saída. "Se amanhã dessem vistos para o Haiti, os cubanos iam", dissera Juan Miguel, dias antes. E o Haiti é o que os cubanos invocam como referência, sempre que buscam um exemplo do pior.

"Hechos en Cuba"

As farmácias em Havana parecem lugares onde o tempo se quedou, paralisados para sempre nos anos 1950. Com as suas prateleiras e balcão corrido de madeira, lembram as farmácias antigas portuguesas. Mas o mais notório, como noutros estabelecimentos comerciais cubanos, é a existência de tanto espaço vazio. Os poucos produtos expostos não chegam para preenchê-lo. As embalagens são uniformes, independentemente de corresponderem a medicamentos diferentes: mesmo grafismo, mesmas cores.

São medicamentos hechos en Cuba, explica Gypsy, enquanto atende clientes na farmácia da Calle 23. "E às vezes são melhores, dizem as pessoas que viajam. Os outros países podem ter vantagens sobre nós, mas nós também temos algumas vantagens." Uma pequena minoria de fármacos vem da China.

Existe um défice de medicamentos? "Não."

Mas os clientes vão entrando com receitas médicas e recebem negativas. Um homem traz seis receitas médicas. Gypsy olha para cada uma delas, à vez, e repete: "No." O homem sai como entrou.

Os produtos são distribuídos nas farmácias uma vez por semana, às quartas-feiras. É por isso que quarta-feira é um bom dia para ir à farmácia. Se esgotarem entretanto, os medicamentos só voltam a ser repostos na semana seguinte. Pode dar-se o caso de o medicamento faltar numa farmácia mas existir noutra? "Tem em conta que em Cuba só existe um dono. O que quer dizer que, se não o temos aqui, é pouco provável que se encontre noutras farmácias."

Felizmente, o stock de Duralgina vai chegando para as encomendas. "Os cubanos tomam muita Duralgina. É como o Tylenol, para as dores de cabeça." O analgésico é vendido em cartuchos de comprimidos, sem caixa, que Gypsy extrai das gavetas da parte interior do balcão. Preço: 3,20 pesos cubanos, um valor tão irrisório que dificilmente pode ser convertido em moeda estrangeira. (A título de referência, note-se que 24 pesos cubanos correspondem a um dólar.)

"Isso é Duralgina?", perguntamos a uma senhora alta de compleição europeia. "Não, é para o sistema nervoso."

Como fazem os cubanos para não enlouquecerem?, fora a pergunta duas ou três noites antes. "Eu tomo um ansiolítico todos os dias", respondeu Jorge.

Na farmácia não se vendem pensos rápidos. "Há muito tempo que isso não entra aqui", diz a farmacêutica. "Procure no Habana Libre." O Habana Libre é um hotel no centro de Havana, com um centro comercial onde, entre lojas Adidas e um comércio cabisbaixo, se encontra uma farmácia internacional, a designação oficial para estabelecimentos com medicamentos importados, comercializados em divisa (a moeda cubana equivalente ao dólar, criada nos anos 90) e portanto mais caros do que nas farmácias locais. "Excessivamente caros", corrige a empregada. Para um cubano, isto é. Como outras lojas que começam a despontar em Havana - Paul & Shark, Pepe Jeans, Benetton -, estas farmácias são a evidência de um apartheid que divide turistas e cubanos. Elas existem por causa dos turistas, para os turistas. São inacessíveis para a maior parte dos cubanos.

"Os cubanos não conseguem entender que um estrangeiro queira viver aqui", diz o francês Robert, que trocou Paris por Havana há 14 anos. "Pensam que sou louco." Em França, Robert viveria com dificuldades, em Cuba vive tranquilo.

Mas, nota, "as coisas mudaram muito nos últimos anos". "As relações entre as pessoas deterioraram-se. Há 14 anos isto aqui era um paraíso para pessoas como eu. Hoje tudo é negócio. Como tudo é proibido, qualquer coisa que faças é ilegal."

O comandante não muda

Elizardo Sanchez, director da ilegal Comissão Cubana dos Direitos Humanos e um dos mais reconhecidos dissidentes cubanos, recorda que na década de 90, com o colapso do escudo soviético e a pressão europeia, houve uma grande esperança de reforma em Cuba. Felipe Gonzaléz e Jacques Chirac eram partidários da ideia, e Sanchez fez uma ronda diplomática a favor da causa. Numa parede em sua casa, estão pendurados retratos de Elizardo posando com Guterres e Sampaio, Gonzaléz, Aznar, Jimmy Carter ou Ted Kennedy. Mas Sanchez encontrou uma voz dissonante, Mário Soares. "Ele disse-me: "O comandante não muda." E tinha toda a razão. Foi muito realista. Se um dia o encontrar, diga-lhe que há um cubano que diz que ele tinha toda a razão."

Em Março, o governo de Raúl Castro diz ter libertado os últimos presos políticos existentes nas prisões cubanas, mas Sanchez permite-se discordar. O levantamento feito pela rede de voluntários da sua organização junto de famílias e de prisioneiros políticos regista a existência de 67 dissidentes atrás das grades ou em prisão domiciliária. Para Sanchez, Raúl Castro tenta "lavar a cara" do regime, mas o statu quo lembra a célebre frase do romance O Leopardo: é preciso que algo mude para que tudo fique na mesma. A polícia secreta cubana é "omnipresente e omnisciente". "Não é tão sábia quanto maciça. São centenas de milhares de polícias e colaboradores." Sanchez diz que tem o telefone sob escuta há 44 anos. "Estou a pensar candidatar-me ao Livro de Recordes do Guiness." E câmaras de vigilância na rua, apontadas à sua casa. "Eles sabem que você está aqui, viram-na entrar."

A Pública chega ao apartamento da blogger mais famosa de Cuba, um 14.º andar no bairro de Nuevo Vedado, à hora de jantar. Reinaldo Escobar, um homem muito moreno, sem camisa, abre a porta. A recepção é calorosa. Yoani Sanchez, 35 anos e aparência de rapariga, recomenda a vista desafogada sobre a cidade cintilante. O casal tem um compromisso pessoal depois de jantar mas demora-se a falar com a Pública. Parecem funcionar como uma equipa, dois-em-um.

"Comparo a situação em Cuba com uma casa em Habana Vieja. Às vezes caminhas pelas ruas desta cidade e encontras uma casa que só por milagre parece estar de pé. Vem um furacão e a casa continua em pé. Até que um dia alguém se lembra de tirar um parafuso da porta e a casa cai. Esta metáfora define para mim a situação actual em Cuba. Agora Raúl Castro quer reformar a casa. Mas quer manter a estrutura principal, os pilares, as vigas. Quer mudar a pintura. Mas a casa é irreparável", diz Yoani.

"As pessoas dizem que Raúl é um pragmático, um reformista. O certo é que ele é co-responsável por tudo o que aconteceu nos últimos 50 anos. O governo de Raul Castro tem um pecado original: ele não foi eleito. É uma ditadura sanguínea."

Reinaldo intervém: "Para mudar as coisas, ele teria de fazer uma crítica dos últimos 50 anos, independentemente de ter sido ou não protagonista do que ocorreu. Em vez disso, substituiu ministros e criticou a burocracia. A classe de dirigentes é que não soube interpretar a luz clara do seu irmão."

Onde está Fidel?

"Não sei, mas não me importa", diz Yoani, hiperconfiante. "Há um bolero que é assim [canta]: "Vais entrar no passado da minha vida..." Ele é como um fantasma levitando sobre o país. Mas eu libertei-me antes que ele morresse."

"As pessoas perguntam muito: qual é a alternativa, capitalismo ou socialismo? Nesta sociedade há um dono, que é o Estado, que decide o que produzir e a que preço vender. O que há em Cuba é um capitalismo de Estado.

Não creio que a saúde e educação sejam gratuitas. Quando ganhas 20 dólares por mês já estás a pagar por isso. Além do mais, tens de dar prendas aos médicos para ter uma boa atenção. Com que moeda se paga a educação em Cuba? Com a moeda mais cara - a liberdade. Na sala de aulas do meu filho há seis fotos de Fidel Castro. Na escola estão sempre a falar-lhe da guerra na Sierra Maestra, e do personalismo dedicado a Fidel, a Raúl, a Camilo [Cienfuegos]. Não posso exigir uma educação diferente para ele."

Yoani descreve-se como "uma cidadã que choca todos os dias com a realidade". Diz que faz "jornalismo de cidadão". Não se define como oposição. "Gosto muito da palavra blogger. Sou um misto de filóloga [a sua formação] e hacker."

Nas últimas semanas, foi acusada num programa da televisão cubana intitulado As Razões de Cuba de ser uma ciberterrorista ao serviço do imperialismo americano. O governo cubano bloqueou o acesso ao seu blogue, Generación Y, no interior de Cuba em Março de 2008. Desde Fevereiro deste ano, voltou a ser possível aceder ao blogue a partir de Cuba, mas, diz Yoani, "multiplicaram as inspecções nas redes institucionais" para saber quem o visita. "Esse é o rosto de Raúl Castro: mostrar uma abertura aparente e penalizar por detrás."

"Eles [a polícia de Segurança do Estado] estão preparados para uma conspiração na sombra, para um desembarque armado. Não estão preparados para algo que alimente em cada cidadão o desejo de expressar-se", diz Yoani, a blogger que incomoda o regime. "Quando comecei era como Robinson Crusoe na ilha. Agora somos centenas. Já perdi a conta."

Yoani e Reinaldo descem para a rua com a Pública. Depois de ensinarem como se apanha um táxi colectivo para o Vedado, deram meia volta e entraram na noite, de mão dada. Mi amor, dizem constantemente um ao outro. Um casal sem medo.

kgomes@publico.pt

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