Erbil Restam dez anos para salvar esta cidadela
A cidadela está dentro de muralhas e isso ajuda sempre a imaginar como era a vida. Uma visita guiada por um especialista em conservação de património ajuda ainda mais. Esta cidade tem uma cidadela magnífica e quer poder orgulhar-se dela. David Michelmore também. Por Sofia Lorena (texto) e Nuno Ferreira Santos (fotografia), em Erbil
David Michelmore tem um daqueles sotaques impossíveis. É britânico, que nasceu num país de África e viveu noutro antes de partir para o Reino Unido, mas tem um daqueles sotaques que até aos britânicos aflige. Para além disso, anda depressa. Percorre sem paragens as ruelas e os becos e as curvas da cidadela de Erbil, que conhece como ninguém. Por tudo isso, é preciso correr atrás dele, não o deixar fugir, estar sempre o mais perto possível. Para ver, ouvir e perceber.
"Aqui era uma pequena casa otomana. Tem dois quartos, a casa de banho está debaixo das escadas, era uma casa de dois andares. Costumava haver muitas, sobram poucas."
Isto é só o começo. São 16h30, hora escolhida para não morrermos de calor e porque a visita guiada deverá durar uma hora e meia, assim disse David.
"Esta parede é mais velha do que o resto do edifício. Pensamos que eles eram muito flexíveis sobre o uso dos edifícios. Aquilo são janelas de ventilação."
Agora, começamos a sentir-nos dentro da cidadela. Há ruas de dois metros de largura entre casas, outras ainda mais estreitas. Há muitas ruas e muitas casas: 486, nas contas deste historiador, especialista em conservação.
"O sistema de esgotos entrou em colapso e põe em perigo as construções. O solo está cheio de água", explica. "Isto é alabastro. Pensámos que era mármore. Provavelmente temos de mandar reproduzir o soalho. Os tectos eram de madeira. Ali estavam pinturas."
Estas casas, continua, geravam muito trabalho para os artesãos. "Eram precisos arquitectos, engenheiros, gente que soubesse trabalhar o ferro, os tijolos, aquilo eram queimadores de velas. O pavimento é feito à mão, de pedra."
David está de botas e calças de fazenda e uma camisa que parece fresca. Não sabe dizer quantas vezes já percorreu a cidadela. Foi contratado pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) para fazer o plano mestre, o documento que vai servir de base à reconstrução da cidadela, que um dia vai ser património mundial. Assim espera David.
"Ainda conseguimos ver tudo o que desapareceu desde os anos 1980. Não vai durar mais 30. Pensamos que há dez anos para salvar a cidadela."
David chegou a Erbil em 2004. Agora, vive cá, em Ankawa, o bairro cristão da cidade que é a capital do Curdistão iraquiano, ambiente descontraído e restaurantes com jardins, como a Cidade Velha de Damasco, onde David já viveu. David trabalhou em 29 países, do Butão ao Nepal, passando por Portugal (Óbidos). "É mais fácil trabalhar com orientais. Agora está a correr melhor. O pior foi o tempo que se perdeu."
Os ocupas estragavam
A cidadela já foi alvo de planos e de crimes. Até há pouco tempo estava cheia de famílias. Agora, foram expulsas, ficou só uma, para garantir que um dia a cidadela possa ser certificada como aquela que é há mais tempo habitada no mundo. Mais de sete mil anos, garantem-nos. Os ocupas estragavam, mas também cuidavam.
"Esta era a casa de Mohamed Karain. O telhado caiu em Março. Os armários são em gesso. Há painéis trabalhados na parede. Os telhados são de madeira, excepto nas casas mais recentes. As colunas são uma minoria. Punham estes troncos nas paredes contra os terramotos."
Há casas pequenas e casas grandes, com jardins, dois andares, varandas. Escadas de ferro, armários e nichos nas paredes com pinturas desbotadas, mas reconhecíveis. Há tectos incríveis.
Viver no escuro
"Estas casas são uma das descobertas mais importantes que fizemos. Edifícios sem janelas. Serão do século VIII, IX. São em tijolo, gesso, têm estes nichos, eram as camas. Nunca antes encontrei uma cultura em que as pessoas vivessem no escuro. Há este nichos de canto que não sabemos para o que serviam. Esta é a porta original, de madeira. Há aquelas pequenas aberturas, de ventilação, mas estão cobertas com grades de madeira, muito apertadas. Estão muito intactas, exceptuando os acrescentos dos ocupas."
Os ocupas construíram quadrados de cimento para viver, mas no jardim, entre duas casas de gente que vivia no escuro.
"Esta é uma casa como as que encontramos em Damasco, que não seria normal encontrar por aqui. Eles eram especialistas em tectos de madeira. A indústria dos tijolos não será um problema, ainda existe. Mas para os gessos decorativos provavelmente vão ter de mandar vir especialistas da Pérsia para os ensinarem."
Níveis de História
Esta zona foi alvo de demolições substanciais durante os anos 1990, ordenadas por Saddam, lembra.
"Há tantos níveis de História. As casas do início dos otomanos, com muitos nichos e grades de madeira... As casas do período otomano mais tardio. A nova construção islâmica. Os ocupas... Esta casa podia ser um restaurante simpático com jardim."
Na zona que Saddam Hussein mandou demolir vêem-se no chão os restos das marcas das fundações das casas. Dentro de algumas casas, há postes a segurar o telhado. No lado de fora há postes de madeira a segurar as paredes. Isso é quase tudo o que já se fez. Oficialmente, a reconstrução já começou. Na prática, o que existe são trabalhos temporários para não deixar estragar mais.
"Nesta casa pensamos que se podiam usar as fachadas para fazer um hotel simpático."
Sete túmulos
"Esta é uma bela casa do início do período otomano. Aqui vivia o xeque Mahmoud, foi um período turbulento, em que ele tentava estabelecer o seu governo. O portão ficava trancado à noite. Era o reino no Curdistão. Ali é o túmulo do xeque Ibrahim al-Quilani. Há sete túmulos dentro da cidadela."
Já andámos muito, já passámos por ruas onde é preciso baixarmo-nos para não ficarmos presos em ramos. Já subimos a varandas e a telhados, a andar sempre nos limites impostos por David, que tudo isto é frágil. Já subimos por escadas estreitas e íngremes para telhados e depois descemos desses telhados por outras escadas estreitas e íngremes.
"Aqui vivia a família Darius. Esta mansão é a maior da cidadela. Tinha esta lareira de gesso. As chaminés servem para ventilar. Do outro lado da rua está a segunda casa. Não sabemos qual era a casa e qual era o escritório. Aqui já começaram a fazer manutenção."
Agora estamos num segundo andar e seguimos David até uma varanda com vista para fora da cidadela. É a primeira vez que olhamos para a cidade assim, directamente, de dentro da cidadela. "Pensamos que esta casa podia ser um hotel de charme simpático. Ali em baixo, naquele quarteirão, vai ser o novo museu do Curdistão. Vai ser desenhado por Daniel Libeskind", o arquitecto do Museu Judaico de Berlim.
À procura de tesouros
Agora, estamos noutra casa e na parede há um longo poema em árabe, difícil de ler, com uma caligrafia complicada, nem tanto por ser muito ornamentativa, é bonita, mas é espinhosa.
"Esta era a casa do Abdullah Raman. O arco. A casa dos hóspedes. Para vermos como estes edifícios são complexos, aqui seria uma espécie de galeria, tinha um uso cultural, os edifícios tinham múltiplas utilizações. Nesta parede, aqui, percebe-se que houve uma casa construída por cima de outra. Foram soldados à procura de tesouros escondidos, escavaram e descobriram um nível interior, do início dos otomanos. A altura destes nichos mostra que o chão está mais acima do que devia."
"Às vezes temos informação suficiente para reconstruirmos, ou então utilizamos o que temos para ir em frente. Há sempre dúvidas. As casas foram construídas numa encosta, por isso é que caem com tanta facilidade."
"Aqui era a casa do Pasha Ali." Agora, estamos de novo a olhar a cidade lá em baixo, o centro de Erbil, a praça com fontes e sempre gente a passar, de um lado a mesquita e os banhos antigos; do outro o souq e uma área com casas antigas. É a chamada "zona tampão da cidadela", que deveria ser incluída no plano de reconstrução, mas, explica David, não foram autorizados a estudá-la.
"Aqui era onde alimentavam os pobres depois das orações de sexta-feira. Aquele é o Portão Haram, que só podia ser usado pelas mulheres. Aqui era um hammam [banho turco] duplo. Esta área também foi demolida por Saddam."
Agora, estamos quase a chegar ao fim do percurso escolhido por David para nos mostrar a cidadela. E são quase 18h00.
Um restaurante com álcool
"Esta zona foi reconstruída nos anos 1980, mas como não lidaram com aspectos como o sistema de esgotos..." Estamos na manhã seguinte, num enorme pátio, a olhar para uma enorme casa. "Aqui podia ser um restaurante. Como o Beit Jabri de Damasco, mas com álcool..."
Kak Dara não tem tempo a perder e vai falar depressa. O encontro foi marcado para as 8h00. Kak Dara não tem tempo a perder: só assumiu funções em Dezembro e é chefe da Alta Comissão para a Revitalização da Cidadela de Erbil.
"Agora é que o trabalho começou. Mas é feito cá dentro, não se vê ainda." Kak recebe-nos no seu escritório num contentor branco, um de três, junto à bandeira muito alta do Curdistão que se vê mal se entra na cidadela.
"Temos dois memorandos assinados com a UNESCO, o primeiro de 2007 para preparar o estudo, que documenta as casas. O segundo é o plano mestre, que está quase terminado, é um roteiro para a reconstrução. A UNESCO escolheu uma empresa de consultoria britânica para o executar. As casas estão documentadas em termos de características de estrutura e de arquitectura, por um lado, que nos diz o estado em que estão, e em termos decorativos, por outro. Há vários grupos, as casas que mantêm quase todas as características, aquelas em que a parte principal ficou, outro em que só restam partes muito limitadas. Ainda existem 90 casas no primeiro grupo."
Nas contas de Kak, há 580 parcelas, 320 com casas, 260 vazias, que já caíram ou então são os blocos de cimento que foram ocupados pelas pessoas que o governo regional entretanto desalojou e recompensou com um pedaço de terra e uma quantia de dinheiro.
Trazer a vida de volta
"Esta autoridade é relativamente nova. Chama-se "revitalização" e não reconstrução, porque a ideia é trazer a vida de volta à cidadela. Uma parte vai ser residencial, mas isso é mínimo. O resto será alojamento para turistas, lojas de charme, restaurantes, lojas de artesanato. Pequenos escritórios, centros culturais das delegações estrangeiras. Na primeira fase, escolhemos dez casas no anel exterior que estão num estado crítico. A UNESCO escolheu uma empresa de consultadoria egípcia e agora foi contratada uma empresa turca."
Kak já está cansado e tem um dia longo à sua frente, muitos mais dias longos a seguir a este. Mas sabe que está apenas a começar. "Não podemos fazer tudo ao mesmo tempo. Agora, estamos a fazer intervenções rápidas para não perdermos mais."
Para já, a cidadela de Erbil entrou para a lista provisória do património mundial da UNESCO. É a primeira fase e significa que tem a possibilidade de vir a ser incluída na definitiva.
"Já perdemos muito tempo. Temos um plano a curto prazo, de três anos, um plano a médio prazo, de dez anos, e um plano a longo prazo. Nestes três anos vamos finalizar a fase de estudo e começar a trabalhar em dez casas, talvez noutras dez, ao mesmo tempo que continuaremos a fazer manutenção. A cidadela será o verdadeiro centro da cidade, cheio de vida, cheio de actividades turísticas, como qualquer centro."
Uma oportunidade
Kak estudou Arquitectura e foi professor de Engenharia na Universidade de Bagdad, depois consultor em várias empresas.
"Esperamos que o dinheiro não se acabe. Temos planos para angariar dinheiro com a UNESCO, para promover a cidadela. Durante esta fase será uma boa oportunidade de investimento."
Kak não tem tempo a perder. Deixamo-lo e damos mais uma volta pela cidadela, espreitamos os banhos turcos onde a esta hora já há três turistas, dois ocidentais, um asiático. Percorremos uma das ruas mais largas, seguimos em frente e descemos por outro lado, para contornarmos parte da cidadela cá de baixo, da rua em redor. A cidadela está situada numa encosta, de 28 a 32 metros de altura, e tem uma área que ronda os 100 mil metros quadrados.
A meio caminho, olhamos para cima e lá está Kak, capacete amarelo, um grupo de engenheiros à volta dele, a olhar para uma das partes da muralha, a precisar de intervenção urgente.
Última de uma série de reportagens do PÚBLICO no Iraque que começou a 2 de Agosto, no 20.º aniversário da invasão do Kuwait