Discretos predadores da porta do lado
Há espiões por formação e espiões por necessidade. Vivem vidas duplas e iludem quem os rodeia, como ficou bem claro quando uma dezena deles foi exposta nos EUA. Há características de personalidade que potenciam um bom espião, mas, de facto, "não é para todos". Por Luís Francisco
Espiões disfarçados de pessoas normais ou pessoas normais a fazerem o trabalho de espiões? Analisando o caso recente da denúncia e detenção de dez pessoas nos EUA, acusadas de espiar para a Rússia, a resposta certa parece ser... sim. Porque no heterogéneo grupo que as autoridades norte-americanas expuseram há pouco mais de uma semana há um pouco de tudo. Bem como doses generosas de mistério, algo incontornável numa boa novela de espiões.
Os que passaram os últimos dias a torcer o nariz relativamente à forma como os norte-americanos empolaram o assunto hão-de ter pensado duas vezes perante o facto de, ontem, a Rússia e os EUA terem levado a cabo a maior troca de espiões desde a Guerra Fria (ver P1, pág. 12/13). De um lado, quatro especialistas (um perito nuclear, dois agentes dos serviços secretos russos e um coronel da secreta militar), acusados na Rússia de espiar para os EUA e o Reino Unido. Do outro, os dez "amadores" detidos na América.
Não eram, portanto, irrelevantes. As manchetes dos jornais falaram dos "espiões dos subúrbios", assim uma espécie de fórmula elegante de, simultaneamente, destacar a sua integração na sociedade americana e menorizar o impacto da sua actividade. Numa era de terrorismo global, em que bombistas suicidas emergem de famílias e comunidades funcionais, estes homens e mulheres que canalizariam informação para Moscovo parecem inofensivos.
Talvez até fossem, embora a decisão russa de aceitar a sua troca por agentes com (aparentes) qualificações bem mais incisivas possa dizer o contrário. No final, fica sempre a política. "Os Estados convivem com a espionagem. Sabem que ela existe, de um lado e de outro, e essa realidade não bloqueia as relações institucionais. Só que, de vez em quando, surge a pressão diplomática que leva às expulsões e episódios mais dramáticos", analisa José António Barreiros, advogado, autor de romances de espionagem, incluindo um (Nathalie Sergueiew, uma agente dupla em Lisboa) que relata a actividade de uma espia russa em Portugal.
Será coincidência que esta história tenha sido desencadeada nos dias que se seguiram a uma visita do Presidente russo, Dimitri Medvedev, aos EUA, onde foram trocadas mensagens de cooperação e sã convivência? Custa a crer. "Muitas vezes, a espionagem é uma realidade fabricada", diz José António Barreiros. Dá jeito aos políticos agitar a bandeira da defesa nacional e mostrar à opinião pública os inimigos da nação.
"Haver gente colocada em países estrangeiros, isto é normal. Imaginemos, por exemplo, um jornalista que está em sítios onde passa a informação. Naturalmente, ele recolhe-a, é o seu trabalho. Pode passá-la a alguém. Daí a ser espião vai uma grande diferença. Mas são inúmeros os casos de jornalistas acusados de espionagem..." José António Barreiros está, por isso, convicto de que é "o interesse estratégico dos Estados", e não "a novidade", que dá dimensão ao fenómeno.
Assim, o que interessa, neste caso, não é tanto perceber se os cidadãos agora deportados passaram informações importantes. Interessa é que a sua exposição terá sido do interesse estratégico da Administração Obama. De um ponto de vista geopolítico podem levantar-se várias hipóteses e cenários. Mas o que apoquenta o cidadão comum é aquela comichãozinha estranha de perceber que o vizinho do lado pode, afinal, não ser bem quem pensávamos...
Espiões são predadores
A cara bonita de Anna Chapman, a ruiva de 28 anos que se tornou o rosto mais conhecido do grupo, deu uma ajuda na popularização da história. Isto não é caso virgem. Se uma professora abusa de um aluno, é sempre notícia. Mas se a professora em questão calha a ser atraente, então isso é matéria para noticiário nacional nos EUA - e, por arrastamento, no mundo inteiro. Muito do que se escreveu recentemente sobre a adolescente norte-americana acusada de homicídio em Itália tinha a ver com o seu estilo e a sua beleza física, não com o crime.
Anna, olhos verdes e cabelo flamejante, sorriso sedutor e atitude descontraída, é filha de um diplomata russo, estudou em Volvogrado e Moscovo. Manteve o apelido do primeiro marido quando se mudou do Reino Unido para os EUA, após o final do casamento (que durou de 2002 a 2006) e uma passagem por Moscovo - chegou a Nova Iorque em Fevereiro deste ano. Alex Chapman, curiosamente, é psicólogo e em entrevistas recentes mostrou-se pouco surpreendido com as acusações feitas à sua ex-mulher. Declarou que Anna tinha mudado dramaticamente e que no final do casamento ela mantinha encontros "secretos" com "amigos russos".
Alex garante que Anna lhe confessou o facto de o seu pai ser um importante agente do KGB e declarou ser "capaz de tudo por ele". Terá sido por isso que ele abriu a sua mente para a hipótese de a então sua mulher poder ser uma espia? Ou limita-se agora a verbalizar suspeitas que na altura considerou irrelevantes? Mais importante ainda: Alex descodificou Anna no papel de confessor ou foi o seu treino profissional a dar-lhe pistas?
Talvez nem ele saiba. O que é certo é que a actividade de qualquer espião envolve "um esforço psicológico muito forte", salienta José António Barreiros. Não é para qualquer um. "O comum dos cidadãos não consegue fazer isto. Todos somos simuladores, mas na parte dos casos somos maus simuladores. Há pessoas com um certo tipo de personalidade (podemos falar de maior racionalidade, grande controlo emocional, capacidade de planeamento, por exemplo) que as torna algo camaleões", analisa Paulo Sargento, psicólogo clínico e docente na Universidade Lusófona.
Este especialista em Psicologia Legal e Psicologia do Comportamento usa uma imagem: "Os espiões aperfeiçoam a capacidade de simulação como os grandes predadores na natureza. São capazes de chegar a um sítio e absorver imediatamente as "regras" que devem seguir. Mudam de pele, planeiam as suas acções e seguem a sua linha sem se deixarem afectar por informação irrelevante. É o lóbulo frontal do nosso cérebro a funcionar a 100 por cento."
Não é "para todos", portanto. Paulo Sargento: "Há uma série de características que definem um bom candidato a espião, nomeadamente essa capacidade extrema de adaptação imediata ao meio circundante e a frieza para não se deixar desviar do objectivo." Como é que estas pessoas conseguem levar uma vida normal?
Nomes falsos
"Alguns têm mesmo perturbações de personalidade, a história está cheia desses casos. Mas também não podemos ficar reféns da imagem 007 que colamos ao universo da espionagem..." O raciocínio do psicólogo é complementado pelo do advogado: "Ser discreto é a regra do espião. Às vezes, também serve um exibicionismo orientado para áreas afastadas da sua actividade, exactamente para a ocultar. Tudo isto é sempre um jogo de espelhos."
Outra pista para compreender a estranha gente que vive uma vida dupla é o facto de essa existência não ser fruto de um treino apurado, antes da necessidade. "Muitas alinham neste jogo por dinheiro", salienta Paulo Sargento. "Uns sempre foram espiões, é essa a sua vida. Mas há outros com vida, família - e sabe-se como a família e uma actividade tão intensa e secreta como a espionagem não convivem bem..."
O psicólogo detecta neste grupo exposto nos EUA "um pouco de tudo", até a nível etário. Muitos terão sido direccionados para espiar na América há décadas, numa altura em que as relações internacionais entre os dois países não se comparavam com as actuais.
Anna, divorciada, 28 anos, recrutadora de talentos; Christopher Metsos, viajante misterioso (foi detido em Chipre), 54 ou 55 anos; Richard e Cynthia Murphy, ela consultora financeira, ele "doméstico" a tomar conta das duas filhas em idade escolar, ambos com cidadania norte-americana; Donald Heathfield e Tracey Lee Ann Foley, ambos na casa dos 40, dois filhos adolescentes, ele (talvez) canadiano, ela cidadã dos EUA, ambos consultores; Vicky Pelaez e Juan Lazaro, ela jornalista, 55 anos, nascida no Peru, ele peruano nascido no Uruguai; Michael Zottoli e Patricia Mills, dois filhos pequenos, ela uma dona de casa que se queixava dos vizinhos fumadores de baixo e da água que escorria para os seus vasos de flores vinda do andar de cima, ele um funcionário de uma empresa de telecomunicações sempre agarrado ao telemóvel em poses secretistas (contam agora os colegas); Mikhail Semenko, jovem, funcionário de uma agência de viagens, imigrante nos EUA desde 2008.
Os americanos chamar-lhes-iam "ordinary people", gente vulgar. Com a óbvia excepção de Metsos - que se supõe seria o homem do dinheiro, viajando pelo mundo para distribuir pagamentos -, todos os outros podiam ser vizinhos de qualquer americano venerador da Stars & Stripes. E, no entanto, eram espiões. Juan Lazaro deve ser um nome falso, Michael Zottoli e Patricia Mills são russos e chamam-se, tudo indica, Mikhail Kutzik e Natalia Pereverzeva.
Fossem eles espiões disfarçados de pessoas normais ou pessoas normais a fazerem trabalho de espiões, isso, por agora, ainda não se apurou. A verdade é que viviam ali mesmo ao lado e ninguém desconfiou. A natureza humana é capaz disto e de muito mais.