Rostos na multidão
s criminologistas explicam que o acto de seguir alguém na rua (o termo inglês é stalking) só começou a ser considerado crime na década de 1970, e nalguns países ainda mais tarde. Mas "seguir alguém na rua" é uma expressão vaga. Se estamos a falar de uma perseguição com vista a um assalto ou a uma violação, não há dúvidas que é um acto malévolo. Ou se se trata de perseguir celebridades ou ex-cônjuges, numa fixação doentia. Mas gostava aqui de defender uma dimensão mais lícita e poética desse acto de seguir alguém na rua.Gregory Dart, autor de um ensaio sobre este tema, cita o grande sociólogo alemão Georg Simmel para evocar a questão da "metrópole e a vida mental". A cidade é um caos de ruas e acasos, de encontros e aparições, de apocalipses e epifanias. Dart dá um exemplo banal: as pessoas com quem nos cruzamos nas escadas rolantes, em sentido contrário, pessoas que às vezes nos interessam por alguma razão durante segundos e que depois perdemos, talvez para sempre. E o mesmo acontece nas lojas, nos elevadores, nos cafés, nas avenidas, uma imersão na multidão que nos instiga a pequenas coreografias urbanas, ou, como diz Dart, "pequenas comédias do desejo urbano".
Os artistas sempre foram sensíveis a essa tentação. Dante não conhecia a sua amada Beatriz, que via de longe e imaginava, e só isso foi suficiente para ele escrever (e viver) uma vita nuova em 1295. Stendhal, no verão de 1819, arranjou um disfarce ridículo e seguiu Mathilde Dembowski de Milão para Volterra, na Toscana, causando grande irritação à senhora. Edgar Allan Poe tem um conto chamado The Man of the Crowd, sobre uma perseguição a um desconhecido. O flâneur citadino de Baudelaire pressupõe inúmeras perseguições inócuas. E como exemplos mais recentes temos a Suite Vénitienne (1979), de artista francesa Sophie Calle, que seguiu um homem que não conhecia até Veneza para o fotografar; e o primeiro filme de Christopher Nolan, Following (1998), sobre um jovem que persegue pessoas pelas ruas de Londres.
Há uma dimensão obsessiva e porventura patológica nesta actividade, sobretudo se se torna habitual ou se atemoriza o perseguido. Mas seguir pessoas não tem de ser sinónimo de assédio, pode ser uma espécie de jogo, sobretudo quando existe alguma atracção, mútua ou não. Lembro-me de no final do liceu ter andado atrás de raparigas na Conde Valbom ou na Visconde de Valmor, já não sei qual dos aristocratas, mas eu caminhava ao longe, percorrendo quanto muitos dois ou três quarteirões, como se estivesse a espreitar mulheres em privado, só que em espaço público. Isso nunca se tornou uma obsessão, até porque o fiz cinco ou seis vezes, mas guardo dessa experiência uma recordação poética: eu não ia abordar aquelas raparigas, não ia sequer persegui-las, apenas as seguia mais um pouco, mudava o meu caminho para ir pelo caminho delas uns minutos. Depois da adolescência nunca mais segui ninguém nas ruas, mas de facto a "vida mental na metrópole" é uma vida de expectativa, e de expectativa de encontros. Não há qualquer semelhança entre este stalking e outras formas mais agressivas, as esperas, as mensagens anónimas, os telefonemas mudos. O stalking, na sua dimensão ocasional e não premeditada, faz-se com desconhecidos (desconhecidas, no meu caso), como se quiséssemos saber onde nos leva uma cidade, o que fazem as pessoas, como é a vida delas, os hábitos e os percursos de pessoas que por uns minutos nos interessam. Gregory Dart chama ao stalking o contrário do flirting, e percebe-se porquê: em vez de ser um ritual sofisticado e blasé, é um impulso juvenil, uma curiosidade incontrolável.
Já em idade nada juvenil, ainda me aconteceu, em centros comerciais (que são as ruas de agora), alterar a direcção em que ia, ver aonde se dirigia uma rapariga de alças verdes, mexer nos mesmos discos que ela, uma troca de olhares brevíssima, um reconhecimento, às vezes um sorriso, uma coreografia, uma comédia. Não aconteceu muitas vezes, duas ou três, mas foi como na adolescência, sem o mínimo remorso moral, tanto mais que elas gostavam, ou não se opunham, entravam no jogo, passavam duas vezes pelo mesmo sítio sem necessidade e depois ia cada um à sua vida.
A vida numa cidade também é isto: labirintos e desconhecidos. A esperança ansiosa ou lúdica de encontrarmos, como escreveu um grande poeta, "rostos na multidão/ pétalas de um ramo escuro e molhado".