Luís Fernando Veríssimo Estou a escrever o meu primeiro romance espontâneo
É um dos maiores humoristas brasileiros, mas é fatalmente tímido. Faz três crónicas por semana porque se esqueceu de ir gerindo bem o dinheiro que ganhou. Aos 73 anos, está a escrever o primeiro livro que lhe nasceu na cabeça - os outros três romances foram encomendas. Chamar-se-á Os Espiões.
Luís Fernando Veríssimo é um homem de opostos. Ao longo dos últimos 40 anos tornou-se num dos mais conhecidos escritores brasileiros, com uma popularidade que extravasa as exíguas fronteiras da literatura, e no entanto nunca age como se fosse um homem de êxito, com milhares de seguidores: todo ele é discrição, ao ponto de por vezes ficarmos com a impressão de que se pudesse passava invisível. É um dos humoristas mais apreciados no Brasil, mas num contacto mais próximo fala sempre com muita seriedade e quando se ri, ri baixo, suave e por escassos segundos. É um autor tremendamente prolixo, e no entanto a sua produtividade oral é o oposto da escrita: ele fala pouco, respondendo apenas de forma sintética ao essencial.Isto não significa que seja arrogante ou distante ou desinteressado. Antes pelo contrário, é um homem de educação esmerada. Mas é fatalmente tímido: "Sempre fui. Muito mesmo. E por vezes acho que a escrita é uma forma de compensação. Na escrita posso comunicar como não consigo fazer em conversa. Em conversa nem anedota eu sei contar", admitia, com um ténue sorriso, em conversa com a Pública no átrio de um hotel lisboeta, num recente domingo de manhã. Veríssimo estava em Lisboa para participar do ciclo Letras em Lisboa, organizado pela Casa Fernando Pessoa.
Luís Fernando Veríssimo é um homem de aspecto curioso, baixote, a pender para o gordinho, de óculos a esconder olhinhos mirrados, que fala muito baixo e quase não gesticula. Por estes dias anda triste porque um dos seus grandes prazeres, a comida, foi-lhe vetado. "Sempre gostei de gastronomia, mas ultimamente só posso ler mesmo", diz, antes de confessar sem vergonha que não sabe "sequer esquentar água": "Só entro na cozinha para perguntar por que está demorando o jantar." Recentemente diagnosticaram-lhe "problemas de coração e diabetes", ou, como ele prefere dizer, "enfim, velhice", pelo que lhe foi proibido comer ovos e açúcar. "Estar aqui em Portugal e não poder comer doces é um martírio", confessa, admitindo um certo amor "por todo o tipo de pudim". "São coisas que não posso mais", diz, com tristeza.
Obrigado, o texto não é meu
Para se ter uma noção da dimensão do sucesso de Veríssimo, basta dizer que ele é o escritor brasileiro com mais textos apócrifos a circular na Internet. (Isto é: mais textos que não escreveu a circular com a sua assinatura.) "Isso é um fenómeno novo", vai dizendo. "É uma coisa incontrolável: você tem que aceitar como uma forma de homenagem que ponham o seu nome ali." Ele conta alguns casos que são exemplares da sua bonomia e bom humor.
Caso 1: "Uma vez uma senhora disse-me 'Olha, nunca gostei muito do que você escreveu, mas esse texto da Internet que eu li é excelente.' E o texto não era meu. Que é que você pode dizer? É agradecer e aceitar."
Caso 2: "Teve um texto chamado 'Quase' que era muito bem escrito. No Salão do Livro de Paris, uma senhora que tinha traduzido vários livros brasileiros para francês tinha também traduzido esse texto para uma colectânea. Nesse caso tive mesmo de dizer para ela: 'Olhe, isso não é meu.' Desiludi-a muito."
A escrita, é escusado dizer, sempre esteve presente na vida de Veríssimo. O pai, Alexandre [Érico] Veríssimo, foi um dos grandes escritores brasileiros e ele lembra-se "de o ver escrevendo noite e dia". Nascido em 1936, em Porto Alegre, Luís Fernando conheceu de perto toda uma geração de "intelectuais humanistas", quase todos "próximos do comunismo" e quase todos "de esquerda", a geração de que o pai fazia parte. Em miúdo era comum Luís Fernando chegar a casa e encontrar escritores como Clarice Lispector ou Jorge Amado na sala. "O Jorge chamava-me João", conta Veríssimo dando pequenas risadas. "Não sei porquê, um dia ele simplesmente me disse: 'Você tem cara de João, vou chamar-lhe João.' E assim ficou."
Veríssimo fala do pai com facilidade. Recorda-o como um homem terno (como nitidamente o próprio Luís Fernando é), calmo, muito lido e muito de leituras. O pai, diz, "nunca interferiu com nem guiou" as suas leituras: "Os livros estavam lá, eu lia o que queria", conta. O pai só torcia o nariz quando via o filho a ler banda desenhada: "Ele desconfiava um pouco disso."
É nítido que Luís Fernando tem orgulho da obra do pai, que leu e releu várias vezes. Considera que Alexandre "trouxe uma certa influência americana à literatura brasileira", e considera-o, sem esforço, um escritor superior a si. Mas, mesmo que concedamos que sim, não é comum ver-se um filho de escritor tornar-se igualmente escritor, ter igualmente sucesso (ou mais sucesso ainda) e, ainda por cima, não ter questões por resolver com o pai.
Só que Veríssimo-filho, homem de tanta sensatez que por vezes parece a antítese da imagem tipificada do brasileiro, é muito racional e frio a analisar a questão da escrita.
"Devo dizer que nunca almejei ser como o meu pai. É perfeitamente claro para mim que sempre fiz literatura menor, literatura de entretenimento. Eu escrevo pequenas crónicas sobre coisas mundanas. Não tenho mais ambições que isso", diz, com a calma dos homens que vivem sem dores de alma.
"Eu nunca quis ser escritor", continua. "Comecei a fazer crónica aos 30 anos, depois de uma série de trabalhos falhados. Sempre pensei que esse seria mais um. Pensei: 'Bom, vamos lá tentar.' Quando surgiu a oportunidade, para mim era um trabalho como outro. O que acontece é que quando comecei a escrever eu tinha passado tantos anos lendo que já sabia o que queria fazer e como queria fazer."
"Quebrar o galho"
Na altura em que Veríssimo começou a escrever em jornais "fazia-se jornalismo para quebrar o galho": o jornalismo, fundamentalmente, "era um segundo emprego" e muitos jornalistas "trabalhavam de dia para o Governo", o que criava situações de "incompatibilidade" que hoje "seriam consideradas inadmissíveis". E havia a censura, por causa da ditadura militar que durou de 1964 a 1985: "Não se podia escrever tudo o que se queria. Isso obrigava a gente a ser mais imaginativo." Por sorte, ele escapou sem chatices. "O nome de família também ajudou", admite, com uma humildade impressionante.
Muitas dessas crónicas - eivadas de um humor subtil, que, abordando a actualidade, brinca sempre com uma certa ideia de "brasileiridade" - estão reunidas em livro, numa obra de dimensões gigantescas. "Sabe que eu também não sei quantos são os meus livros ao certo?", diz a dada altura, dando mais uma das suas micro-risadas quase inaudíveis. "Devem ser penso que uns 80 livros, talvez mais."
Há uma razão para a sua obra ser tão grande: é que durante anos e anos ele assinou "uma crónica por dia". Mesmo tendo em conta que hoje o seu ritmo "é mais calmo" e que escreve "apenas três crónicas por semana", há uma pergunta óbvia que temos de lhe colocar: ele tem assim tanto amor à crónica que ainda tenha de escrever três vezes por semana? "Bem, eu ainda tenho de trabalhar", diz, para depois de muita insistência nossa e apenas a custo acrescentar: "Talvez eu não tenha sabido gerir bem o meu dinheiro."
Além das crónicas, Veríssimo foi ainda cartoonista, tradutor e escreveu vários (e admiráveis) livros de humor, além de escrever guiões para cinema e humor para televisão. E, no entanto, apesar desta extrema produtividade, ele diz que também sofre de writer's block. "Quem escreve regularmente, quem é obrigado a escrever com prazo marcado tem sempre esse problema." Só há uma forma, diz, de perante a pressão de prazos tão fixos manter a qualidade de escrita: ler minuciosamente os jornais e as revistas (de que diz ser "grande fã") e ter horários fixos para se sentar a escrever. Veríssimo é um trabalhador nato, ao ponto de ser um defensor dos prazos: "O prazo é bom porque impõe uma certa ordem, o texto tem de ser entregue na data certa, na hora certa. E organiza o tempo vago."
Luís e John Le Carré
Mas os prazos, pensamos, também têm os seus defeitos: os escassos três romances que Veríssimo publicou foram "todos escritos nas horas vagas, aos fins-de-semana". Porque "a minha obrigação, o meu ofício, é o de cronista". Ao contrário do que pudéssemos pensar, ele não tem pena de não ter escrito mais romances.
"Eu não sou um romancista. Todos os meus romances foram escritos de encomenda. A encomenda é óptima, porque dá prazo e tema." Veríssimo, que é de facto um tipo sem truques, honesto em cada declaração, diz que precisa de tema, por uma simples razão: "Eu nunca tive um romance na cabeça", confessa. "Eu nunca tive uma história que quisesse muito contar. Tenho de ser desafiado para me lembrar de uma história."
Por tudo isto, temos o prazer de anunciar que pela primeira vez, aos 73 anos de idade, Luís Fernando Veríssimo está a escrever um romance por livre e espontânea vontade, sem encomendas, pela simples razão de ter vontade. O livro chamar-se-á Os Espiões, "o meu primeiro romance espontâneo", como lhe chama Veríssimo.
Com a sua bonomia habitual, ele vai dizendo que apenas "tinha uma vaga ideia do que queria fazer" e que "o livro está-se definindo no acto de escrever", ao ponto de não saber ainda "como vai terminar". A ideia de fazer um livro de espionagem veio de "sempre ter gostado muito dessa literatura, John Le Carré e assim."
No entanto, ao contrário dos romances de Le Carré, Os Espiões não se passa num ambiente de intriga internacional mas sim no Rio Grande do Sul. "É a história de um homem que trabalha numa editora, lendo originais, que recebe um manuscrito de uma moça, pela qual se apaixona. E vai investigar se o que ela está escrevendo é romance ou não, se é uma confissão ou não."
Veríssimo está, como sempre, a escrevê-lo devagar, dando primazia às crónicas, para que o romance não seja uma obrigação mas sim um prazer. Mas há mais uma razão para o escritor não dedicar todo o seu tempo ao romance: recentemente foi avô, estatuto pelo qual já desesperava. Com graça, diz que Lucinda (a neta de um ano) veio "desfiliá-lo" do "movimento dos sem-neto". Ser avô é a sua profissão preferida, porque, admite, só tem "de estar presente para o que é bom". a
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