Miguel Mota, o homem que sabia de mais em 1957

Miguel Mota esperou 30 anos para ver comprovada a sua teoria sobre divisão celular, publicada em 1957. Esta semana, um grupo de investigadores quis homenagear o cientista português. Chamam-lhe visionário

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Os olhos, pequeninos e quase transparentes à volta de uma pupila negra, brilham quando fala de ciência. O corpo agita-se quando fala de política e, principalmente, da actual política do Ministério da Agricultura. Os braços caem, rendidos, quando fala da mulher que teve de "ir buscar" à Suécia e que é a sua companheira há mais de meio século. O peito incha quando fala do filho - "Descobriu a doença do pinheiro, conhece?" - e da filha - "É ela que põe os textos que escrevo no meu blogue". Cercado por um bigode aparado, o sorriso abre-se com a perspectiva da homenagem que está prestes a começar no Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC), no Porto, com o simpósio sobre os mecanismos de segregação de cromossomas. O título do comunicado do IBMC onde o apresentam como um investigador visionário é: "À frente do seu tempo: Miguel Mota".

Tem 83 anos. Passaram mais de 50 da publicação do artigo A new hypothesis for the anaphase movement, na revista International Journal of Cytology. O trabalho descrevia uma nova teoria para o chamado "movimento anafásico", a divisão celular que acontece "quando os cromossomas se separam e marcham para os pólos da célula".

Miguel Mota defendeu que uma estrutura em especial dos cromossomas, os cinetócoros, era determinante neste processo de divisão celular. Os cinetócoros eram o "motor a jacto" na anáfase, conseguindo mover os cromossomas para os pólos. Trinta anos após a divulgação da teoria, um investigador chamado Gary Gorbsky conseguiu finalmente comprovar experimentalmente a teoria de Miguel Mota.

Mostrar o que se faz
Gorbsky era uma das muitas pessoas sentadas no início da semana na plateia do auditório do Porto. Hélder Maiato, investigador do IBMC e organizador desta homenagem e simpósio, ocupava outro dos lugares. Tinha já elogiado o cientista português que "nos anos 50, sem recurso às tecnologias que hoje são comuns nos laboratórios, avançou com uma hipótese que revolucionou a compreensão dos mecanismos da divisão celular". O resultado do trabalho foi citado em diversos artigos, mas o nome foi muitas vezes esquecido. Talvez por isso o nome deste cientista não seja conhecido da maioria das pessoas. Miguel Mota não parece estar muito preocupado com isso. Sorri, encolhe os ombros e conclui: "Já passou."

A homenagem é recebida com "grande surpresa", diz o homem que em 1948 assumiu a liderança do Laboratório de Citogenética da Estação de Melhoramento de Plantas, em Elvas, após ter concluído o curso no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa. Não há aqui falsa modéstia. Apesar de sempre se ter mostrado "mais empenhado em conseguir cereais melhorados do que artigos científicos" - como notou o fundador do IBMC, Teixeira da Silva, que apresentou o homenageado -, Miguel Mota sabe que é importante mostrar o que se faz. "Acho que os investigadores que não querem que se saiba o que estão a fazer prejudicam-se a si e à ciência portuguesa e ao país."

O cientista que esperou décadas pela experiência que provou que ele estava certo sabe do que está a falar. O investigador Hélder Maiato comparou-o a George Mallory. Quem? Pois. Terá sido o primeiro homem a subir ao topo do Evereste, mas como nunca foi visto depois disso nunca foi reconhecido por esse facto. E consagrou-se o nome de Sir Edmund Hillary como o homem que chegou ao pico do mundo e voltou para contar.

Hoje, Miguel Mota está afastado da aventura das descobertas que fazia atrás das lentes dos microscópios, mas ainda está muito perto do que se discute na sua área de investigação: a genética, em particular na sua aplicação aos problemas na agricultura. Quando em 2006 recebeu um Honoris causa da Universidade de Évora, não quis "aborrecer" ninguém com o assunto da anáfase e a história da sua teoria, publicada em 1957. Preferiu falar de clonagem, um tema que "tem andando pelo mundo com grande divulgação".

Clones e estaminais
E no discurso, que está no seu blogue Melhor Portugal, Miguel Mota dá algumas lições, insistindo, por exemplo, que o termo "clone" tem sido mal usado. "'Clone' é um substantivo colectivo. Assim, como nenhuma pessoa é 'família', nenhum organismo isolado é 'clone'. Mas esse disparate, filho da ignorância, mesmo de quem tinha obrigação de não o cometer, é um dos erros que vemos pelo mundo e, naturalmente, também em Portugal", argumenta.

O investigador lembra assim que o conceito "clone" recebeu esse nome em 1903, quando o agrónomo americano Herbert J. Webber, num artigo na Science, o propôs para "um conjunto de organismos derivados de um único por reprodução assexuada".

Mas "clone" não é o único disparate que anda nas bocas do mundo, segundo Miguel Mota. O investigador prefere falar em "variabilidade" para se referir àquilo a que "agora gostam de chamar 'biodiversidade'" e também continua a tentar convencer as pessoas a desistir da expressão "células estaminais" para o substituir por "células tronco" (segundo explica, a confusão foi gerada por uma tradução mal feita do termo stem cells). "Células estaminais são as células dos estames das flores (em inglês staminal cells) e, no estado actual da ciência, não podemos obter com elas qualquer uso em humanos para curar tecidos danificados."

E sobre "o ridículo nome de 'agricultura biológica'"? "Enquanto as fábricas não fizerem couves sintéticas e bifes sintéticos, toda a agricultura é biológica", nota o especialista.

Falemos de agricultura, então. Pela voz do homem que é o "pai" de algumas linhas de centeio melhoradas que estarão implantadas em várias regiões do país, nas Beiras e Trás-os-Montes. "Foi o resultado de um trabalho que fiz em Elvas. São centeios aos quais dupliquei o número de cromossomas, fiz aquilo a que hoje se gosta de chamar 'biotecnologia', criando plantas com 28 cromossomas que nalgumas zonas podem, com rearranjos, autofecundações e selecção, dar 50 por cento mais do que os outros centeios cultivados." Onde estão? "Não sei o que é feito disso, porque o Ministério da Agricultura teve a gentileza de cortar e impedir uma série de trabalhos."

Por essas e por outras, está zangado. "Não pode haver agricultura que preste se o Ministério da Agricultura não tiver uma investigação agronómica em grande. E os últimos governos, de várias cores - qual deles o pior? -, têm seguido o caminho contrário", critica. Indignado com os rabanetes holandeses e os alhos da China que vemos no supermercado, questiona: "Qual é a dificuldade de produzir alhos em Portugal?" O que é um facto é que os agricultores alegam que há, cada vez mais, dificuldades em produzir. "Claro, com o Ministério da Agricultura a fazer os possíveis para destruir a agricultura e, assim, a assassinar a economia!", reage o especialista, que ainda acredita num futuro nacional apoiado na agricultura.

E reforça: "A base de um progresso na agricultura é a investigação agronómica." Miguel Mota não perdoa a decisão "idiota e criminosa" tomada em 2007 pelo Governo, que juntou num só organismo toda a investigação nesta área e "extinguiu" a Estação Agronómica Nacional, em Oeiras, onde assumiu vários cargos de chefia. E denuncia ainda: "O Laboratório Nacional de Engenharia Civil é hoje uma sombra do que foi."

O investigador gostaria também de ver chegar o dia em que se acabasse com o Ministério da Ciência e se criasse um "conselho nacional de ciência" com especialistas de topo de várias áreas. Como vê a ciência que se produz em Portugal? "Há uma quantidade de gente nova excelente. Ainda há alguns restos dos antigos que são excelentes e depois há uma quantidade de senhores medíocres, alguns em lugar de comando, que conseguem estrafegar uma porção de trabalho em vários sectores."

Olhar e ver
Aos mais novos deixa ainda o conselho que se espera de quem revolucionou ou inovou, próprio de um visionário. "Não se deixem cegar pelos livros. Tenham sempre as mentes abertas. Se as vossas experiências disserem o contrário dos livros, confirmem, confirmem de novo e publiquem-no. Os livros podem estar errados."

Miguel Mota é um espectador de primeira fila da actualidade do país. Agora tem mais tempo para "olhar e ver" - o que fez ao longo de toda a sua vida profissional, segundo notou Teixeira da Silva. Reformou-se em 1992 e, desde aí, escreve mais do que nunca. Para os jornais, para o Linhas de Elvas, onde é colaborador regular de opinião. Também ainda dá aulas de Genética em universidades séniores, entre outras actividades académicas. A mulher que hoje o observa (sem esconder um pingo de orgulho) enquanto é fotografado para o P2 foi sua aluna na sala de aula. Alguém diz: "O Miguel está bonito hoje. É para a homenagem?" Ela corrige: "Ele é bonito."

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