O homem que receitava a pílula quando a contracepção era proibida

Albino Aroso criou a primeira consulta de planeamento familiar, fechou maternidades, defendeu a despenalização do aborto. O pai do planeamento familiar (o cliché é inevitável), um dos médicos "mais dedicados" do mundo, defende que vivemos numa "sociedade de contracepção".

Às perguntas responde sistematicamente com outras perguntas, provocador. Porque é que as pessoas não têm mais filhos? Porque é que se divorciam?

Aos 85 anos, acabados de fazer, o ginecologista Albino Aroso continua profundamente observador e curioso. Actualizado. Up to date talvez seja a melhor expressão para um homem que desde muito jovem procurou escapar "à educação tradicional portuguesa, muito baseada na escola francesa", e preferiu a cultura anglo-saxónica.

Nada lhe passa ao lado. É por isso que continua a receber várias publicações da especialidade e revistas — só no dia em que conversamos a caixa do correio estava atulhada com a Time, a Economist, a Engine. Depois de ler, sublinhar e anotar cuidadosamente, reencaminha tudo para filhos, netos, amigos. "As pessoas têm que estar actualizadas", defende, com a determinação e a legitimidade de quem continua a aplicar esta máxima a si próprio.

Para além da leitura, e depois de ter abandonado o exercício da medicina — deixou de operar aos 76 anos e de ver doentes no seu consultório perto dos 82 —, investe agora a maior parte da sua energia e tempo na agricultura numa pequena quinta em Guilhabreu (Vila do Conde), vizinha da aldeia onde nasceu, Canidelo. Planta de tudo, desde árvores de fruto a flores, legumes.

"Gosto imenso de ver as coisas crescer", entusiasma-se, enquanto lamenta a falta de sol dos últimos dias, uma falta que o impediu de cumprir a rotina revigorante de ir à quinta. Trata de tudo sem ajuda? "Claro. Ainda ontem pulverizei as árvores com calda bordalesa", responde o médico que conserva uma lucidez e uma forma física de invejar.

A mãe marcou-o
Terceiro de seis filhos de um casal de lavradores, o homem que criou a primeira consulta de planeamento familiar em Portugal quase só conheceu a mãe — o pai morreu de pneumonia tinha Albino sete anos — e ela marcou-o como ferro em brasa. "Chamava-me a atenção para a situação das mulheres. Dizia-me: "Vês, até o moleiro vem de botas e as mulheres andam sempre descalças...".

"Extremamente avançada" para a época, a mãe "sofria com a desigualdade entre homens e mulheres". "As mulheres eram escravas da casa, tinham os filhos que Deus Nosso Senhor quisesse. Não podiam ter nada no seu nome, não podiam sair do país sem autorização do marido. E apanhavam umas tareiazitas aos sábados." Foi assim, por influência da mãe mas também a conselho de um tio (que era médico), que acabou por optar por um curso "que pudesse atenuar a vida miserável das mulheres".

Depois de se licenciar pela Faculdade de Medicina do Porto e de ter começado a trabalhar no Hospital de Santo António, conseguiu uma bolsa de estudo e foi para Inglaterra. Ao longo dos anos, acabaria por usufruir de outras bolsas, que o levaram à Suécia, Holanda, Alemanha, Áustria, Suíça e França. "Assisti à mudança espantosa que se verificava então na Europa."

Regressado a Portugal, foi um dos fundadores da Associação Portuguesa para o Planeamento Familiar, em 1967. E, dois anos depois, criou a primeira consulta pública de planeamento familiar. "Começou por funcionar [no hospital] apenas uma manhã por semana, à quarta-feira, até que passou para seis manhãs por semana e, mais tarde, para todos os dias de manhã e de tarde", explica. Foi um sucesso. Numa altura em que era proibido receitar contraceptivos, ninguém saía daquela consulta de mãos a abanar. Para contornar a interdição, "as mulheres passaram todas a ter ciclos menstruais irregulares",
ri-se.

Maternidades encerradas
Já nessa altura o que Albino Aroso queria era que as mulheres tivessem os filhos que quisessem ter — e quando pudessem, claro. Uma filosofia que lhe valeu então ataques e "ódios terríveis" dos grupos mais conservadores. "Os homens tinham medo que as mulheres começassem a ser-lhes infiéis..."

No Hospital de Santo António, onde dirigia o Serviço de Ginecologia, tratou também de pôr rapidamente fim a uma prática "desumana": as mulheres que chegavam à Urgência com complicações após um aborto — "e que antes eram tratadas com drenos de Mouchotte, a frio" — passaram a ter direito a anestesia geral antes da evacuação do útero. Foi outro sucesso. "As abortadeiras faziam abortos às terças-feiras para que, se as mulheres tivessem problemas, pudessem vir ter comigo no dia seguinte. Escapei por pouco de um processo disciplinar no hospital."

Mas foi já depois da revolução de 1974 que pôde deixar a marca que contribuiu decisivamente para a alteração dos indicadores de saúde materno-infantil em Portugal — que passaram dos piores da Europa para dos melhores do mundo em poucos anos (em 2006, a taxa de mortalidade infantil era de 3,3 por mil, já muito perto da da Suécia, 3,1 por mil).

Secretário de Estado da Saúde no VI Governo Provisório (com Sá Carneiro), Albino Aroso publicou a Lei do Planeamento Familiar em 1976. Mais tarde, quando voltou ao cargo a convite de Leonor Beleza, no final dos anos 80, liderou o grupo de trabalho que fechou 150 maternidades em todo o país. Na altura, os especialistas da Comissão Nacional de Saúde Materna e Neonatal calcorrearam o país para explicar a médicos, autarcas e cidadãos por que razão era necessário que os partos deixassem de ser, como eram então, assistidos "por freiras e clínicos gerais".

Quase duas décadas depois, foi necessário voltar à carga e encerrar mais uma dezena e meia de blocos de parto. Dessa vez foi mais complicado, sucederam-se protestos e manifestações. Mas as maternidades fecharam. E ainda bem, orgulha-se o ginecologista. "Agora, as mulheres podem escolher o local onde têm os filhos. E usufruir de todas as condições de segurança. Têm pediatra, obstetra, anestesista".

Mas, para que esta reforma não parasse, foi necessário que os especialistas dessem a cara a defender os encerramentos. E Albino fê-lo, desdobrou-se em declarações, entrevistas, participações em debates. Envolveu-se com entusiasmo, tal como sempre fez nos debates sobre a despenalização do aborto.

"A sociedade mudou de uma forma radical. Antes, quando uma criança morria, dizia-se que um anjinho ia para o Céu. Agora, é uma tragédia, a culpa é do malvado pediatra, do transporte, do hospital", enumera.

Sete filhos, oito netos
Em 2005, foi considerado pela Associação Médica Mundial um dos 65 clínicos "mais dedicados" às causas públicas em todo o mundo. No livro em que é publicada esta lista, com pequenas biografias, Aroso surge ao lado de médicos como o espanhol Pedro Alonso, seleccionado pelo trabalho no desenvolvimento da vacina contra a malária, e de Jasuhiko Morioka, cirurgião que fez uma operação ao último imperador japonês. No ano seguinte, nova distinção: o I Prémio Nacional de Saúde.

O homem que ficou conhecido com o incontornável cliché de "pai do planeamento familiar" — "parece que não tem mãe", ironiza — teve sete filhos mas nenhum deles lhe deu mais de dois netos. "Hoje vivemos numa sociedade de contracepção", justifica. E qual é o problema? "Temos que nos adaptar à mudança brutal da sociedade. Não é preciso aumentar a população, mas sim mantê-la."

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