D. João VI O Brasil está apaixonado por ele
D. João VI chorou quando soube que ia ser rei. Mudou-se para o Brasil, passeou no Rio de Janeiro. Banqueteou-se à mesa, chamou a ópera e o teatro. Governou Portugal a partir do Brasil durante 13 anos. O Brasil já comemora os 200 anos da chegada do homem que possibilitou o grito do Ipiranga
a João Villaret deu-lhe corpo e voz no filme Bocage, em 1936. Manoel da Nóbrega ilustrou-o em Independência ou Morte, em 1972. Marco Nanini emprestou-lhe o sotaque em Carlota Joaquina - Princesa do Brazil. Foi retratado em peças de teatro, romances, Inspirou poemas. Coloriu partituras musicais, transformou-se em conto infantil. Conta-se que D. João VI chorou quando soube que seria rei de Portugal. Que se transformou num hedonista, principalmente à mesa. Que era também determinado. Que passeava nas ruas do Rio de Janeiro, sem séquito. Escreveu-se que era tranquilo, que não gostava de salamaleques. Que conquistou o epíteto de Clemente, que criou um país. Comprova-se, com factos, que fundou o Brasil como ele é. Que, inadvertidamente, criou as instituições que permitiram a independência. Que disseminou a arte, que divulgou a cultura. Que não queria voltar a Portugal. Terá chorado de novo?
Há pouco tempo, o canal televisivo SBT invocou-o para centro de uma reportagem. Ao mergulhar nesse universo, a jornalista Ana Paula Padrão agarrou pedaços espalhados pelo Brasil. E recuperou documentos em Portugal. "Foi muito interessante estudar D. João VI. Descobrir que ele foi bem mais do que o "glutão" registado na história. Foi ele quem criou as bases para a independência." Será um novo parágrafo no texto dos historiadores modernos. O correr da história retratava-o como fugitivo da investida de Napoleão. Expunha-o como o regente que optou pelo Brasil para salvar a corte. A versão lendária esbarra com as investigações feitas por um descendente - "e por vários historiadores"- D. João de Orleans e Bragança. "Nada disso, ele queria mesmo transferir a corte para o Brasil, queria governar o império português através do Rio de Janeiro."
Em 2008, o Brasil assinala o bicentenário da chegada da família real. A história, a dos compêndios, pode resumir-se desta forma: a 22 de Março de 1808, o regente D. João VI chegou com a corte a Salvador da Bahia, mudou-se para o Rio de Janeiro, a 26 de Abril de 1821 regressou a Portugal e ao chegar a Lisboa jurou a Constituição. Em 1822, um dos filhos, D. Pedro, solta o grito do Ipiranga para que todo o mundo ouvisse que o Brasil era um país independente.
Pelos anos de permeio, D. João VI foi coroado rei, criou a Imprensa Nacional, a Biblioteca Nacional, o Jardim Botânico, a moeda régia. Abriu faculdades, lançou a Escola Nacional de Belas-Artes. Implantou o teatro. E empurrou a metamorfose de colónia para país. "Foram 13 anos de esplendor, de criação e de consolidação deste país continente", vaticina Alberto Costa e Silva, comissário das comemorações do Bicentenário da Chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil. "Ele é o símbolo do afecto do povo pelos reis brasileiros. Próximo do povo, vizinho dos grandes ideais", soleniza Costa e Silva, o embaixador que tem também colado ao nome os epítetos de poeta, romancista, historiador, membro da Academia Brasileira de Letras.
Contra o colonialismo
O Rio de Janeiro atraía-o. Gostava do mar, dos morros. Do clima tropical. Alguns relatos apontam que na corte portuguesa já circulavam versões de que seria a cidade maravilhosa. Depois de atracar em Salvador, D. João VI ficou apenas um mês na Bahia. Com os nove filhos, instala a corte no Rio. As opções da família espelham as divisões de personalidade do monarca. E repercutem-se no desenvolvimento da história de Portugal: um dos filhos, D. Pedro, tornar-se imperador do Brasil, o outro, D. Miguel, rei de Portugal.
Na pousada de Paraty, onde recebeu o P2 em mangas de camisa - "a simplicidade é uma marca da família real do Brasil" -, o descendente fala do "grande arquitecto". E deixa perpassar o orgulho na linhagem. "A vinda de D. João VI para o Brasil é o único caso do mundo de um rei instalado num colónia. Ele instalou aqui a corte." D. João de Orleans e Bragança é bisneto de D. Pedro II, que era neto de D. João VI, para escapar ao termo que a genealogia impõe como hexaneto. "D. João VI não só foi o fundador deste imenso país continente, como teve visão de futuro, recusou a ideia de colonialismo, de nação de segunda."
"Marcas, hoje em dia? São imensas", interrompe Alberto Costa e Silva. "Se D. João VI não tivesse vindo para o Brasil, o país era outro, os brasileiros outros povo e, quem sabe, até a língua seria diferente." A contundência da afirmação vai às raízes na arquitectura, na arte. Nos órgãos do Estado. "Foi ele quem criou tudo, Casa da Moeda Régia, tribunais, escolas." O primeiro sinal desse progressismo assinalado pelo comissário das comemorações foi a implantação da imprensa. "Já viu isso, um rei a querer uma imprensa livre?!" O segundo, a criação das escolas de belas-artes, de medicina, de academias militares. É neste património cultivado que se fundamenta a afirmação de que o rei foi "semeando as bases para a independência". E há uma tirada célebre dele para o filho, D. Pedro IV de Portugal e I do Brasil, agora com sabor brasileiro, citada pelo embaixador: "Pedro, bota já essa coroa na tua cabeça não vá algum aventureiro deitar-lhe a mão."
Não foi preciso, D. Pedro proclamou a independência, "graças ao trabalho do pai". É um extracto desse percurso, do fruto desses 13 anos, que o Brasil vai homenagear.
O programa das comemorações espelha, comenta Alberto Costa e Silva, a alma multifacetada de "um grande rei". Um "imenso homem". São pequenas elegias em forma de teatro, ópera, poesia, E com tonalidades de samba, claro está. Para isso, elegeu-se o Rio de Janeiro e as páginas de mais de vinte livros como palcos.
Pedaços dele
O director da comissão do bicentenário sintetiza o espírito e a forma: "Vamos encher as ruas de pedaços dele e publicar duas dezenas de livros para reavivar esse facto marcante da história do Brasil e do mundo."
Para folhear os 13 anos que a corte portuguesa esteve no Rio, a prefeitura da cidade vai imprimir três milhões de exemplares de uma revista.
Em Março, foi lançado um concurso de redacção e de desenho para os estudantes das escolas públicas do município. Algures em 2008, a vida do monarca pode ser lida e revisitada em banda desenhada. Em Março que vem, a igreja onde D João VI foi coroado rei, a Sé do Rio de Janeiro, é reaberta. A catedral Nossa Senhora do Carmo foi a única igreja da América que serviu de palco para a sagração de um rei e a coroação de dois imperadores, D. Pedro I e D. Pedro II, nota Costa e Silva: "Foi um restauro muito importante, é das igrejas mais emblemáticas da América Latina." No Carnaval, hão-de ver-se motivos alusivos à passagem da família real pelo Brasil. "Era uma homem de tal forma completo, que congregava o gosto pela ópera com uma admiração profunda pelas manifestações artísticas mais prosaicas da então colónia brasileira."
Em Maio de 2008, vai ser inaugurada a exposição Nicolas-Antoine Taunay no Brasil: uma Leitura nos Trópicos, com 60 telas, pintadas entre 1816 a 1821, período em que o artista fez parte de uma missão francesa. Em Julho será lançado um filme sobre D. João VI e o Rio de Janeiro, na abertura da mostra sobre o arquitecto Grandjean de Montigny, também parte integrante da missão francesa, no Museu Nacional de Belas-Artes.
Previsto para Outubro, um grande espectáculo teatral irá pôr em cena os principais episódios do período joanino. Enfim, um "passeio" pelos mapas orientadores do "criador da nação brasileira", metaforiza o comissário das comemorações. E uma tentativa de justiça histórica: "Vamos mostrar, caso algum incauto ainda não tenho percebido, que a decisão de instalar a corte do Brasil foi uma estratégia deliberada, não uma fuga apavorada diante do ultimato de Napoleão."