“A minha literatura é um discurso sobre o país”
Ao fim de sete anos sem publicar ficção, Baptista-Bastos regressa com o No Interior da Tua Essência (Asa), que mantém o essencial da temática que alimenta a obra do escritor: Lisboa, o amor, a política, são os vértices sempre presentes no triângulo literário de Baptista-Bastos
Sem paninhos quentes ou rodriguinhos de palavreado para evitar ir direito ao assunto. Dizendo o que acha que deve dizer, mal ou bem, elogioso ou mortífero na farpa, Baptista-Bastos demonstra nesta entrevista que só se sente bem a viver em voz alta, demarcando os territórios do afecto de todos os outros onde não há espaço para condescendências. Sete anos depois de ter publicado o último livro, o escritor regressa com a obra "No Interior da Tua Ausência", uma evocação memorialista da Lisboa dos bairros e castiça que tende a desaparecer, mas sobretudo uma incursão melancólica pelo passado que nos persegue, pela vida que se vai deixando para trás, pelos amores que vão escrevendo a geografia íntima dos afectos. Baptista-Bastos acerta também as contas com a sua geração, aquela que não deveria ter calado tanta coisa e que manifestamente não tinha o exercício do poder inscrito nas suas prioridades. Uma geração que perdeu no pós-25 de Abril e que não se adaptou aos tempos da normalidade (e da melancolia) democrática.
A que Baptista-Bastos corresponde este livro?
Corresponde ao mesmo Baptista-Bastos que escreveu o "Secreto Adeus". Este livro levou-me mais a reflectir sobre a minha própria vida, sobre aquilo que fiz de errado, as injustiças que cometi.
Também as de que foi alvo?
Eu não estou magoado com as injustiças que me fizeram, as omissões ao meu nome.
Tem um discurso mais autopunitivo no livro.
É um bocado isso. mais uma flagelação à minha geração. A minha geração investiu muito na política, na transformação da sociedade portuguesa, pôs esta gente no poder — esta que lá está, a outra anterior e a anterior da anterior — e eles traíram-nos. Eles próprios traíram as convicções e os ideais da juventude. Quase todos nós traímos, é terrível isto.
Talvez o exercício do poder não fizesse parte dos planos dessa sua geração, como o Manuel Vásquez Montalbán costuma dizer sobre a sua própria geração, traída pelo pragmatismo do PSOE.
Exactamente. Há aquela história do John Steinbeck, filmada pelo Elia Kazan em "Viva Zapata", sobre o homem que se vê tocado pelo poder e se confronta com o não saber gerir esse poder e estar quase a trair as suas próprias ideias. É um bocado o caso do Lula, no Brasil, neste momento, que já está a recuar em relação àquilo que aberta e emocionalmente prometeu. Mas há uma coisa: penso que errámos muitas vezes, mas a minha geração tinha paixão. Fizemos as coisas com uma paixão romântica, éramos neo-românticos; agora isso tudo perdeu-se e a vida portuguesa não tem paixão. Vejamos uma coisa: em termos políticos, a última paixão que houve foi a ascensão do dr. Cavaco Silva que determinou na sociedade portuguesa ondas de contestação e ondas de aceitação e admiração. Essa situação conflitual é um barómetro da paixão. As paixões que hoje existem são as do futebol, extremamente tristes. A agressividade física é a manifestação de uma paixão triste, não é jubilosa. A minha geração perdeu-se e ganhou neste júbilo. Este livro reflecte isso, é o que eu penso e é o que quis escrever.
Mas isso que está a dizer, em termos políticos, não tem mais a ver com a chamada "melancolia democrática" que vivemos, que é uma característica, pelo menos a melancolia, muito forte do principal personagem do seu livro?
Mas a culpa é nossa. A minha geração não quis conhecer esse território da melancolia democrática. Quis pôr outros no poder, afastados daquilo que era o nosso círculo íntimo. Há dias assisti a uma entrevista do sr. dr. Nuno Brederode Santos e eu penso que é uma coisa deplorável, quando ele diz que não subscrevia abaixos-assinados. Isso é uma terrível demissão. Deixe-me contar-lhe uma história: há tempos passou na televisão um documentário terrível sobre 180 mulheres que tinham sido despedidas da indústria têxtil e o operador passava a câmara só pelas caras das mulheres, de todas as idades, e aquilo parecia um filme do Eisenstein. As caras das mulheres, o silêncio, o choro. Todas elas choravam. Fiquei profundamente emocionado. Aliás, fico sempre muito emocionado com os desempregos, os miúdos com fome, as guerras. Agarrei no telefone e falei para um, dois, três, intelectuais ditos da resistência e disse: "Eh, pá, vamos fazer um abaixo-assinado, tem o valor que tiver, mas é uma atitude para com aquelas mulheres, para saberem que há meia dúzia de pessoas que vivem em voz alta e estão a dar-lhes um sinal de solidariedade." Todos eles, não digo quem, me disseram que isso já tinha passado de moda. As pessoas perderam a seriedade e o sentido da honra nas mais pequenas coisas.
Há um sonambulismo latente na vida pública?
Essa palavra sonambulismo vou rapiocá-la, porque acho uma palavra admirável. Há um sonambulismo de ordem moral. Esta ideia da amnésia histórica começou nos anos 80 e assumiu nessa altura uma dimensão quase doutrinal. É nos EUA, com o sr. Reagan, na Inglaterra com a sra.Thatcher e aqui com o dr. Cavaco.
Mas a esquerda da sua geração não soube bater-se contra isso. Há quem diga, ironicamente, que a esquerda elegeu o engenheiro Guterres.
A esquerda elege o engenheiro Guterres, porque votou contra Cavaco. Eu votei nele em 1995, mas, já escrevi "mea culpa" e digo nunca, nunca, nunca mais. Nessa altura já não podia com o dr. Cavaco, que tem essa inépcia própria de quem não sabe lidar com as pessoas. Ainda hoje ele não sabe. No outro dia vi aquela entrevista que ele deu na RTP à Judite de Sousa, que eu considero a melhor entrevistadora da televisão, e não diz rigorosamente nada. Isso é o drama dele e o nosso drama.
Mas estava a falar da questão da teoria da amnésia histórica.
Começa nos anos 80 associada ao culto da juventude pela juventude, que é um culto criptofascista e é um apagamento da memória. Não se pode viver sem memória.
O seu livro é também um exercício contra o esquecimento?
Já no "Secreto Adeus" eu punha pessoas vivas e algumas mortas. Aí eu falava do Abelaira, do Redol, no Virgílio Ferreira. Todos os meus livros têm referências a pessoas que eu considero que fazem parte da fisionomia da pátria. E há uma outra coisa: quando entreguei este original do "Interior da Tua Ausência", descobri que todas as personagens dos meus livros vão tendo a minha idade. A cosmovisão modifica-se, mas o princípio e o conceito não se modificam nunca, porque vai ficando um sotaque, um tique daquilo que foram. A minha literatura é sempre um discurso sobre o país.
Que passado é que anda atrás de si, tal como diz o personagem do livro, que fala sobre um passado que anda atrás de nós?
Eu tenho saudades do heroísmo impossível. Não tenho nada um saudosismo de ser novo; tenho antes saudades — que é bom e que quer dizer que se tem lastro e história — das velhas lutas. O que me falta, nesta idade, é a capacidade de transmitir esse prazer das lutas às gerações mais novas. Gostava que a geração imediata agarrasse nas nossas velhas flâmulas, nas nossas velhas bandeiras e seguisse o nosso caminho. Devo dizer-lhe uma coisa: eu vou sempre atrás das bandeiras vermelhas e como os velhos cavalos de guerra vou sempre atrás dos tambores. Era isso que desejaria, que as gerações que aí vêm fossem sempre atrás dos tambores, fossem sempre atrás de bandeiras. No meu caso, atrás de bandeiras vermelhas. Sou um homem sem partido, sou um homem assumidamente de esquerda, que é muito crítico em relação às pessoas de esquerda. A esquerda não tem respostas para esta ofensiva de direita, para a globalização.
Mas onde está hoje a sua esquerda no mundo das esquerdas?
Eu sou um homem de formação marxista. No livro diz-se uma frase terrível que tem sido muito citada: "Andámos a rezar a Marx sem ler o Marx." Se calhar, eu também andei um bocado nisso. se calhar, também há em mim uma fé irracional nas possibilidades que eu julgava infinitas na esquerda. Mas que esquerda é esta? Com um PCP a esvaziar-se de conteúdo cada vez mais, com um PS que não existe como ideia de socialismo, com um Bloco de Esquerda que me é muito simpático, porque recupera e reabilita alguns dos meus gritos, algumas das minhas imprecações e indignações. Evidentemente que não estou só perplexo, estou talvez assustado.
Acha que há um recuo histórico da esquerda face ao poder?
Eu tenho medo em falar de recuo histórico, porque continuo a acreditar que a história caminha no sentido da libertação do homem. E que estamos apenas perante um patinar. Agora a esquerda não sabe enfrentar este fenómeno irreversível e inelutável da globalização, em relação à qual poderia fazer uma frente cultural. A minha geração foi quase que instruída para o ódio. Há uma cultura no PCP anti-PS e no PS anti-PCP, que não olha o outro como um adversário, discutível ou não, temível ou não, mas como um inimigo. Há um bloqueio à modernização ideológica. O recurso a alguns teóricos como o Walter Benjamin e o Luckacs seria muito útil, mas esse debate cultural e político não existe. Os intelectuais demitiram-se da sua condição de interventores, contrariando Platão, quando defendia a intervenção dos intelectuais e artistas na sociedade.
No livro há um ajuste de contas com o seu passado político enquanto militante do PCP?
Penso que não. É mais uma crítica em relação a tudo o que calámos e não devíamos ter calado. Mesmo antes do 25 de Abril calámos muita coisa. Agora, repare uma coisa, o PCP foi hegemonicamente cultural durante 40 anos. Era tudo comunista, havia apenas dois ou três que o não eram. Eu recordo-me de um dia o Pedro Coelho, dirigente do PS e meu amigo, me dizer que naquela direcção do PS da altura em que ele me disse isto ser tudo comunista menos ele. Foram todos. o Zenha, o Mário Soares. todos passaram por lá. Porque o PCP era uma organização extremamente fascinante que queria alterar as coisas e mudar o mundo. Isso é um património que ninguém pode tirar ao PCP, hoje vítima de uma profundíssima falta de respeito intelectual por parte de alguns sectores. Eu critico com muita violência o PCP, mas é preciso ter muito respeito por essa gente desses anos muito difíceis.
Mas o que é que a sua geração calou, afinal?
O caso da Hungria, da Checoslováquia. Na altura, em 1968, eu estive de acordo com a invasão da Checoslováquia. Não tínhamos informação nenhuma em Portugal. Repare que a nossa guerra não era a de Angola, a guerra colonial, a nossa guerra era a do Vietname. Discutíamos nos cafés os avanços do vietcong, a estratégia dos americanos. Isso é que não podemos nunca perdoar ao fascismo. Se fomos culpados de muitas coisas, também fomos vítimas de outras. Não estou a desculpar nada à minha geração ou a mim próprio. Tenho um grande orgulho no meu percurso moral, intelectual, político.
Como é que vê hoje a literatura portuguesa?
Os escritores portugueses escrevem muito mal na maioria dos casos. Não tenho problema nenhum em dizer isto. Escreve-se muito e mal. Os escritores portugueses só estão interessados em ser traduzidos, sobretudo em Espanha, ainda não percebi lá muito bem porquê. e em ganhar prémios da APE, o que acho quase uma indignidade de ordem moral. Vão todos ali a Tróia, fazem uns discursos, o Presidente da República diz umas coisas e ficam todos contentes. Eu nunca vendi fruta bichada, não me vejo em nada disso.
Acha que isso subverte a relação dos escritores com a essência da literatura?
Por isso é que as pessoas torcem o nariz ao que se escreve hoje. As pessoas estão a escrever sobre a sua vidinha e não sobre aquilo que nos diz respeito. A literatura portuguesa hoje não nos dá conta do que se passa no país. Devo dizer que não gosto muito do António Lobo Antunes como escritor, mas devo reconhecer que ele tem feito um discurso sobre alguma realidade portuguesa que é muito significativo. Eu gosto mais do irmão, do João Lobo Antunes, e tenho oferecido muito o livro dele "Memória de Nova Iorque e Outros Ensaios", que considero uma obra notável, porque está ali ficção e onde há ficção há uma proposta de reflexão sobre o mundo e sobre a sociedade.