"A fotografia já não é a imagem do autêntico"
O prémio Hasselblad 2003, atribuído pela fundação sueca com o mesmo nome, fez subir o preço das imagens do fotógrafo maliano Malick Sidibé (n. 1936) nas galerias ocidentais, e deu visibilidade à sua obra. Aos 68 anos, Sidibé valoriza, contudo, outras consequências da distinção, como a possibilidade de distribuir "vinte motores de rega" e outras prendas pelas pessoas que estima.
PÚBLICO – A tradição africana está praticamente ausente das suas fotografias. Porque optou por retratar apenas a realidade pós-colonial?
Malick Sidibé - Porque a fotografia só chegou ao Mali [antigo Sudão francês] com o colonialismo. Comecei a fotografar a partir de 1956, 57. Foram os colonizadores que nos levaram a fotografia e foi, aliás, com um deles que aprendi a fotografar...
... com Gérard Guillat, que o convidou para decorar o estúdio Photo Service, onde depois lhe ofereceu emprego. Se não tivesse ido para aquele estúdio, que tipo de trabalho acha que estaria a fazer agora?
Efectivamente, foi por acaso que entrei no mundo da fotografia. Aquele fotógrafo precisava de decorar o estúdio, foi à escola perguntar por alguém que fosse capaz de o fazer, e o director indicou-me. Quando o meu trabalho acabou, Guillat empregou-me. Se não tivesse recebido o convite, se calhar hoje era pintor. Também gostava. Mas a máquina fotográfica é mais rápida do que o pincel.
Faz, sobretudo, fotografia de estúdio. Prefere encenar a realidade?
Bem, as pessoas gostam da fotografia da sua imagem. Sempre gostaram de se ver, fosse nos espelhos, fosse na água. A fotografia foi uma oportunidade de as pessoas verem como realmente eram. E, na altura, os poucos que iam ao Senegal ou à Gâmbia, países que estavam mais desenvolvidos do que o Mali, o último a ser colonizado, traziam espelhos onde se olhavam, mesmo nos locais públicos, no meio da multidão. Mesmo que não precisassem de se pentear, faziam-no, endireitavam o colarinho...
Retratava, então, os sonhos dos clientes.
Sim, e por isso mesmo é que eles gostavam de ser fotografados com tudo o que possuíam: colares, relógios... Todos queriam guardar uma recordação. As mulheres, por exemplo, queriam muito fotografar as crianças. Com a colonização, houve uma mudança. Mais poder e mais dinheiro. Se uma pessoa fosse tirar uma fotografia com um relógio e se a manga o tapasse, essa pessoa fazia questão de a puxar para trás para mostrar que tinha relógio. Também havia os rádios. O mesmo se passava com o tabaco. Tinham que pôr o cigarro na boca, porque essa era uma atitude colonial. Mesmo que não fumassem. Levavam de tudo. Os retratos eram para enviar aos amigos ou camaradas, a quem mostravam que também tinham mudado.
Hoje, as fronteiras da fotografia são muito difusas, esbatem-se perante novas linguagens visuais disponibilizadas pela evolução tecnológica. Visto do hemisfério norte, o seu trabalho parece um regresso aos primórdios da fotografia, cheio de pureza e até ingenuidade.
A fotografia já não é a imagem do autêntico. As ideias agora são outras e eu temo isso. Hoje em dia, os jovens já não trabalham como nós, procuram representar os ideais ocidentais. Como é que quer representar o pé de uma pessoa sem mostrar a cabeça? Acredito que haverá sempre pessoas a fazer fotografias da maneira como eu faço, porque haverá sempre pessoas a querer retratos. O meu trabalho não mudou muito, porque os homens ainda são iguais. Mas tenho menos clientes. Antes, as pessoas não tinham apartamentos com frigoríficos, mobílias. Agora sim. E como não podem levar o frigorífico ao estúdio, sou eu que lá vou, para tirar fotografias das pessoas a abri-lo. Mudei de sítio. Mas o trabalho é o mesmo.
Então, se voltar a expor em Portugal, veremos o mesmo tipo de trabalho?
Sim, se calhar. Possivelmente serão retratos, mas há coisas que mudam. As roupas, por exemplo. Em 1968, estavam na moda as roupas coloniais. Agora comecei a experimentar tirar fotografias de costas. Acho que se tiram demasiadas fotografias de frente. As mulheres interessam-se também pela parte de trás do corpo. É tempo de os homens também se virarem de costas. E porque não também de perfil? Com estes três ângulos, a pessoa está toda retratada
O prémio Hasselblad mudou a sua maneira de trabalhar?
Foi um reconhecimento por todos estes anos de trabalho. Provocou uma mudança, mas mais a nível social do que artístico. Com o prémio, pude ser útil às pessoas que me rodeiam, que vêm ter comigo para pedir coisas. E eu dou, porque, para mim, dar é um prazer. Às pessoas do meu país, às que estão à minha volta, aos meus vizinhos. A prova é que dos 34 milhões [em francos do Mali, o que equivale a cerca de 50 mil euros] só resta um milhão. Dei um milhão a cada um dos meus seis filhos mais velhos. As pessoas precisam de motores de rega e de serras metálicas. Já paguei mais de 20 motores de rega. Ajudo, porque ainda me vejo como habitante de um meio rural. Também comprei um camião de transporte de mercadorias para o meu irmão, que vive na selva. Ainda não comprei um carro para mim, porque, se o fizer, as pessoas vão pensar que ainda tenho muito dinheiro (risos). A nível profissional, acho que o prémio não abriu muitas portas. É verdade que, nas galerias, por exemplo, as minhas fotografias aumentaram de preço, mas continuo no meu canto. Ainda estou sentado, ainda estou no pó. A medalha está bem! E a máquina fotográfica de cinco milhões também.
Fotografia de Malick Sidibé
COIMBRA Centro de Artes Visuais.
TeL. 239 826 178. De 3.ª a dom., das 10h às
19h. Até 23 de Maio. Entrada livre.