A magia de ser magia
Num mercado que investiu seriamente no espectáculo gráfico e imediato como forma de vender um jogo, tantas vezes como forma de esconder a superficialidade da obra, existe quem reme contra a corrente e, apesar de aprimorar o grafismo, explore até tão longe quanto possível a jogabilidade, uma ideia que não é distante da de jogos de mesa tão velhos como "Monopoly" ou os primeiros exemplos de "Advanced Dungeons & Dragons". É isso que os dois exemplos abaixo mostram.
Feargus Urquhart e a equipa Bioware da Black Isle Studios voltam a surpreender tudo e todos, com a proposta de um jogo que consegue bater "Fallout 2", correndo em cima de uma máquina gráfica com que divide muitas semelhanças. "Baldur's Gate" assume-se como o RPG de eleição dentre os clássicos por ora disponíveis no mercado.O facto de nos devolver a um ambiente mais típico dos RPG é ao mesmo tempo um trunfo e um risco. De que a equipa soube sair-se extremamente bem (este jogo provoca uma exagerada adjectivação à medida que se lhe descobrem os meandros) conseguindo uma obra refrescante, que corta com algumas das menos felizes experiência anteriores, ampliando graças a uma interface bem definida o leque de potenciais jogadores de um género que, nos seus primórdios e matriz, parecia condenado a atingir somente as atenções de um séquito de apaixonados de "Advanced Dungeons & Dragons" (AD&D) transferindo-se para o mundo dos computadores.De facto, "Baldur's Gate" é um verdadeiro AD&D centrado no mágico espaço de Forgotten Realms tão querido dos jogadores da versão original. Uma cidade portuária e grande centro de actividade da Sword Coast, Baldur's Gate sofre, nos últimos tempos, um dos piores momentos da sua história: as reservas de ferro, a mais preciosa riqueza da terra, esgotam-se misteriosamente, enquanto os mineiros são assaltados e em muitos casos assassinados. E o ferro que se recupera surge com manchas, que lhe retiram o valor.As gentes culpam a vizinha terra de Amn, e fala-se mesmo numa provável invasão em curso. A guerra parece prestes a estalar e só uma pessoa pode juntar um grupo de aventureiros para procurar todas as respostas.É o pano de fundo ideal para uma boa aventura que, como indica David "Zeb" Cook, "é um imenso e variado RPG que não nasceu do nada, baseando-se na segunda edição de regras de AD&D, as mais velhas e populares regras usadas no jogo de papel e caneta" Por isso mesmo, salienta, "'Baldur's Gate' não é um jogo qualquer, é o avô de todos os outros". Assim dito, e sobretudo pelo autor das próprias regras que gerem a versão original, Baldur's Gate ganha aura nova que é bom ter em conta ao olhar a embalagem do jogo.David Cook adianta que quando escreveu as regras, em 1989, se tornara necessário pensar na possível adopção dos jogos de AD&D para o computador, porque o conjunto inicial nunca abordara essa possibilidade. Muito mudou numa década, e agora David Cook está "do outro lado, a fazer jogos de computador". E diz-se surpreendido com o que foi possível fazer em Baldur's Gate: "Nenhum outro jogo até agora conseguiu reproduzir tão fielmente a ambiência de um verdadeiro AD&D, e isso é um feito muito especial! É um sinal da riqueza e profundidade do sistema de regras dos jogos de AD&D que até os modernos computadores tenham dificuldade em transmitir toda a flexibilidade permitida num jogo de AD&D, e um testemunho da qualidade de Baldur's Gate que ele contenha tanta dessa riqueza".O jogo, editado pela Interplay, lança o jogador para uma demanda que o leva a descobrir amigos e inimigos, lugares misteriosos e terríveis monstros , numa história de intriga, morte, traição e, com sorte, vitória. Antes, porém, em bom estilo RPG, o jogador deve escolher a personagem que quer vestir, de um amplo leque capaz de satisfazer todas as tendências. Humanos, duendes, anões, elfos, magos, guerreiros, bardos, ladrões, toda a panóplia de figuras dos AD&D surgem em Baldur's Gate, com uma representação visual distinta e que o jogador pode customizar em alguns aspectos, para criar o seu herói ou heroína. Depois há que passar pela fase inicial do jogo, que funciona como um tutorial da acção, e durante a qual o jogador reúne os primeiros companheiros para a longa jornada que o levará por mais de 10 mil quadros de aventuras.Uma vez fora das muralhas o jogo começa a revelar a sua vocação para os longos textos narrativos, pedindo ao jogador a paciência para os ler, como faria com qualquer livro de aventuras fantásticas. É um labor de paciência que retira ao título algum público, sobretudo aquele que prefere umas boas espadeiradas a uma elaborada construção de enredo, afinal uma das características chave de "Baldur's Gate". Os diálogos das personagens, com opções de resposta ao estilo de "Fallout 2" (ou dos RPG em geral) fazem os de "Fallout 2" parecer curtos. Mas essa leitura introduz o jogador no ambiente mágico de Faerûn, o mundo onde se inscreve Forgotten Realms, descrito com mais minúcia no manual que acompanha os cinco CD-ROM de jogo, centena e meia de páginas de leitura obrigatória.Com uma perspectiva isométrica que nos deixa espreitar sobre um mundo reproduzido a 65 mil cores, "Baldur's Gate" usa um sistema gráfico que permite a incorporação de efeitos luminosos reproduzindo a passagem das horas, desde os tons quentes do sol matinal até à escuridão das noites de estrelas. Os exteriores são maravilhosos, da colorida vegetação aos rios, rochedos e outros elementos, e os interiores são dos mais reais apreciados num RPG. É a soma de todos esses pormenores, aliado a uma aventura que se vai revelando mais empolgante em cada novo passo dado, e que oferece os habituais e variados percursos laterais à história principal, que torna "Baldur's Gate" numa proposta obrigatória para este Inverno. E extraordinariamente longa.