A criminalização do IRA
Podem seis mulheres mudar um país? A campanha da família McCartney culminou na denúncia policial do Exército Republicano Irlandês (IRA) como a "maior máfia da Europa". Como se chegou aqui?
1. Os anos 1968-69 são decisivos na Irlanda do Norte. Os tumultos de Derby são uma sublevação contra a segregação e pelos direitos cívicos da população católica. Londres faz intervir o exército. O chefe do IRA é um marxista, Cathal Goulding, que defende que num Ulster de maioria protestante não se pode vencer os ingleses pelas armas. Opta pela campanha dos direitos cívicos e pela entrada nas instituições, em Belfast e Londres, através das eleições, quebrando um velho tabu republicano. A sua estratégia tem o apoio da maioria do movimento. Mas tinha um ponto fraco. Queria, a prazo, substituir a guerra sectária (de religião) pela luta de classes e reunificar a Irlanda através de revoluções socialistas no Sul e no Norte, o que lhe valeu a hostilidade de Dublin e da Igreja Católica. Em 1970, com a repressão britânica e os ataques das milícias protestantes, um grande número de "comandantes", incentivados pelos padres, afastam Goulding e apelam às armas. Surgem dois IRA, o "oficial", de Goulding, e o "provisório" (provos). Este rapidamente se impõe. O terrorismo não foi uma fatalidade, foi uma escolha. Os provos depressa ocupam o terreno. A força "católica" maioritária são os reformistas do Partido Social Democrata e Trabalhista (SDLP), mas é o IRA quem comanda a agenda política.
Entre 1969 e 1998, o conflito norte-irlandês provocou 3601 mortos. Foi o IRA quem mais matou: 2001 pessoas, entre elas 645 protestantes, 597 militares ou polícias britânicos e... 381 católicos (há tempos pediu perdão).
2. Depois do processo de paz da Sexta-feira Santa (Abril de 1998) e das eleições de Junho, os líderes do Sinn Féin (e do IRA), Gerry Adams e Martin McGuinness, entram no governo autónomo presidido pelo "protestante" David Trimble. Mas o processo depressa derrapa: os "protestantes" querem manter o statu quo de província britânica e o IRA resiste a desarmar o seu "exército". Em 20 de Dezembro passado, o IRA assaltou o Northern Bank de Belfast, roubando 26 milhões de libras, o que foi interpretado como um começo de ruptura do processo de paz. Mas o factor decisivo é a campanha das cinco irmãs e da companheira de Robert McCartney, assassinado por militantes do IRA a 30 de Janeiro (ver PÚBLICA de 13 de Março). Elas são nacionalistas, votam Sinn Féin, mas exigem a verdade contra a omertá e o medo. O bairro encheu-se de graffitis: "Fora a escumalha do IRA". Num revelador desnorte, a direcção do IRA propôs às McCartney matar os assassinos de Robert para elas se calarem. Recusaram. Foram aos EUA fazer campanha. Londres, Dublin e Washington pedem o fim "dos crimes do IRA". Bush recebe as McCartney e o IRA é proibido de recolher fundos na América.
Esta história ilumina a realidade: a pretexto de proteger os guetos católicos, o IRA tornou-os reféns do terror. Não mata apenas dissidentes e informadores. Nos casos benignos, "castiga" com tiros nos joelhos ou nas mãos. Nos outros com a morte: assassinou pelo menos 20 vezes desde o cessar-fogo. Por exemplo, o jovem Andy Kearney foi esfaqueado em Belfast um dia depois de ter batido num cacique do IRA: imperdoável falta de "respeito". Como a Máfia na Sicília, o que os "comandantes" mais temem é perder o "respeito" dos súbditos.
Não podendo matar as irmãs McCartney, o IRA tenta agora assassiná-las moralmente dentro da comunidade.
3. Esta semana, o IRA foi acusado de contrabando de tabaco e gasóleo "em larga escala". De extorsão de fundos às empresas. De participar em assaltos a bancos e hipermercados. De "lavar" dinheiro. De piratear software, CDs, vídeos e roupa de marca. De ter íntimas parcerias com o meio do crime na Inglaterra. Não é novidade: é apenas o alargamento das práticas de banditismo com que se financiava antes de 1988. "De acordo com a Garda [polícia de Dublin], nos dez anos que se seguiram ao cessar-fogo, o IRA tornou-se na maior organização do crime organizado na história deste Estado, comparável à Máfia nos Estados Unidos, e tornou-se uma ameaça às instituições da democracia." A declaração consta de um relatório do Criminal Assets Bureau da República da Irlanda.
Uma fonte policial de Belfast diz ao magazine The Village, de Dublin: "O IRA pode tornar-se na organização criminosa mais profissional do mundo." (As milícias protestantes são um caso simples: transformaram-se em bandos locais de extorsão de fundos e tráfico de droga.)
4. No plano político, isto é uma vitória dos "lealistas protestantes", que sempre juraram não confiar no IRA/Sinn Féin. Até agora, a direcção Adams-McGuinness soube gerir a ambiguidade do IRA: estar dentro e fora do sistema, ser partido parlamentar e exército clandestino. Adams nega que o Sinn Féin seja o braço político do IRA: "São organizações separadas." Toda a Irlanda sabe que ambos são membros do comando militar do IRA. Consta, sim, que poderão estar em minoria perante "comandantes" opostos ao processo de paz e que teriam ordenado o assalto ao Northern Bank (Guardian, 16 de Março). Em caso de cisão, não seria surpresa uma guerra de gangs.
5. O IRA mantém 90 por cento do seu arsenal e continua a treinar-se, dizem todas as polícias irlandesas. Continua a recolher informações sobre políticos, polícias, empresários, jornalistas e os seus próprios militantes, inclusive por escuta telefónica. Um "republicano" justifica-o, no Village: "O IRA continua a ser um exército. (...) A informação é vital para um exército, mesmo fora dos períodos de hostilidades. O IRA tem de estar pronto para todas as eventualidades."Um veterano do IRA, John Kelly, 69 anos, aponta o dedo aos "senhores da guerra" que controlam os tráficos e "fizeram o que Thatcher não conseguiu - criminalizar o movimento republicano". Não se trata de "maçãs podres", a responsabilidade vai até Adams e McGuinness, denuncia. Adams diz aliás coisas preocupantes: "Sabemos que violar a lei é crime. Mas recusamos criminalizar os que violam a lei para perseguir objectivos políticos legítimos."
Durante anos, Londres, Dublin e Washington fecharam os olhos ao banditismo do IRA: a prioridade era o desarmamento. O caso McCartney muda tudo.
6. Voltando ao princípio: contra as ideias feitas, o terrorismo não é o efeito "natural" dos movimentos de libertação perante a opressão. Nasce de uma minoria, de uma ideologia ou de uma cultura de violência. É uma força que os parasita, neles se entranha e corrompe como um cancro. Eficácia? Em relação a 1968-69, os provos fizeram perder mais de 30 anos aos "católicos" norte-irlandeses. Uma sondagem (Belfast Telegraph, 13 de Março) revela que, para 60 por cento dos "católicos nacionalistas", o IRA deve desaparecer. A eles cabe a palavra final.