O revolucionário da música portuguesa
Angústia e esperança, portuguesismo e europeísmo, mas sobretudo uma profunda e comovente humanidade é o que mostra a música de Fernando Lopes-Graça. Foi há 100 anos que nasceu aquele que podemos considerar um dos grandes músicos europeus do século XX
Fernando Lopes-Graça provinha de uma família em que não existia nenhum antecedente de músicos profissionais. Chegou à música quase por acaso, mas esta acabou por se tornar no centro da sua vida. Em 1923, deixou Tomar, a sua cidade natal, e chegou a Lisboa para estudar no Conservatório Nacional. Não podia então adivinhar que, poucos anos depois, se converteria no "músico da oposição". A ditadura de 1926 provocou nele uma aguda consciência política e a íntima necessidade de combater a nova situação com todos os meios ao seu alcance. E a sua provocadora atitude modernista fez dele um artista dificilmente assimilável por um meio musical que, na altura, se caracterizava maioritariamente pelo seu conservadorismo. José Régio chamou-lhe o "revolucionário" do meio musical português.
Em inícios da década de 30, Lopes-Graça destacou-se nos meios intelectuais como crítico temerário, tanto através das suas crónicas em jornais e revistas, como das suas obras musicais. Fez parte de uma geração desejosa de democracia sobre a qual a repressão do Estado Novo actuou de forma contundente: as suas duas prisões políticas, em 1931 e 1936, são prova disso. E, porém, Lopes-Graça defendeu então com orgulho a sua independência: "A minha música, porém, é que se não sindicaliza. Continuará livre e... inconformista, para desespero de nacionalistas, sindicalistas, salazaristas e até de muitos... reviralhistas."
A oposição ao Estado Novo vedou-lhe a possibilidade de desenvolver uma carreira profissional apoiada institucionalmente.
Na órbita do PCPLopes-Graça empenhou-se de forma activa na divulgação da música da sua época através dos seus escritos e, sobretudo, através da criação da sociedade de concertos Sonata, activa entre 1942 e 1960. Uma das facetas da personalidade de Lopes-Graça que o distingue claramente dos compositores seus contemporâneos foi o seu interesse e envolvimento nos debates estéticos e ideológicos que animaram, sobretudo nas décadas de 30, 40 e 50, o meio cultural em Portugal.
Ao longo da década de 40 vai assumindo posições cada vez mais próximas do Partido Comunista Português, realizando algumas das suas composições, nomeadamente as suas célebres Canções Heróicas, para dar resposta às exigências da acção política. Ficou sempre na órbita do PCP, apesar de uma crise em meados da década de 50.
O seu percurso foi, aliás, relativamente típico do intelectual de esquerda durante o Estado Novo, embora fosse excepcional no âmbito da música. Está documentado nas suas colaborações para a Seara Nova, O Diabo, Revista de Portugal, Vértice, Ler e no suplemento de cultura do jornal O Comércio do Porto. Criou, ainda, juntamente com João José Cochofel, a Gazeta Musical, que saiu de forma regular na década de 50. Parte significativa desta colaboração, juntamente com ensaios e textos de carácter divulgativo, foi reunida na série de volumes Obras Literárias, editada pela Caminho.
Paixão pelo pianoContudo, a sua obra artística transcende os rígidos limites impostos pela militância, pela pedagogia e, inclusivamente, vai além da sua tentativa de criação, através da música, de uma identidade nacional portuguesa mediante o uso da música tradicional, numa pesquisa em que foi acompanhado pelo etnomusicólogo Michel Giacometti. Essa música tradicional foi para ele uma fonte constante de inspiração.
Apesar das dificuldades (ou até talvez por causa delas), Lopes-Graça criou um impressionante catálogo musical que reflecte de forma complexa a sua personalidade e os tempos que viveu. Angústia e esperança, portuguesismo e europeísmo, sobretudo uma profunda e comovente humanidade, atravessam as suas composições, uma boa parte das quais, paradoxalmente, está ainda por descobrir. Isto, apesar do empenhamento com que alguns intérpretes se dedicaram a difundi-la: a dimensão da imagem pública de Lopes-Graça é de facto devedora do trabalho de numerosos músicos portugueses, cuja longa lista é impossível de reproduzir aqui.
Da sua vasta obra pianística destacam-se seis sonatas, uma série de prelúdios, várias peças concertantes, álbuns e cadernos de danças, glosas, oito suites, entre outras obras. Todas elas reflectem, não apenas a sua perícia como compositor, mas também a sua paixão pelo instrumento e o seu íntimo conhecimento das possibilidades do teclado. Lopes-Graça escreveu centenas de canções, nomeadamente numerosos ciclos para voz e piano baseados em poesia de diversos autores, portugueses e não só: Camões, Pessoa, Andrade, Torga e Pessanha, entre outros muitos, dialogam, no seu catálogo, com García Lorca, Antonio Machado e Ronsard.
No capítulo da música coral, Lopes-Graça também deixou uma produção considerável, pensada tanto para os coros amadores, como para o circuito dos músicos profissionais. Exemplos disto são as dezenas de Canções regionais portuguesas, por um lado, e o monumental Requiem para as vítimas do fascismo em Portugal, por outro.
As suas obras orquestrais contam-se entre o melhor da sua obra criativa, mas Lopes-Graça também cultivou os géneros de câmara. Venceu um prémio internacional com o seu primeiro quarteto de cordas e escreveu para outras formações instrumentais, entre as quais o quinteto com piano numa das suas obras mais importantes: o Canto de amor e de morte. É toda esta música a que atesta a sua incontestável qualidade como compositor e a sua sinceridade de artista.
Morreu em 1994, com 87 anos, na sua casa na Parede, onde sempre viveu sozinho.