Coronavírus: Região de Lisboa com sete em cada dez novos casos de covid-19
Desde 9 de Maio que Lisboa e Vale do Tejo regista mais novas infecções do que o Norte. Desde esse dia, 69% dos novos casos aconteceram na região da capital. Surtos localizados, algum “relaxamento” nos locais de trabalho e o uso de transportes públicos estão entre as explicações dos peritos e autoridades.
O Norte está a ser ultrapassado por Lisboa e Vale do Tejo no número de novos casos de covid-19 diagnosticados. Desde 9 de Maio que os concelhos da região de Lisboa e Vale do Tejo (LVT) ultrapassam diariamente o Norte em número de novos casos de infecção. Dos 3065 casos registados nos últimos 15 dias em todo o país, 2126 foram registados em LVT — o que corresponde a 69,3%. Esta mudança aconteceu não só porque o número de casos a Norte estabilizou, mas também porque a taxa de crescimento de LVT não pára de subir.
Já sabíamos, pela experiência de outros países mas também de outras doenças infecciosas, que a covid-19 poderia afectar, em diferentes momentos, diferentes regiões do país. Se no início da epidemia as atenções estavam viradas para o Norte, onde no início de Março se registaram os primeiros casos de infecção em Portugal, as autoridades de saúde estão agora mais atentas à região de Lisboa e Vale do Tejo.
No dia 6 de Maio, 400 dos 480 casos do país tinham sido detectados em Lisboa e Vale do Tejo (uma taxa de crescimento de 6,41%) e 57 a Norte.
Mas é só a 9 de Maio que Lisboa e Vale do Tejo ultrapassa em definitivo o Norte nas novas infecções. Segundo os dados da Direcção-Geral da Saúde (DGS) desse dia, 73 dos 138 novos infectados confirmados foram registados na Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo, o que representa mais de metade dos casos detectados em todo o país. Destes 138, 45 foram registados no Norte.
Taxa de crescimento diária de novos infectados
“Uma explicação simples é o facto de a transmissão [o número médio de contágios causados por cada pessoa infectada, mais conhecido como R0] ter aumentado na região de Lisboa e Vale do Tejo. Sabemos que numa fase inicial a região Norte foi mais afectada e que, entretanto, a situação em Lisboa estava mais controlada. Agora, houve uma inversão: passamos a ter uma maior disseminação da doença nessa região e há alguns exemplos em Lisboa que levaram a que houvesse esse maior número de casos”, explica ao PÚBLICO Ricardo Mexia, médico de saúde pública do Departamento de Epidemiologia (DEP) do Instituto Ricardo Jorge.
A 20 de Maio, os novos casos diagnosticados na região de Lisboa e Vale do Tejo continuaram a subir de forma ligeira, ao mesmo tempo que no Norte atingiam novos mínimos. Nessa quarta-feira, reportaram-se 16 novos casos a Norte, uma taxa de crescimento de 0,10%. Só tinha sido registada uma taxa tão baixa uma vez, a 29 de Abril, quando o número de casos cresceu 0,09%. Ao mesmo tempo, em Lisboa e Vale do Tejo eram registados 198 novos casos, uma taxa de crescimento de 2,33%.
Se olharmos só para a semana de 16 a 23 de Maio vemos que, em média, os novos casos em Lisboa e Vale do Tejo cresceram 1,96% e no Norte 0,34%.
Estes números de Maio estão longe dos picos atingidos em Abril, quando chegaram a ser reportados 795 novos casos de infecção a Norte (10 de Abril) e 391 novos casos em Lisboa e Vale do Tejo (5 de Abril). No total, e de acordo com o boletim da DGS deste sábado, o Norte soma 16.664 casos de infecção e 732 mortes e Lisboa e Vale do Tejo 9292 casos e 309 mortes.
Analisando as 24 datas em que Lisboa e Vale do Tejo registou mais novos casos do que o Norte desde o início da pandemia, concluímos que 16 delas aconteceram em Maio – e as restantes em Março (seis) e Abril (dois). A 7 de Maio, por exemplo, aquela região registou 294 casos e o Norte menos 100. Desde o dia 11 de Maio e até este sábado, 23 de Maio, o número de casos registados em Lisboa e Vale do Tejo tem sido sempre superior ao registado a Norte. Neste sábado, em 271 casos, 186 foram contabilizados em LVT e 68 no Norte.
“Sabemos que a doença se transmite de pessoa para pessoa, onde passamos a ter mais desconcentração de casos também potenciamos o surgimento de um maior número de infecções. Foi assim no início e também há-de ser assim no futuro”, explica Ricardo Mexia.
Lisboa, Sintra, Amadora e Loures continuam a crescer
Dos dez concelhos que mais viram o número de casos crescer em Maio, oito são da ARS Lisboa e Vale do Tejo – os outros são Coimbra (Centro) e Braga (Norte). A lista dos concelhos com maior número de novos casos é liderada por Lisboa. Seguem-se Sintra, Loures e Amadora.
“São locais com uma densidade populacional elevada, principalmente Amadora e Loures, com pessoas que provavelmente têm tempos de deslocação relevantes. Também não sabemos até que ponto estas situações são associadas à sua actividade ocupacional, ao contexto em que se deslocam e como se deslocam para o trabalho. Pode estar relacionado com a utilização dos transportes públicos, são tudo hipóteses que podem ajudar a explicar esta mudança”, aponta Ricardo Mexia.
Lisboa, Sintra, Loures e Amadora continuam a crescer em número de casos registados diariamente. Nas últimas 48 horas, Lisboa registou 70 novos casos, Sintra 49, Loures 87 e a Amadora 40. Por outro lado, o número de casos nos concelhos mais afectados do Norte está a estabilizar. Gaia registou 22 novos casos, um caso foi contabilizado no Porto, 14 em Matosinhos, sete em Braga, oito em Gondomar e sete na Maia. Muito longe do que acontecia em Abril, no pico da pandemia em Portugal.
Casos acumulados por concelho em cada ARS
Este sábado, o aumento de casos em Lisboa e Vale do Tejo voltou a ser tema da conferência de imprensa sobre a covid-19. A ministra da Saúde, Marta Temido, afirmou que, nos últimos dias, a tendência nacional tem sido de decréscimo da incidência de doença ao nível das regiões e que essa tendência não tem sido “tão nítida” em Lisboa e Vale do Tejo, onde está a ser diagnosticado um número de novos casos, que de dia para dia se tem mantido “relativamente constante”.
Ricardo Mexia, que é presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, avança que esta mudança pode estar relacionada com os recentes surtos que têm surgido nas últimas semanas na região de Lisboa e Vale do Tejo: o recente foco num centro de distribuição da Sonae (proprietária do PÚBLICO) e outro, mais antigo, em indústrias do sector alimentar como a Avipronto — ambos ficam no eixo da Estrada Nacional 3 (Carregado-Azambuja). Mexia lembra ainda os casos detectados em hostels em Lisboa, que também terão contribuído para estes números.
Novos casos não estão ligados ao desconfinamento
Ricardo Mexia rejeita a ideia de associar o maior número de novos casos desde o início de Maio em Lisboa e Vale do Tejo ao desconfinamento (que se iniciou a 4 de Maio), uma vez que a reabertura de vários serviços não aconteceu apenas na região de Lisboa, mas sim em todo o país.
Também Marta Temido recusou ligar esta mudança às medidas de desconfinamento adoptadas e disse que a evolução da situação de Lisboa e Vale do Tejo é “específica” e pode ser explicada por algumas razões.
“Tudo leva a crer que estamos perante focos e surtos de novos casos associados a locais de trabalho, quer empreendimentos comerciais e industriais e a algumas situações de obra de construção civil”, admitiu a ministra da Saúde, precisando, depois, que tais contágios não são imputáveis ao incumprimento das regras de higiene e distanciamento social das entidades laborais mas “a algum relaxamento e descontracção [dos trabalhadores] durante as pausas para almoço, de mudas de roupa e até ao facto de utilizarem meios de transporte que, não sendo públicos, são colectivos e onde há algum alívio das cautelas que têm de ser consideradas”.
A responsável pela pasta da Saúde apontou “algumas situações a montante dos locais de trabalho” que estarão a contribuir para estes surtos, nomeadamente na Azambuja, como o facto de haver trabalhadores que não têm um vínculo permanente às entidades laborais, estando “a trabalhar ao abrigo de subempreitadas ou em regime de trabalho temporário”.
Marta Temido ligou ainda o aumento de casos a comportamentos fora do local de trabalho. “São as condições de vida que muitas vezes geram algum tipo de menor cumprimento das regras e de menor compreensão das mesmas”, referiu.
Na sexta-feira, a directora-geral da Saúde avançou com uma explicação para o aumento de casos em Lisboa e Vale do Tejo. “São casos territorialmente dispersos que têm sobretudo origem em ambientes familiares e portanto numa transmissão dentro da habitação”, explicou. “Como este padrão tem alguma associação a pessoas mais novas e, logo, mais saudáveis, a gravidade não tem sido muito maior do que foi no passado, mas a cada dia temos que olhar para os dados”, assegurou Graça Freitas.
Novos cercos sanitários? “É uma hipótese”
Perante este novo foco de atenção virado para Lisboa e Vale do Tejo, Ricardo Mexia sugere que pode ser “importante” ter abordagens diferentes do ponto de vista regional. E concretiza: criar cordões sanitários ou aplicar outras medidas restritivas ao nível local, e não nacional.
"Nas regiões autónomas, fruto da sua autonomia intrínseca, isso já aconteceu, mas aqui no continente não foi assim porque não existe o mesmo modelo do ponto de vista normativo” refere. “A única coisa que aconteceu foram os cordões sanitários muito localizados, quando houve situações preocupantes em alguns concelhos, como em Ovar. Tirando isso, não houve uma abordagem regional, mas atendendo agora a esta situação poderia ser reequacionada essa possibilidade.”
Na visão do especialista, é difícil conceber um território inteiro dentro de um cerco sanitário, ainda para mais tendo em conta também as características da região de Lisboa e Vale do Tejo, em que muitas pessoas trabalham num concelho, mas residem noutro. “No caso de Lisboa, sabemos que há uma parte muito relevante da população que se desloca até grandes distâncias para ir trabalhar, e isso seria uma complexidade adicional. Tem que haver uma avaliação objectiva do crescimento em determinadas regiões, que até pode justificar medidas específicas para essas zonas”, remata Ricardo Mexia.
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