6 de Abril

Mudei-me para casa da minha mãe há três dias. Tenho medo do vírus, disse-me ela num desespero ao telefone. Acrescentou, Não é só o vírus, sinto-me mal, não quero mais viver sozinha, o teu pai morreu há já tanto tempo, estou cansada. Fiz uma pequena mala de roupa, pus o computador na mochila, fechei as portadas da minha casa e regressei ao lugar de onde saí há quase trinta anos.

O único pedido de que me lembro de a minha mãe alguma vez nos ter feito, a mim e à minha irmã, foi o de que não a internássemos num lar, Não gostava que o meu fim fosse num sítio desses, disse-nos. De resto, dava-nos tudo o que podia sem pedir nada em troca

Fernando Rita

87 anos, músico

Com 80 anos, o coração da minha mãe, já operado por duas vezes, parece fraquejar novamente. Insisto para que ela coma, A comida enrola-se-me na garganta, responde. Emagreceu muito nos últimos tempos. Pesa 45 quilos. Está deprimida, muitos idosos queixam-se do mesmo, explicou a psiquiatra à minha irmã. Na divisão de tarefas que dizem respeito ao cuidar da minha mãe, a minha irmã ficou encarregada das idas aos médicos. Até fevereiro deste ano, a minha mãe fazia ginástica no centro de dia duas vezes por semana, tratava da casa e do jardim, ia de Cascais a Benfica de transportes públicos para ajudar a cuidar dos bisnetos, o Tomás e o Vicente. Apesar da perda de apetite, do cansaço, da tristeza, do desinteresse da vida em geral, não acredito que a minha mãe esteja deprimida.

Amílcar Ramadas

86 anos, segurança

7 de abril

Esta manhã telefonei ao Luís para lhe confessar que tenho medo. De não saber cuidar de quem sempre cuidou de mim, do trabalho que me espera e que não sei medir, de não voltar a pertencer a esta casa, de deixar de fazer o que quero, de me descobrir exageradamente egoísta, de ser uma má filha. Não podes pensar assim, disse-me ele, mas tens pela frente um trabalho hercúleo e precisas de arranjar quem te ajude a fazê-lo. Nos últimos três anos, grande parte das preocupações do Luís condensou-se em assegurar o bem-estar da mãe dele. Quase todos os meus amigos que ainda têm pais e idades próximas da minha confrontam-se com o mesmo problema – o que fazer quando os que amamos deixam de saber tomar conta de si?

Maria José Mestre

86 anos, doméstica

Quinta-feira Santa. Nunca houve Páscoa sem folares feitos pela minha mãe. A seu pedido, encomendei massa de fermento de padeiro, comprei ovos e enchidos. Estávamos as duas na cozinha, a minha mãe sovava a massa na enorme vasilha de esmalte azul, tudo parecia quase igual. De repente, dei conta do açúcar na massa do folar de carne, os ovos esquecidos num alguidar, a aguardente vertida sobre a bancada. Numa voz desconhecida, de olhos inesperadamente apagados, a minha mãe exclamou, Não sei o que estou a fazer, ajuda-me. Sentou-se numa cadeira da sala de jantar com as mãos enfarinhadas, uma boneca velha jogada para um canto. E eu incapaz de ajudá-la, pregada ao chão pela certeza de que há qualquer coisa a escangalhar-se na cabeça dela.

À noite não consigo adormecer e escrevo mentalmente, estou a perder a minha mãe, páginas e páginas onde não cabe mais nada.

Eduardo Patrício

73 anos, metalúrgico

10 de abril

O Papa Francisco rezou sozinho diante do enorme vazio da Praça de S. Pedro, Parece o fim do mundo, disse a minha mãe ao vê-lo na televisão, Que Deus tenha piedade de nós.

Tem razão, dá ideia de que desligaram o mundo. Registo os dias que passam como se não passassem. Para não os esquecer? Para gastá-los? Todos os registamos, a humanidade outra vez adolescente, a escrever diários, já não suficientemente criança para ignorar que os dias se perdem, ainda não suficientemente adulta para reconhecer que quase só se repetem.

Isabel Relógio

92 anos, doméstica

17 de abril

A senhora vai decorar estas três palavras e diz-mas quando eu lhe pedir, explica o neurologista. A minha mãe falha o teste. Não falha completamente, mas falha o bastante. No final da consulta, o médico diz à minha irmã, A sua mãe tem Alzheimer. Li tanto sobre a doença para criar a personagem da avó da Eliete e nunca imaginei que passaria por isto. Dou-me mal com a ironia.

Justina Pereira

Peixeira

22 de abril

Ontem, a minha mãe pediu para desligar o televisor quando estavam a noticiar as estatísticas dos mortos por covid, Os velhos estão todos a morrer, fecham-nos nos lares para matá-los, disse para si própria.

Ao adormecer, sonhei com o Jean-Louis Trintignant a asfixiar a Emmanuelle Riva no filme Amour e hoje passei o dia maldisposta.

Além destas notas dispersas e trapalhonas que vou escrevendo, tenho gravado em áudio e vídeo as histórias que a minha mãe sempre contou, a viagem para o Brasil aos onze anos, a fuga com o meu pai de casa dos meus avós, a ida para Luanda, as agruras e alegrias da vida rural. Depois do almoço, pedi-lhe que me dissesse alguns dos muitos provérbios que sabe. Não quis. Perante a minha insistência, riu-se matreira, O que não se faz num dia faz-se no dia de Santa Maria.

Apanhámos nêsperas no quintal. Eu fiquei a travar o escadote e o Pedro subiu. A minha mãe ajeitava as folhas da figueira que colocara no fundo do tabuleiro de verga onde eu ia colocando as nêsperas, Obrigada, filha, exclamou do nada.

Arminda Monteiro

88 anos, costureira

28 de abril

É o aniversário da minha mãe, Se alguma vez pensei chegar a esta idade, os meus pais morreram na casa dos sessenta, os velhos de antigamente eram mais novos, ainda que parecessem mais velhos. Por causa da pandemia improvisámos uma mesa no jardim, debaixo da figueira, e mantivemo-nos afastados uns dos outros. Esteve um dia primaveril, o Tomás e o Vicente fizeram pantominices na relva antes de cantarmos os parabéns à minha mãe. Judas enforcou-se numa figueira depois de ter traído Cristo, desde então a sombra da figueira é a sombra da morte, lembrou a minha mãe. E acrescentou mais baixinho, Não quero morrer.

Quando se foram todos embora, deixei-me ficar a ver no telemóvel as fotografias que tirei. Parecia um almoço de aniversário como os dos outros anos. As imagens mentem. Ou são os nossos corpos que o fazem. Repetem a mesma gramática de gestos, indiferentes ao que aconteça, e tanto me surpreendo com o exagero de estragos que apresentam quando por dentro nada mudou, como com a teimosia de se manterem iguais mesmo sendo já outros. Ainda assim, de entre todas as diferenças que procurei, as impostas pela pandemia foram as menos notórias. Vamos cumprindo as tarefas que eram da minha mãe, fazemo-lo com mais ou menos dificuldade, mais ou menos brigas, mais ou menos acusações. Cumprimo-las mal. A doença da minha mãe vai adoecendo a nossa ideia de família.

Maria Antónia Marques

81 anos, criada de servir

1 de maio

A minha mãe pediu-me que a deixasse ficar mais tempo no banho e começou a entoar uma canção da sua juventude, Cantávamos isto nas vindimas, explicou-me. Nunca a tinha visto demorar-se no banho. Muito menos cantar. Não se apercebe que hoje é feriado. Os dias são-lhe dificilmente distinguíveis.

Mais de mil mortos por covid em Portugal. A Direção-Geral de Saúde informou que cerca de 90% são idosos. Não gosto da palavra idoso. Soa-me a eufemismo de velho e ser velho não tinha de ser mau.

António Pimenta

84 anos, manobrador de gruas

27 de maio

O novo neurologista é da opinião de que a minha mãe não tem Alzheimer, Trata-se do início de uma demência, mas não é Alzheimer. Não encontra justificação para a minha mãe estar a emagrecer tanto. Propõe que consultemos um cardiologista e um médico de medicina interna, De qualquer maneira, tem uma doença muito grave, 81 anos é uma doença grave por si só, assegura.

Pergunto-me porque somos tão mais capazes de cuidar dos corpos do que das cabeças. Das cabeças e da felicidade. Não conseguimos tratar bem o que não vemos. Ou o que escolhemos não ver. Os velhos foram arredados dos palcos em que a vida moderna acontece. Como gatos vadios que deixamos de ver na rua porque adoecem discreta e secretamente nas traseiras dos prédios. Ninguém quer saber deles.

Só conseguimos consultas no privado.

Carminda Barbosa

81 anos, empregada de limpeza

8 de junho

A Bárbara telefona-me a perguntar se já sei quando estará pronto o novo romance, Não faço ideia de quando posso voltar a trabalhar nele, respondo, não tenho tempo nem resistência para me abalançar a um esforço tão grande. A Bárbara, que também tem a avó à sua responsabilidade, compreende. Às minhas inglórias tarefas domésticas que sempre me roubaram tanto tempo acrescem agora as da minha mãe, a vigilância da sua alimentação, a atenção aos sinais de doença, o registo das diferenças de memória dela, os passeios a pé no bairro, os concursos televisivos que vemos em conjunto etc., etc., etc. É como se acumulasse vários empregos. E sinto que não dou conta de nenhum.

Fernando Frederico

70 anos, pescador

20 de junho

Quando entrei na sala, a minha mãe, sentada no sofá, olhava muito atenta para a televisão, Estás a ver publicidade, mãe?, estranhei. Sim, respondeu-me imperturbável. Afinal, em vez do ecrã, parecia estar a focar, aquém ou além, um ponto qualquer onde os seus pensamentos flutuavam. Sucederam-se anúncios a uma operadora de telemóveis, a um creme de beleza, a uma loja de eletrodomésticos, a um festival de verão, a um banco, a uma marca de detergentes, a uma agência de viagens. Foi quando disparou o genérico do reality show que a ouvi murmurar, Já só sirvo para morrer.

Amanhã começa o verão.

Emília Esteves

90 anos, doméstica

14 de julho

Perante a descrição da fraqueza geral que a minha mãe sente, o SNS24 referenciou-a para a Urgência do hospital de Cascais. Mesmo assim, quando lá chegámos, perguntaram-nos, desagradados, por que a levávamos. Consideraram que não o devíamos ter feito. Depois de várias horas, vários exames, mandaram-na para casa. Não tem aparentemente nada de grave. Mas definha. Poderá a cabeça confundida de quem tanto quer viver fragilizar a este ponto o seu corpo?

Rosa Barreira

91 anos, empregada de limpeza

17 de agosto

A minha mãe está cada vez mais calada e parada. Ultimamente, quando acordo, vou até à cama dela e deixo-me ficar deitada à espera que a manhã chame por mim. Hoje abraçou-me, Sabe bem este quentinho, é triste dormir sempre sozinha.

O ecocardiograma que fez num hospital privado detetou um coágulo na superfície da prótese cardíaca.

Alda Pereira

82 anos, doméstica

27 de agosto

Depois de recebermos os resultados do batalhão de exames que o médico de medicina interna e a cardiologista prescreveram, ambos nos avisam de que a minha mãe precisa de um tratamento que só pode ser feito em regime de internamento hospitalar. Um tratamento prolongado e caro, vários milhares de euros, no privado. Maldizemos o sistema de saúde, a pandemia, a injustiça dos corpos. Exausta, peço à minha irmã que leve mais uma vez a minha mãe à Urgência do hospital de Cascais. Fico à espera em casa. A minha irmã liga-me daí a pouco, Desta vez ficou internada, vão tratar finalmente dela, diz, triunfante

Custódia Sousa

87 anos, doméstica

30 de agosto

Por causa da covid-19, não podemos visitar a minha mãe. Comprámos um tablet que deixámos no hospital para ser mais fácil falar com ela e para a vermos. Só que para isso ela precisa da ajuda de uma enfermeira ou de uma auxiliar. Temos direito a uma videochamada por dia.

A casa da minha mãe sem a minha mãe é violentamente triste. Tudo me magoa aqui dentro, o lugar dela à mesa, as árvores que plantou, a sua cama imaculadamente feita. Mas tenho-a pelo menos uma hora por dia no ecrã do meu computador. Protegida deste lado, acaricio-lhe demoradamente o rosto, sem a vergonha que a presença física impõe. Ela não sente nada. Com as palavras é mais difícil, não sei o que lhe dizer. Ou como lhe dizer.

Delmira Esteves

78 anos

28 de setembro

Fez já um mês que a minha mãe está hospitalizada. Em linguagem de leigos, tem uma doença maligna do sangue e uma infeção no coração. Um mieloma e uma endocardite, em linguagem técnica. Está gravemente doente em ambas as linguagens.

7 de outubro

De repente, dou conta de como estou só. Não por a minha mãe continuar no hospital, com a morte a rondar, e o Pedro ter ido de bicicleta até ao Guincho. Apercebo-me, sem perceber bem, que o abandono dos velhos é o espelho que desfigura a solidão a que nos fomos condenando. Muito antes do vírus, já estávamos confinados. Por classes sociais, por idades, por empregos, por aquilo de que gostamos, por aquilo em que acreditamos, por aquilo que consumimos. De tudo nos servimos para dividir, para especializar, para desligar. Se descobrirmos como religar-nos, não vamos mais envelhecer assim.

Florência Custódia

92 anos, doméstica

29 de outubro

A minha mãe está de novo em casa. Esteve quase dois meses hospitalizada, mas conseguiu debelar a endocardite. É raro ver uma doente com tanta vontade de viver, disse o médico. Regressou esfusiante, conversadora, cheia de vontade de fazer isto e aquilo, parecia outra vez a nossa incansável mãe. Até que hoje de manhã deitou o olhar para o quintal e disse, Já viste filha, andei tanto tempo perdida por esse mundo e acabei por vir parar à primeira casa em que vivi com o teu pai. Quando a localizei no tempo e no espaço, de acordo com os conselhos da psiquiatra, os seus olhos cinzentos aguaram-se, Ai filha, não ligues, a minha cabeça já não dá para mais.

Álvaro Gomes

91 anos, agricultor

13 de novembro

Uma das cuidadoras que respondeu ao anúncio que pus na OLX, confessou-me, por telefone, que não gosta muito de idosos, tinha estado empregada até há uns meses num hostel, mas agora não havia turistas, Temos de ir atrás do trabalho. A associação Amor e Esperança deu-me o preçário dos serviços que cobrem as necessidades da minha mãe, limpeza da habitação, banho, refeições, companhia, fisioterapia opcional, 1800 euros por mês já com o desconto de… Tiveram a gentileza de me informar que eu, como cuidadora informal, podia pedir ao Estado um subsídio mensal de 150 euros.

Rosa Sousa

74 anos, doméstica

30 de novembro

Um dos colegas do Vicente testou positivo. Todos os colegas e respetivas famílias ficaram de quarentena. Como se dizia na primeira vaga, vai ficar tudo bem. Daqui a duas semanas a turminha da creche recomeça como se nada tivesse acontecido. Entretanto, nos lares os velhos continuam a morrer. Todas as crianças são parecidas entre si, os velhos são velhos cada um à sua maneira.

12 de dezembro

O meu pai morreu há 19 anos. A minha mãe não se lembrou da data. Mandar rezar uma missa no dia da morte do meu pai era um dos seus deveres mais queridos. Vou desvalorizando os esquecimentos e tentando calar a pergunta que me atormenta como ferro quente, E se ela se esquecer de nós?

Albertina Domingues

82 anos, costureira

17 de dezembro

É o aniversário do Pedro e os pais dele vieram almoçar connosco. São quase da idade da minha mãe, mas estão capazes de tomar conta de si. Arranjei a minha mãe para o almoço, dei-lhe banho, perfumei-a, fiz-lhe um penteado, escolhi-lhe um fato bonito, vesti-a, dei-lhe um beijo na cara, Estamos prontas.

18 de dezembro

Na sala de estar, revejo mais uma vez estas notas que acompanharão as belíssimas fotografias do Adriano Miranda. A minha mãe vê um programa da manhã. Interrompe-me várias vezes, esquece-se que estou a trabalhar, Ando preocupada com uma coisa, filha, quem vai cuidar de ti quando fores velha? A minha mãe não desiste de cuidar de mim. Mas aceita que eu cuide dela. Somos felizes assim.

  • Ilda Virgínia

    95 anos, doméstica

  • José Araújo

    88 anos, pedreiro

  • Mariana Afonso

    83 anos, doméstica

  • Avelino Gomes

    71 anos, pedreiro

  • Mário Serqueira

    77 anos, barman

  • Teresa Silva

    70 anos, doméstica

  • António Ferraz

    68 anos, pedreiro

  • Ildefonso Martins

    84 anos, pastor

  • Olga Rosas

    83 anos, doméstica

  • Isac Miranda

    77 anos, agricultor

  • Maria Martins

    98 anos, doméstica

  • Maria José Gomes e Mário Gomes

    85 anos e 87 anos, empregada de limpeza e pedreiro

  • Conceição Miranda

    75 anos, agricultora

  • Maria Gato

    79 anos, ajudante de enfermagem

  • Angelina Cerqueira

    82 anos, doméstica

  • Deolinda Paula

    84 anos, agricultora

  • Leopoldina Penisga

    94 anos, operária

  • Odete Gigante

    73 anos, bordadeira

  • Manuel Rodrigues

    93 anos, operário

  • Cláudia Mestra

    95 anos, doméstica

  • Domingos Marques

    94 anos, operário

  • António Gomes

    71 anos, pastor

  • João Godinho

    73 anos, comerciante

  • Manuel Marques

    91 anos, pastor

  • Joaquina Roberto

    90 anos, doméstica

  • Alice Cavaco

    94 anos, doméstica

  • Adelide Nunes

    81 anos, doméstica

  • Rita Mário

    94 anos, costureira

  • Mário e Fernanda Guerreiro

    68 anos, gémeos, funcionário público e doméstica

  • Antónia Vicente

    91 anos, doméstica

  • Alice Carvalho

    89 anos, operária

  • Sebastião Soeiro e Antónia Pereira

    92 e 90 anos, carpinteiro e doméstica

  • Ernesto Godinho

    97 anos, mineiro

  • Luísa de Brito

    93 anos, doméstica

  • Vítor Freire

    74 anos, agente imobiliário

  • Maria Francisca

    87 anos, operária

  • José Lourenço

    81 anos, pastor evangélico

  • Rosete Sabino

    74 anos, cozinheira