O sol já vai alto e esconde as sombras dos dois homens armados que seguem, lado a lado, num silêncio apenas quebrado pelas rajadas de balas ao longe. A dança de movimentos miméticos é interrompida, quando um dos recrutas levanta o braço, onde se pode ver a bandeira da Ucrânia cosida no uniforme camuflado, e se agacha.
A terra fresca, que contrasta com a poeira à volta, esconde o que parece ser uma mina antipessoal, semelhante às que ocupam 30% do território de Kiev. Prontamente, é criada uma área de segurança, de forma a evitar que o próximo grupo de militares a pise e a acabe por fazer explodir. Na frente de batalha, a linha entre a vida e a morte será ténue.
Mina enterrada
Esta é a primeira tarefa de um exercício que combina tudo o que foi ensinado ao longo das cinco semanas do curso de formação básica. Enquanto percorrem o caminho, os recrutas têm de estar atentos à existência de minas antipessoais, que podem estar escondidas sob a poeira. Se descobrirem uma, devem criar uma área de segurança, de forma a evitar que outros recrutas a pisem e assim a façam explodir.
Sempre próximos, os dois homens regressam ao ritual inicial, medindo cada passo no caminho pedregoso entre a vegetação alta e com visibilidade curta. Um cenário que os deixa numa posição difícil para um eventual ataque inimigo. Outro braço no ar e um grito impossível de decifrar.
De repente, uma nova rajada de balas rasga a suave brisa do vento frio. Apesar da rápida resposta, um dos militares é atingido num braço e numa perna. Ainda consegue aplicar o torniquete no membro inferior, para estancar o sangue, mas tem de pedir auxílio para evitar o sangramento no braço. Tem dois minutos para o concretizar, de forma a evitar uma hemorragia com consequências trágicas.
Ataque surpresa do inimigo
Ouve-se uma rajada de balas. Os ucranianos devem responder rapidamente, resguardando-se e respondendo com fogo. Se algum for atingido – situação que simulam – devem conseguir aplicar o torniquete no membro atingido. Têm dois minutos para aplicar o torniquete, de forma a evitar uma hemorragia com consequências trágicas.
Estes recrutas fazem parte de um grupo de 198 civis ucranianos, sem qualquer experiência militar, que chegaram no dia 12 de Janeiro à Academia Militar de Toledo, no âmbito da Missão de Assistência Militar da União Europeia na Ucrânia (EUMAM). É o segundo grupo de civis treinados em Espanha com o apoio da União Europeia (UE)
Alona contrariou a família para ir “vencer a guerra”
Num dos vários campos de treinos espalhados pelo complexo militar a 70 quilómetros de Madrid, conhecemos Alona. Com pouco mais de 1,60 e olhos claros, esta ucraniana transporta uma imponente H&k G36, uma das armas usadas nestes exercícios militares.
Ao contrário da formação que é dada a militares noutros pontos da europa, este grupo, composto por 194 homens e quatro mulheres, integra apenas civis, que se alistaram depois do conflito e que automaticamente ficam ligados ao Exército por um contrato de três anos, independentemente do curso da guerra.
Antes da madrugada de 24 de Fevereiro de 2022, Alona trabalhava como intérprete em Madrid. Apesar de já estar a viver em Espanha há 15 anos, regressou à Ucrânia para se alistar no Exército. “Senti a obrigação e a necessidade de servir e defender o meu país”, justifica.
“São pessoas que estavam a realizar todo o tipo de trabalhos, ou a estudar, antes do estalar do conflito. Agora, a máxima preocupação é o possível novo ataque que a Rússia está a preparar”, refere Oleksandr Demchuk, de 47 anos, e um dos experientes soldados ucranianos que acompanha este grupo na missão que decorre em Espanha. A idade média neste grupo é de 24 anos, mas há mais novos e até pessoas com quase 40 anos.
A família de Alona vive em Espanha. Irmão e mãe não compreendem a decisão da mulher de 35 anos: “Tentaram demover-me, mas eu sou maior de idade e já tomo as decisões por mim.” Questionada sobre o que esperar quando chegar à linha da frente, Alona repete cheia de confiança: “Não nos resta mais nada que não seja vencer a guerra.” Explica que não esperava regressar a Espanha depois do início da guerra, mas que a formação que teve em Toledo “reforça a confiança”.
Espera juntar-se aos primos e outros amigos que já estão na linha da frente. “A única coisa que estamos a fazer é defender o que é nosso”, diz, deixando um sorriso tímido, que não consegue esconder a confiança, mesmo sem saber onde vai ser colocada nas próximas semanas.
“Sabemos que nem todos chegarão ao fim da guerra vivos”
Sempre no encalço dos dois recrutas está Carlos Vera, de 29 anos, capitão do Exército espanhol e um dos responsáveis pela formação. “Estamos na última das cinco semanas deste curso de formação básica. Este é um exercício em que combinamos tudo o que temos aprendido. Mesmo tendo sido atingidos, reparem que fizeram quase tudo certo. Ouviram o disparo, responderam de forma alternada, para que o fogo seja constante, reduziram a silhueta e aplicaram o torniquete de uma forma bastante satisfatória”, explica ao PÚBLICO.
Em Toledo, este já é o segundo grupo e até ao final da Primavera serão treinadas 15 mil pessoas em toda a Europa, entre civis e pessoal militar, em vários Estados-membros, para depois combaterem do lado ucraniano, diz Peter Stano, porta-voz da União Europeia para a política externa, por escrito.
“Não sabemos como estão os outros recrutas que treinamos. Não podemos criar essa ligação, nem ficar preocupados com isso”, diz Vera. No entanto, deixa um lamento: “Mas é óbvio que ficamos preocupados. Sabemos que nem todos chegarão ao fim da guerra vivos.”
Quando terminarem esta formação, vão regressar ao país, colocados pelo comando local onde fazem mais falta. “Estamos muito agradecidos pela formação recebida e muito motivados. Quando chegarem à Ucrânia, estarão muito bem preparados para responder às várias necessidades”, diz Oleksandr.
Uma escola de línguas em tempo real
De volta ao terreno, e depois de corrigidos os erros ainda cometidos, os dois jovens ucranianos são confrontados com um novo teste. Num ponto alto de uma colina são desafiados a treinar o tiro seco. O objectivo é sobretudo corrigir posições.
Horas antes, num dos complexos da Academia Militar, o exercício é feito de uma forma mais calma. E a repetição é o mote. “Arma colocada ao ombro, um joelho adiantado, pé fixo no chão e, sobretudo, automatismo”, exemplifica Vera. E deixa outro imperativo: “A posição tem de ser estável e o mais natural possível.”
Tiro seco
Num ponto alto de uma colina, os ucranianos são desafiados a treinar o tiro seco. O objectivo é sobretudo corrigir posições, que foram treinadas ao longo das últimas semanas em ambiente mais calmo. Nesta altura, os movimentos devem ser instintivos, uma vez que tempo a mais na execução pode ser fatal.
“É muito importante que façam estes movimentos de uma forma totalmente instintiva, sem que pensem muito. Se ainda forem a pensar no que vão fazer, demoram mais três segundos. E três segundos a mais no campo de batalha podem ser fatais”, acrescenta o tenente-coronel Roman Espinosa, também ele no apoio à EUMAM.
“Está mal feito. Não é assim. Tens de repetir. Volta ao início”, ouve-se em castelhano, prontamente traduzido por um jovem alto, vestido à civil, distinguindo-se facilmente dos camuflados que nos rodeiam. Para se ambientarem ao mais do que provável caos do campo de batalha, no meio da vegetação e do pó que se levanta a cada passo rápido, são dadas instruções em altos berros, por um dos militares espanhóis, logo traduzidas para ucraniano.
No apoio a este grupo, existem intérpretes ucranianos, que fazem aqui uma ponte importante para o sucesso das comunicações. “Mas, ao fim de quase quatro semanas, já se ouvem os ucranianos a dizer frases em castelhano e os espanhóis a arriscarem algumas expressões deles. É uma escola de línguas em tempo real”, diz-nos, entre sorrisos, Roman.
O silêncio que marcou os primeiros metros deste percurso contrasta com a correria e o ambiente caótico deste momento. Talvez por isso sejam cometidas mais falhas, o que motiva novas repetições. Além de estarem sempre a ouvir os disparos provenientes de outros pontos da academia, aqui são reforçadas as situações de stress. “Temos de replicar ao máximo aquilo que possivelmente vão encontrar durante a guerra”, aclara o tenente-coronel.
A missão tem um orçamento de 106,7 milhões de euros e, no início do mês, Josep Borrell, alto-representante da UE para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, confirmou que até ao final do ano a União Europeia espera conseguir chegar às 30 mil pessoas.
Para além do treino militar necessário, será também dada formação para a utilização dos tão esperados tanques Leopard 2. É, para o investigador da Academia Militar António Paulo Duarte, “uma forma de robustecer a capacidade de combate do Exército ucraniano”. “Muitas das coisas que eles [ucranianos] conseguem fazer, sem este apoio, seriam impossíveis, e estariam muito debilitados face à Rússia”, explica.
As armas que chegam do Ocidente
Já com sinais de cansaço, os dois rapazes voltam a pegar na arma, um modelo ainda da II Guerra Mundial, diferente daqueles usados pelo Exército ucraniano, e seguem caminho. Mesmo com a chegada de armas de vários países ocidentais, grande parte do arsenal usado pelas forças de Kiev neste conflito tem, ironicamente, origem soviética. “Isso não nos preocupa. A teoria é a mesma, os princípios são semelhantes. Estive em missões internacionais, no Iraque, e tive de disparar armas com origem nos EUA ou na Alemanha e não senti grandes dificuldades”, reforça Roman Espinosa.
“De forma cada vez mais acentuada terão de utilizar esse material, substituindo o mais velho, ainda de origem soviética”, vaticina António Paulo Duarte.
Nova paragem, desta vez para um exercício de defesa pessoal. Perante a ameaça de um ataque químico ou nuclear, “têm quatro minutos para vestir isso. Rápido ou ficam contaminados. Rápido!”, grita um dos militares espanhóis, sem grande complacência pelo cansaço dos dois jovens. No dia anterior, tinham feito um treino de 12 horas, poucos dias depois de uma formação de 24, para apurar o tiro nocturno.
Ataque químico ou nuclear
Perante a ameaça de um ataque químico ou nuclear, devem vestir os fatos em menos de quatro minutos, para evitar contaminação, e caminhar uns metros até outro ponto onde devem despir o fato e arrumar tudo na mochila.
As armas são pousadas no chão. Do interior de uma mochila que aparenta pesar uma tonelada são retiradas várias partes de um camuflado e uma máscara gigante, que protege contra este tipo de ataques. Além da formação dada para tiro e autodefesa, estes recrutas são treinados para situações-limite, como a possibilidade de ataques químicos e até o frio extremo que os espera nas próximas semanas.
É, precisamente por isso que parte da equipa de instrutores integra o Regimento América 66, situado em Navarra, onde no Inverno são atingidas temperaturas semelhantes às de algumas partes da Ucrânia. “Temos de os ajudar na manutenção do armamento e dos veículos. E, claro, prepará-los para possibilidade de hipotermia”, diz Carlos Vera.
Com a mesma rapidez com que vestiram o pesado fato, são obrigados a despir e a guardar tudo na mochila que transportam às costas. Tudo de forma coordenada: enquanto um se concentra neste pronto-a-vestir improvisado, o outro segura a arma, atento a um possível ataque do inimigo, que pode aproveitar qualquer rasgo de desatenção para desferir um golpe fatal. “Toda a experiência que aqui adquirem é boa e vai servir para o futuro. Tanto para as circunstâncias que vão encontrar na linha da frente, como para o pós-guerra”, diz-nos Oleksandr Demchuk.
Nas últimas semanas, uma nova investida russa parece cada vez mais certa. Tanto a NATO como a Ucrânia temem que a celebração de um ano do conflito coincida com o reforço militar por parte de Moscovo. “A máxima preocupação que têm neste momento passa pelo possível novo ataque da Rússia. Estão obviamente preocupados com isso, mas a verdade é que não resta nenhuma alternativa a não ser ir para a frente e combater”, diz o experiente militar ucraniano.
“Pum! Tropeçaste numa armadilha!”
Carlos Vera, capitão do Exército espanhol
Já com a indumentária que iniciaram o exercício vestida, mudam a forma como caminham. Desta vez, segue um à frente do outro. Na eventualidade de precisarem de disparar e depois recarregar a arma, o recruta que segue atrás assume logo a posição dianteira. “No campo de batalha, não podem parar de disparar. Quer seja para recarregar a arma ou para resolver qualquer problema, o outro soldado tem de estar pronto para assumir a posição frontal, para não dar margem de manobra ao inimigo”, explica Carlos Vera.
Depois de caminharem alguns metros num ambiente imperturbável, em que praticamente só se ouve as botas a baterem no chão que logo responde com uma nuvem de pó, um grito quebra o silêncio. “Pum! Tropeçaste numa mina!”, exclama um dos instrutores.
Armadilha
No meio do trajecto, escondida por entre a poeira e a vegetação, está uma armadilha: um fio muito fino e transparente atravessa o caminho dos dois recrutas, com uma granada laranja na ponta. Os ucranianos devem conseguir identificar a armadilha, evitá-la e sinalizá-la.
Os dois ucranianos olham para o chão e percebem de imediato o erro que cometeram. Um fio muito fino e transparente, semelhante ao que se usa na pesca, atravessa o caminho. Na ponta está uma granada laranja. “Como nos últimos metros não tiveram grandes momentos de acção, ficaram mais desconcentrados e tropeçaram no fio. Isto é o tipo de armadilhas que podem encontrar durante a guerra. Estariam gravemente feridos, se isto fosse real”, diz um dos vários intérpretes que acompanha o treino.
Ao final de quase um mês de intensa preparação, longe de casa e com destino marcado para o meio da maior guerra em solo europeu desde o final da II Guerra Mundial, o moral é um aspecto importante. Parte do pessoal militar que acompanha estes civis tem mesmo instruções específicas nesse sentido. E aqui, segundo o capitão ucraniano, a tecnologia desempenha um papel importante. “Há contactos esporádicos pelo telefone, aqui têm o que é básico, mas o foco e a concentração são o mais importante”, atira Oleksandr.
Treino rumo ao desconhecido
Depois de analisado o que falhou, seguem rumo ao último exercício em que vão praticar o tiro. Nos outros complexos da academia militar, onde estão os campos de tiros, os recrutas treinam contra alvos colocados a 200, 100 ou 80 metros. Tanto disparam em movimento, como parados. Mas aqui é diferente. No meio do mato, há um complexo de redes entrelaçadas, simulando o que pode ser um depósito de armas, com mais obstáculos do que os que encontram em campo aberto.
“O tiro é uma componente muito importante, assim como a capacidade de se moverem pelo campo de batalha. É uma das preocupações que temos ao treinar as pessoas que vão directamente para a frente de combate”, relata Carlos Vera.
Simulação da entrada num depósito de armas
Mais um exercício de tiro. No meio do mato, há um complexo de redes entrelaçadas, simulando o que pode ser um depósito de armas, com mais obstáculos do que os que encontraram no treino que realizaram em campo aberto. Devem entrar no complexo, identificar os alvos posicionados em localizações estratégicas e atingi-los.
Os dois homens armados entram no complexo e identificam dois alvos posicionados em localizações estratégicas. Começa logo uma brutal rajada de tiros, interrompida apenas pelos invólucros vermelhos com pólvora seca que obrigam a uma paragem. O soldado que segue atrás passa então para a frente e prossegue a salva de tiros. “Estas balas, que são de pólvora seca, são colocadas de propósito. Assim, os recrutas têm de treinar a troca de posição. Quem está atrás dá um toque no ombro do da frente, sinalizando que está pronto para o substituir quando for preciso”, explica o capitão do Exército espanhol, que dá os parabéns aos dois recrutas depois de terem aniquilado o objectivo.
Os dois jovens ucranianos juntam-se a Alona e a mais uma dezena de recrutas que chegam de outros exercícios. Deitados ao sol, em cima da mochila que transportaram ao longo do treino, descansam, enquanto o som das balas que chega dos outros campos de treino vai perdendo a intensidade. O que vão encontrar nos próximos dias poucos sabem.