Infografia
Raio-x a três surtos: as boleias e o convívio espalharam a covid-19 nesta obra
Um surto numa obra de requalificação de um hotel em Lisboa, em Maio, deu origem a 45 casos positivos. Primeiro caso: um electricista que esteve só um dia na obra. O descuido no uso de máscaras e na partilha de boleias e horas de refeição ajudam a explicar como a covid-19 se espalhou. Com a ajuda das autoridades de saúde, o PÚBLICO analisou este e outros dois surtos ao detalhe.
Em Maio, as autoridades de saúde detectaram um surto de covid-19 numa obra de remodelação de um hotel no concelho de Lisboa.
O primeiro caso foi detectado num trabalhador desta obra, um electricista que reside em Sintra.
Dia 1
Antes de ir trabalhar para aquela obra, o electricista já tinha sintomas ligeiros e inespecíficos há pelo menos cinco dias. Trabalhou no local apenas um dia.
Um dia depois do teste positivo, é comunicado à entidade patronal que está infectado. Os contactos de aparente baixo risco não são isolados porque são classificados como sendo de curta duração. Não são detectados quaisquer contactos de alto risco.
Dia 2
É diagnosticado um segundo caso na obra, noutro electricista, que tinha estado em contacto com o primeiro
. A empresa activa o plano de contingência, que engloba os vários locais onde os trabalhadores infectados exerceram funções, e é feito o isolamento profiláctico dos contactos de alto risco. Pela remodelação daquele hotel passaram 119
trabalhadores de diferentes ofícios.
Dia 8
Seis dias depois, é detectado o terceiro caso noutro electricista. Este homem já se encontrava em isolamento profiláctico desde o dia 2 do surto por ter sido um contacto de alto risco do segundo caso diagnosticado
.
Dia 13
É detectado o quarto caso num pedreiro que exercia funções no mesmo piso que a equipa de electricidade. O plano de acção é o mesmo: comunicação à entidade patronal, que prontamente activa o plano de contingência nos vários locais onde exerceu funções, promovendo o isolamento profiláctico dos contactos de alto risco.
Dia 14 e 15
Um quinto caso é detectado num trabalhador com funções de fiscalização da obra. Este funcionário esteve pouco tempo com cada trabalhador, mas, segundo as autoridades de saúde, contactou com um número elevado de pessoas durante o seu horário de trabalho. Os contactos de alto risco são isolados
No dia seguinte, outra infecção é detectada num pedreiro. Este trabalhador partilhou o espaço de refeições (ainda que por um curto período) e partilhou carro com um infectado.
Dia 16 e 18
As autoridades de saúde detectam uma “acumulação de casos com ligação à obra em questão”, apesar de não conseguirem estabelecer uma causa. São reforçadas as medidas previstas no plano de contingência pela equipa responsável pela gestão de obra, os serviços de medicina do trabalho/saúde ocupacional. Nesse dia, a obra é suspensa durante 24 horas até que se verifique o cumprimento das medidas; dois dias depois, o espaço é desinfectado. A obra não chega a ser encerrada.
Dia 19
Todos os funcionários com “exposições de maior risco aos vários casos detectados” são testados. Surgem mais nove casos, num total de 15.
No dia seguinte a obra é totalmente encerrada e todos os 119 funcionários entram em isolamento profiláctico.
Dia 29
Todos os trabalhadores que estavam a cumprir o isolamento são testados. São diagnosticados 30 novos casos, num total de 45.
As autoridades de saúde sublinham que entre estes 30 novos casos detectados na “segunda onda” de testagem existem trabalhadores que tiveram contactos próximos de risco.
Dois profissionais responsáveis pela condução das empilhadoras (ao ar livre) que partilharam horários de refeição;
Cinco elementos de uma equipa que, apesar de não trabalharem no mesmo piso nem partilharem horário de refeição, iam para a obra no mesmo carro;
Nove pedreiros de diferentes pisos que almoçavam juntos.
Como se pode ter espalhado o vírus?
Segundo Vítor Veríssimo, médico do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) de Lisboa Central que acompanhou de perto este surto, o facto de não haver registo integral dos dados de quem entra e sai na obra dificultou o trabalho das autoridades de saúde.
“Por exemplo, se apenas nos facultam um nome comum como João Santos, sem qualquer outro dado identificativo, raramente se consegue localizar atempadamente a pessoa em questão ao ponto de se conseguir aplicar as medidas previstas. Muitas das vezes perguntamos a colegas se terão o contacto telefónico desse tal funcionário para o conseguirmos contactar. Felizmente, este problema tem vindo a ser melhorado e actualmente é mais fácil de agir atempadamente”, explica o médico. Os canais de comunicação foram melhorados desde que os casos de covid-19 na construção civil começaram a acumular-se, em Maio e Junho, diz.
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Outra das razões apontadas pelo médico é que o ambiente de trabalho, por ser aparentemente arejado, muitas das vezes ao ar livre ou com poucas janelas, aliado ao facto de poder existir uma “menor literacia para a saúde neste grupo” (quando comparado, por exemplo, com um surto num lar ou numa empresa), “facilita o alívio das medidas preventivas previstas, como a utilização regular da máscara”.
O uso de máscara começou a ser obrigatório em locais fechados e movimentados no mês de Abril, mas Vítor Veríssimo diz que muitos trabalhadores desta obra, que decorreu em Maio, não respeitavam esta regra. “Tinham indicação da parte da Medicina do Trabalho para o fazer, mas não as usavam regularmente.”
Além de, em certos casos, a utilização de máscara não ser respeitada, o distanciamento também não o era, principalmente nas pausas para almoços. “Apesar de o espaço ser bastante arejado e de os trabalhadores estarem dispersos por vários espaços do edifício, quase que simulando um ambiente ao ar livre, vários funcionários juntavam-se para as pausas de almoço e do lanche”, descreve o médico.
Também era comum os trabalhadores usarem o mesmo meio de transporte (carrinhas ou carros), o que possibilita uma grande proximidade física.
Foi precisamente esta a explicação dada pela ministra da Saúde, na altura em que os surtos em obras de construção civil e grandes empresas, principalmente na região de Lisboa e Vale do Tejo, se multiplicavam. “Há algum relaxamento nos momentos que não são de trabalho formal — almoço, mudas de roupa, eventual utilização de meios de transporte coletivos, que não transportes públicos”, afirmou Marta Temido a 23 de Maio.
Neste surto, registaram-se casos de infecção em mais de 20 concelhos e freguesias de várias regiões do país.
Pelo menos 239 pessoas foram acompanhadas pela autoridades de saúde.
Destas 239, 119 eram funcionários da obra. Os casos positivos registaram-se todos em trabalhadores da construção, 45 no total, o que se traduz numa taxa de incidência da doença de 37,8%.
As restantes 120 são contactos de alto risco dos casos positivos. Estes contactos são familiares, colaboradores de outras obras em que os casos positivos também exerciam funções ou pessoas com quem estiveram em “convívios sociais”. Mais de 70 funcionários não chegaram a contrair a doença.
Para Vítor Veríssimo, o facto de muitos funcionários não terem um local de trabalho fixo facilitou a propagação da doença. Neste surto em específico, grande parte dos casos foram detectados em concelhos da região de Lisboa e Vale do Tejo (Amadora, Loures, Almada, Seixal, Barreiro, entre outros), mas também na região Norte (Santa Maria da Feira).
“A maioria dos funcionários não são elementos contratados e fixos para determinada função. Há uma elevada mobilidade de profissionais da área entre diferentes obras (um dia exercem funções na obra x, outro dia na obra y) e são plurivalentes, dificultando a localização dos profissionais com quem estiveram em contacto”, explica o médico de saúde pública.
Os surtos de covid-19 em obras de construção civil, que se começaram a verificar em Maio, levaram a Direcção-Geral da Saúde a divulgar uma série de medidas para prevenir e controlar a covid-19 no sector.
As regras vão desde a obrigatoriedade de existirem dispensadores para desinfecção das mãos em todos os estaleiros à proibição de partilha de artigos pessoais, como marmitas, garrafas de água ou canetas. Quanto às ferramentas, devem ser desinfectadas quando utilizadas por pessoas diferentes.
FICHA TÉCNICA
Infografia: Francisco Lopes e José Alves Desenvolvimento web: Francisco Lopes e José Alves Texto: Sofia Neves