CANTO I
Proposição (Estrofes 1-3)
Invocação (Estrofes 4-5)
Dedicatória (Estrofes 6-18)
Início da narração da viagem
(Estrofe 19)
Usando uma estratégia narrativa obrigatória segundo as regras da épica clássica, Camões inicia a narrativa a meio da acção (in media res) que se propõe narrar, e só mais tarde regressa, por analepse (no cinema diríamos flashback), ao início da viagem do Gama, com a partida de Lisboa.
Portanto, se a infografia quiser seguir a viagem segundo a ordem em que ela é narrada n’Os Lusíadas, o primeiro momento é este.
Canto I - 19
Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Próteo são cortadas
Diz apenas que os navegadores portugueses estão no “largo Oceano”, mas mais à frente percebe-se que o oceano em causa é o Índico e que estão aproximadamente na zona do Canal de Moçambique, que separa Moçambique de Madagáscar.
Primeiro Consílio dos Deuses
(Estrofes 20-41)
Uma parte importante da acção narrada n’Os Lusíadas situa-se no plano dos deuses da mitologia greco-romana. É um plano que se cruza com o da narração da viagem e que, tal como este, acontece no presente da acção. Este é o primeiro momento. Na sua morada, no Olimpo, os deuses, arbitrados por Júpiter, discutem o destino dos navegadores portugueses, que têm em Vénus a sua principal aliada e em Baco o seu maior adversário. Noutros momentos do poema, os deuses voltarão a reunir.
Talvez se possa arranjar um modo de figurar estes lugares mitológicos, como o Monte Olimpo, habitação dos deuses na mitologia grega, ou imaginados pelo poeta, como a Ilha dos Amores que aparece no final da narrativa.
Canto I - 20
Quando os Deuses no Olimpo luminoso,
Onde o governo está da humana gente,
Se ajuntam em concílio glorioso
Sobre as cousas futuras do Oriente.
Pisando o cristalino Céu formoso,
Vêm pela Via-Láctea juntamente,
Convocados da parte do Tonante [Júpiter],
Pelo neto gentil do velho Atlante [Mercúrio, mensageiro dos deuses].
(…)
Regresso à viagem
(estrofes 42-104)
A narração da viagem, que mal começara fora interrompida pelo Consílio dos Deuses, prossegue.
Camões explica agora melhor onde estão os navegadores, situando-os entre a costa moçambicana e a ilha de Madagáscar. Vasco da Gama hesita em aportar, mas aparece-lhe gente vinda de uma ilha próxima da costa e acaba por desembarcar.
Canto I - 42 a 44
42
Enquanto isto se passa na formosa
Casa etérea do Olimpo onipotente,
Cortava o mar a gente belicosa,
Já lá da banda do Austro e do Oriente,
Entre a costa Etiópica e a famosa
Ilha de São Lourenço; e o Sol ardente
Queimava então os Deuses, que Tifeu
Com o temor grande em peixes converteu.
Costa de Etiópica - o termo abrangia então toda a costa oriental africana
Ilha de São Lourenço - Madagáscar
43
Tão brandamente os ventos os levavam,
Como quem o céu tinha por amigo:
Sereno o ar, e os tempos se mostravam
Sem nuvens, sem receio de perigo.
O promontório Prasso já passavam,
Na costa de Etiópia, nome antigo,
Quando o mar descobrindo lhe mostrava
Novas ilhas, que em torno cerca e lava.
Promontório Prasso - termo da geografia antiga, identificado com o actual Cabo Delgado, em Moçambique, entre a vila de Palma e o rio Rovuma, que marca a fronteira entre Moçambique e a Tanzânia.
44
Vasco da Gama, o forte capitão, [1.ª referência ao Gama]
Que a tamanhas empresas se oferece,
De soberbo e de altivo coração,
A quem Fortuna sempre favorece,
Para se aqui deter não vê razão,
Que inabitada a terra lhe parece:
Por diante passar determinava;
Mas não lhe sucedeu como cuidava.
Nas estrofes seguintes, os habitantes locais aproximam-se das naus portuguesas em pequenas embarcações, sobem a bordo e são recebidas por Gama, que aporta na Ilha de Moçambique e lhes oferece uma refeição em mesas que manda armar em terra.
45
Eis aparecem logo em companhia
Uns pequenos batéis, que vêm daquela [ilha] - Ilha de Moçambique
Que mais chegada à terra parecia,
Cortando o longo mar com larga vela.
A gente se alvoroça e, de alegria,
Não sabe mais que olhar a causa dela.
– «Que gente será esta? » (em si diziam)
«Que costumes, que Lei, que Rei teriam?»
49
Não eram ancorados, quando a gente
Estranha polas cordas já subia.
No gesto ledos vêm, e humanamente
O Capitão sublime os recebia.
As mesas manda pôr em continente;
Do licor que Lieu prantado havia
Enchem vasos de vidro; e do que deitam
Os de Fáeton queimados nada enjeitam.
Gama recebe depois a visita do régulo, de fé muçulmana, iniciando-se uma troca de informações com o auxílio de um intérprete que integrava a expedição.
Gama explica que busca a Índia, que os moçambicanos já saberiam como atingir, e por isso pede que lhe cedam pilotos para o guiar.
Canto I - 64
(…)
Nem sou da terra, nem da geração
Das gentes enojosas de Turquia,
Mas sou da forte Europa belicosa;
Busco as terras da Índia tão famosa.
(…)
Canto I - 70
Pilotos lhe pedia o Capitão,
Por quem pudesse à Índia ser levado;
Diz-lhe que o largo prémio levarão
Do trabalho que nisso for tomado.
Promete-lhos o Mouro, com tenção
De peito venenoso e tão danado
Que a morte, se pudesse, neste dia,
Em lugar de pilotos lhe daria.
Estrofes 73-83
Baco toma a forma de um mouro sábio, amigo do régulo, junto de quem intriga contra os portugueses, convencendo-o a preparar-lhes uma cilada quando estes fossem abastecer-se de água para a viagem. E aconselha que, falhando o golpe, o régulo lhes entregue um piloto que os desvie do caminho e os leve para um local onde possam ser destruídos.
Estrofes - 83-93
Ataque em Moçambique. Portugueses levam a melhor e regressam às naus.
Canto I - 93
Tornam vitoriosos pera a armada,
Co despojo da guerra e rica presa,
E vão a seu prazer fazer aguada,
Sem achar resistência nem defesa.
(…)
Estrofes 99-100
O régulo faz as pazes e envia um piloto que tenta levar Gama à ilha de Quíloa, na Tanzânia, onde este seria atacado, mas Vénus intercede e envia ventos que desviam as naus da ilha.
Portanto, a viagem (nos Lusíadas) acabou por não passar por Quíloa, mas o lugar tem alguma importância na narrativa. (Como escrevia uns 50 anos após os acontecimentos, Camões sabia que Pedro Álvares Cabral fora mal recebido em Quíloa, em 1500, e que a coroa portuguesa impusera ao reino um tributo de vassalagem em 1502.)
Mombaça
Estrofes 101-106, última do Canto I
O piloto tenta então levar os portugueses até Mombaça, a pretexto de que nela viveriam em harmonia muçulmanos e cristãos. Baco já aparecera em sonhos ao rei de Mombaça, convencendo-o a destruir os navegadores.
Chegada a Mombaça
Canto I - 103
Estava a Ilha à terra tão chegada
Que um estreito pequeno a dividia;
Ua cidade nela situada,
Que na fronte do mar aparecia,
De nobres edifícios fabricada,
Como por fora, ao longe, descobria,
Regida por um Rei de antiga idade:
Mombaça é o nome da Ilha e da cidade.
104
E sendo a ela o Capitão chegado,
Estranhamente ledo, porque espera
De poder ver o povo baptizado,
Como o falso piloto lhe dissera,
Eis vêm batéis da terra com recado
Do Rei, que já sabia a gente que era;
Que Baco muito de antes o avisara,
Na forma doutro Mouro, que tomara.
Os portugueses aportam em Mombaça, mas só se saberá o que ali se passou no Canto II. O Canto I acaba com uma reflexão do poeta (estrofes 105-106), que se introduz na narrativa para sublinhar a fragilidade dos homens quando até os céus conspiram para os perder. É neste passo que aparece a expressão “bicho da terra tão pequeno” para designar a humanidade.
Canto I - 106
No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
CANTO II
Chegada a Mombaça e traição do rei
Estrofes 1-9
Gama chega a Mombaça (na costa do Quénia), o rei convence-o de que a maioria da população é cristã e mostra-se acolhedor. Convence Gama a entrar a barra com as várias naus, com o propósito de as destruir.
Baco volta a intrigar (estrofes 10-16), e o rei de Mombaça prepara-se para atacar os portugueses logo que estes entrem no porto, mas Vénus impede as naus de avançar (estrofes 17-28), e fá-las recuar contra o vento, para admiração da marinhagem. O falso piloto e dois condenados portugueses que Gama enviara a colher informações, e que o tinham enganado, acham que foram descobertos e fogem, lançando-se ao mar.
Canto II - 10 (Baco)
Mas aquele que sempre a mocidade
Tem no rosto perpétua, e foi nascido
De duas mães [Baco], que urdia a falsidade
Por ver o navegante destruído,
Estava nua casa da cidade,
Com rosto humano e hábito fingido,
Mostrando-se Cristão, e fabricava
Um altar sumptuoso que adorava.
Canto II - 17 (Prepara-se o ataque)
Na terra cautamente aparelhavam
Armas e munições, que, como vissem
Que no rio os navios ancoravam,
Neles ousadamente se subissem;
E nesta treïção determinavam
Que os de Luso de todo destruíssem,
E que, incautos, pagassem deste jeito
O mal que em Moçambique tinham feito.
Canto II - 22 (Vénus)
Põe-se a Deusa com outras em direito
Da proa capitaina, e ali fechando
O caminho da barra, estão de jeito
Que em vão assopra o vento, a vela inchando;
Põem no madeiro duro o brando peito,
Pera detrás a forte nau forçando;
Outras em derredor levando-a estavam
E da barra inimiga a desviavam.
Canto II - 28
Assi fogem os Mouros; e o piloto,
Que ao perigo grande as naus guiara,
Crendo que seu engano estava noto,
Também foge, saltando na água amara.
Mas, por não darem no penedo imoto,
Onde percam a vida doce e cara,
A âncora solta logo a capitaina,
Qualquer das outras junto dela amaina.
Gama percebe a cilada e suplica a protecção da Providência (estrofes 29-32)
Vénus ouve a súplica e dispõe Júpiter a favor dos portugueses. (estrofes 33 a 41)
Júpiter vaticina grandes feitos aos portugueses no Oriente (estrofes 44-55)
Canto II - 44
– «Fermosa filha minha, não temais
Perigo algum nos vossos Lusitanos,
Nem que ninguém comigo possa mais
Que esses chorosos olhos soberanos;
Que eu vos prometo, filha, que vejais
Esquecerem-se Gregos e Romanos,
Pelos ilustres feitos que esta gente
Há-de fazer nas partes do Oriente,
Júpiter envia Mercúrio à Terra (estrofes 56-63) para ajudar os portugueses. Mercúrio vai primeiro a Melinde garantir que os portugueses ali sejam bem recebidos, e parte depois para Mombaça, aparecendo em sonhos ao Gama para que este resolva deixar Mombaça e seguir para Melinde (também no actual Quénia, a norte de Mombaça).
Canto II - 61
Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece,
Dizendo: – «fuge, fuge, Lusitano,
Da cilada que o Rei malvado tece,
Por te trazer ao fim e extremo dano!
Fuge, que o vento e o Céu te favorece;
Sereno o tempo tens e o Oceano
E outro Rei mais amigo, noutra parte,
Onde podes seguro agasalhar-te!
Gama parte de Mombaça (64-71)
Chegada a Melinde (72-77)
Canto II - 73
Quando chegava a frota àquela parte
Onde o Reino Melinde já se via,
De toldos adornada e leda de arte
Que bem mostra estimar o Santo dia.
Treme a bandeira, voa o estandarte,
A cor purpúrea ao longe aparecia;
Soam os atambores e pandeiros;
E assi entravam ledos e guerreiros.
O rei de Melinde sobre a bordo
Canto II - 101
Já no batel entrou do Capitão
O Rei, que nos seus braços o levava;
Ele, co a cortesia que a razão
(Por ser Rei) requeria, lhe falava.
Cuas mostras de espanto e admiração,
O Mouro o gesto e o modo lhe notava,
Como quem em mui grande estima tinha
Gente que de tão longe à Índia vinha.
O rei de Melinde pede a Gama que lhe fale da terra de onde vem e da sua história (estrofes 111-113), propondo ele próprio a estrutura do relato de Gama, começando com a proveniência geográfica dos portugueses, a sua história e, finalmente, a própria viagem do Gama.
Acaba aqui o canto II, com este pretexto para Camões contar a história de Portugal por interposto Vasco da Gama, o que ocupará inteiramente os cantos III e IV. Até que o relato do Gama chega ao passado mais recente e à sua própria partida de Lisboa, em busca do caminho marítimo para a Índia, no final do Canto IV. E aí se começa a narrar desde o início a história da viagem, que no Canto I fora apanhada já a meio do percurso.
Dada a sua extensão, e por se tratar de uma narração dentro da narração, não sei se fará sentido inserir de algum modo na infografia este excurso pela história de Portugal. Adiante resume-se o essencial.
CANTO III
Gama começa pela descrição geográfica de Portugal (estrofes 6-21) no contexto peninsular e europeu. Termina esta introdução com as célebres passagens:
Canto III - 20
“Eis aqui, quási cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa
(…)
Canto III - 21
«Esta é a ditosa pátria minha amada,
À qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
(…)
A estrofe 22 vai da origem mítica dos Lusitanos a Viriato. Segue-se o período imediatamente anterior à fundação do reino, com D. Henrique (estrofes 23-28), as lutas entre D. Teresa e o filho, Afonso Henriques (29-33), a guerra com Castela e o episódio de Egas Moniz (34-41), a batalha de Ourique e o milagre da aparição de Cristo a Afonso Henriques (42-52), a explicação dos símbolos da bandeira de Portugal (53-54), a reconquista do território a Sul, com Afonso Henriques, Sancho I, Afonso II, Sancho II e Afonso III (55-95).
Segue-se D. Dinis e Afonso IV, com o episódio da “fermosíssima Maria”, filha de Afonso IV e mulher do rei castelhano Afonso XI, que apela ao pai para ajudar o marido a defender Castela da iminente invasão do sultão de Marrocos.
Canto III, 102
«Entrava a fermosíssima Maria
Polos paternais paços sublimados,
(…)
Canto III, 104
«Aquele que me deste por marido,
Por defender sua terra amedrontada,
Co pequeno poder, oferecido
Ao duro golpe está da Maura espada;
E, se não for contigo socorrido,
Ver-me-ás dele e do Reino ser privada;
Viúva e triste e posta em vida escura,
Sem marido, sem Reino e sem ventura.
Depois da batalha de Salado (1340), contra os reis de Marrocos e Granada, Camões conta o episódio de D. Inês de Castro, ao qual dedica um longo excerto, que abrange as estrofes 118 a 135, com algumas das passagens mais conhecidas dos Lusíadas.
118
(…)
O caso triste, e dino da memória
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que despois de ser morta foi Rainha.
119
«Tu só, tu, puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.
120
«Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saüdosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.
O Canto III acaba com a vingança de D. Pedro contra os assassinos de Inês de Castro e o reinado de D. Fernando, cuja morte, sem herdeiro varão, está na origem da crise de 1383-1385. A D. Fernando endereça um verso célebre d’Os Lusíadas, argumentando na estrofe 138, “Que um fraco Rei faz fraca a forte gente.”
CANTO IV
O Canto IV prossegue com a história da monarquia portuguesa, agora, após a morte de D. Fernando, com os reis da segunda dinastia, a de Avis.
Começa com a crise de 1383-1385 e a invasão castelhana (1-11), e dedica as estrofes 14 a 19 ao discurso com que Nun’Álvares entusiasma os portugueses a unirem-se em torno de D. João I na guerra de sucessão travada com Castela.
A descrição da batalha de Aljubarrota, incluindo os seus preparativos, ocupa vinte estrofes (24-44).
Canto IV, 38
«Vedes-me aqui, Rei vosso e companheiro,
Que entre as lanças e setas e os arneses
Dos inimigos corro e vou primeiro;
Pelejai, verdadeiros Portugueses!»
Isto disse o magnânimo guerreiro
E, sopesando a lança quatro vezes,
Com força tira; e deste único tiro
Muitos lançaram o último suspiro.
Em contrapartida, a conquista de Ceuta - onde se crê que Camões tenha estado desterrado, e onde terá combatido como soldado e perdido um olho - é arrumada em três estrofes (48-50).
Seguem-se os reinados de D. Duarte (51-53) e D. Afonso V (54-59), e com D. João II a história que Gama conta ao rei de Melinde começa a entrelaçar-se com a sua própria história. Camões, pela voz de Gama, lembra a expedição que D. João II enviou para estabelecer relações diplomáticas com o reino de Preste João, durante a qual Pero da Covilhã chegou por terra a Calecute, antes de se radicar definitivamente na Etiópia. As informações que Pero da Covilhã envia para o reino - esclarecendo que uma vez dobrado o (depois designado) Cabo das Tormentas, se consegue chegar a Sofala ou Melinde, e dali facilmente se alcança Calecute, já na Índia - fora, cruciais para Vasco da Gama se decidir a cruzar o Índico directamente para Calecute.
Canto IV, 60
(…)
O Príncipe que o Reino então governa
Foi Joane segundo e Rei trezeno.
Este, por haver fama sempiterna,
Mais do que tentar pode homem terreno
Tentou, que foi buscar da roxa Aurora
Os términos, que eu vou buscando agora.
61
«Manda seus mensageiros, que passaram
Espanha, França, Itália celebrada
(…)
62
«Polo mar alto Sículo navegam;
Vão-se às praias de Rodes arenosas;
(…)
Vão a Mênfis, e às terras que se regam
Das enchentes Nilóticas undosas;
Sobem à Etiópia, sobre Egipto,
Que de Cristo lá guarda o santo rito.
63
«Passam também as ondas Eritreias,
(…)
64
«Entram no Estreito Pérsico, (…)
Dali vão em demanda da água pura
(Que causa inda será de larga história)
Do Indo, pelas ondas do Oceano (…)
65
«Viram gentes incógnitas e estranhas
Da Índia, da Carmânia e Gedrosia,
(…)
Lá morreram, enfim, e lá ficaram,
Que à desejada pátria não tornaram.
Camões põe então o sucessor de D. João II, D. Manuel I, a ter um sonho profético (estrofes 67-75) em que os rios Indo e Ganges lhe falam e o incitam a conquistar a Índia.
Canto IV, 74
«Eu sou o ilustre Ganges, que na terra
Celeste tenho o berço verdadeiro;
Estoutro é o Indo, Rei que, nesta serra
Que vês, seu nascimento tem primeiro.
Custar-t'emos contudo dura guerra;
Mas, insistindo tu, por derradeiro,
Com não vistas vitórias, sem receio
A quantas gentes vês porás o freio.»
75
«Não disse mais o Rio ilustre e santo,
Mas ambos desparecem num momento.
Acorda Emanuel cum novo espanto
E grande alteração de pensamento.
(…)
E o D. Manuel confia então a Gama a missão de chegar à Índia por mar.
Canto IV, 77
(…)
Não sei por que razão, por que respeito,
Ou por que bom sinal que em mi se via,
Me põe o ínclito Rei nas mãos a chave
Deste cometimento grande e grave.
D. Manuel dirige-se a Gama e este responde-lhe (estrofes 78-80).
E é neste momento, com a preparação da armada e o embarque nas naus, em Belém (estrofes 81-93), que os Lusíadas retomam finalmente o início da viagem cujo relato é o centro da narrativa.
Canto IV, 93
«Nós outros, sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assi nos embarcarmos,
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
Da estrofe 94 ao final do canto IV, na estrofe 104, Camões simboliza os que receavam as consequências da aventura na figura e no longo discurso do Velho do Restelo.
Canto IV, 101
«Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe;
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia.
102
«Oh, maldito o primeiro que, no mundo,
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
CANTO V
Gama narra ao rei de Melinde o início da viagem que o levara àquele lugar.
Narra a partida de Liaboa e a viagem até Melinde.
Na estrofe 5 alude à Madeira
5
«Passámos a grande Ilha da Madeira,
Que do muito arvoredo assi se chama;
Das que nós povoámos a primeira,
Mais célebre por nome que por fama.
(…)
Na estrofe 6 diz:
«Deixámos de Massília a estéril costa,
Onde seu gado os Azenegues pastam,
Os Azenegues (Sanhagas) são berberes do Saara Ocidental e Camões estará a referir-se à zona do Sahel.
Na estrofe 7 a armada vê o Cabo Verde, no Senegal, e a embocadura do rio Senegal, junto à actual cidade senegalense de São Luís (Ndar).
Nas estrofe 8 e 9, Gama lembra que já tinha passado pelas Canárias, e que entra depois nas míticas Hespérides, que Camões identifica com o arquipélago de Cabo Verde, explicando que aportaram na ilha cabo-verdiana de Santiago.
8
Passadas tendo já as Canárias ilhas,
Que tiveram por nome Fortunadas,
Entrámos, navegando, polas filhas
Do velho Hespério, Hespéridas chamadas;
(…)
9
«Àquela ilha aportámos que tomou
O nome do guerreiro Santiago,
(…)
Há muitos nomes geográficos entre as estrofes 9 e 14. Gama refere a “província Jalofo” (alusão ao império Uolofe, que então governava parte do que é hoje o Senegal), a Gâmbia e as Dórcades (provável referência ao arquipélago dos Bijagós), e alude depois ao Congo e ao Rio Zaire, mas está a inventariar lugares da costa ocidental africana que os portugueses conheciam, mas que não terá visto na sua viagem, uma vez que, deixando Cabo Verde só voltou a aproximar-se da costa perto do Cabo Palmas, na actual Libéria, e aí virou a sul e fez uma grande volta de mar (como o Gama histórico de facto fez), cruzando a linha do equador e só reencontrando o continente africano junto à baía de Santa Helena, na costa ocidental da África do Sul. Di-lo na estrofe 10:
«Por aqui rodeando a larga parte
De África, que ficava ao Oriente
(A província Jalofo, que reparte
Por diversas nações a negra gente;
(…)
E na estrofe 12 explica que rumou a sul no Cabo Palmas:
12
«Sempre, enfim, pera o Austro a aguda proa,
No grandíssimo gólfão nos metemos,
Deixando a Serra aspérrima Lioa,
Co Cabo a quem das Palmas nome demos.
As estrofes 15 a 23 são dedicadas à descrição de dois fenómenos meteorológicos: o fogo de santelmo e uma tromba marítima, de que Camões dá uma notável - e ao que parece exacta - descrição, que se estende por várias estrofes. Seria interessante incluí-la na infografia. Não se sabe o local exacto, mas foi no mar alto, a oriente da costa africana, e já no hemisfério austral, uma vez que Camões (Gama), antes de descrever estes fenómenos, conta como os navegantes ficaram impressionados ao ver a constelação do Cruzeiro do Sul, que só é visível no céu meridional.
14
«Já descoberto tínhamos diante,
Lá no novo Hemispério, nova estrela,
Não vista de outra gente, que, ignorante,
Alguns tempos esteve incerta dela.
Vimos a parte menos rutilante
E, por falta de estrelas, menos bela,
Do Pólo fixo, onde inda se não sabe
Que outra terra comece ou mar acabe.
Desembarque na Baía de Santa Helena, na costa ocidental da África do Sul já a sul do trópico de Capricórnio (estrofes 24-26).
Quando aqui chegaram, as naus tinham navegado, ao longo de três meses, mais de 6000 km em mar aberto.
Há quem defenda que Gama foi ali parar por erro de cálculo, e que este esperava rodear o Cabo das Tormentas (depois da Boa Esperança) e ir encontrar terra subindo para norte.
Episódio de Fernão Veloso, que vai a terra tentar colher informações junto dos locais e é atacado. (estrofes 31-36). Momento de humor no diálogo entre Veloso, regressado a salvo à nau, e um seu companheiro.
35
«Disse então a Veloso um companheiro
(Começando-se todos a sorrir):
– «Oulá, Veloso amigo! Aquele outeiro
É milhor de decer que de subir!»
– «Si, é (responde o ousado aventureiro);
Mas, quando eu pera cá vi tantos vir
Daqueles cães, depressa um pouco vim,
Por me lembrar que estáveis cá sem mim.»
Deixam santa Helena e cinco dias mais tarde atingem o Cabo das Tormentas (hoje da Boa Esperança). Camões imagina um mitológico Gigante Adamastor que protege o cabo de quantos tentam passá-lo. É um episódio central dos Lusíadas com 30 estrofes (31-60). Além de ameaçar Gama e os companheiros, o Adamastor prevê futuros infortúnios dos navegadores portugueses (quer eram acontecimentos passados para o autor do século XVI).
50
– «Eu sou aquele oculto e grande Cabo
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,
Plínio e quantos passaram fui notório.
Aqui toda a Africana costa acabo
Neste meu nunca visto Promontório,
Que pera o Pólo Antártico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende.
Aportam mais uma vez numa baía onde Bartolomeu Dias estivera dez anos antes, em 1488, e a que chamara Aguada de S. Brás (hoje Mossel Bay), a leste do Cabo da Boa Esperança, mais ou menos a meio caminho entre a Cidade do Cabo e Porto Elizabeth (hoje Gqeberha).
61
(…)
Ao longo desta costa, começando
Já de cortar as ondas do Levante,
Por ela abaixo um pouco navegámos,
Onde segunda vez terra tomámos.
62
«A gente que esta terra possuía,
Posto que todos Etíopes eram,
Mais humana no trato parecia
Que os outros que tão mal nos receberam.
Com bailes e com festas de alegria
Pela praia arenosa a nós vieram,
As mulheres consigo e o manso gado
Que apascentavam, gordo e bem criado.
A viagem prossegue para Norte. Aportam na foz de um rio a que Gama chama dos Reis por ali terem chegado no dia dos Reis (6 Janeiro), e mais adiante erguem um padrão no rio a que Gama chama Rio dos Bons Sinais, resultante da confluência dos rios Cuácua e Lua-Lua, e que passa em Quelimane uns 20 km antes de desaguar no Índico.
Ou seja, Gama está de novo no Canal de Moçambique, onde a aventura começara no Canto I.
A tripulação é atacada pelo escorbuto (estrofes 80-83)
81
«E foi que, de doença crua e feia,
A mais que eu nunca vi, desampararam
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
Os ossos pera sempre sepultaram.
Quem haverá que, sem o ver, o creia,
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gingivas na boca, que crecia
A carne e juntamente apodrecia?
82
«Apodrecia cum fétido e bruto
Cheiro, que o ar vizinho inficionava.
Não tínhamos ali médico astuto,
Cirurgião sutil menos se achava;
Mas qualquer, neste ofício pouco instruto,
Pela carne já podre assi cortava
Como se fora morta, e bem convinha,
Pois que morto ficava quem a tinha.
Como já se sabia desde o Canto I, Gama é mal recebido em Moçambique e em Mombaça (estrofe 84) e é bem acolhido em Melinde (estrofes 85-100) , onde termina a sua narração ao Rei de Melinde, voltando a acção ao presente. O rei de Melinde admira a epopeia portuguesa, e Gama censura os seus contemporâneos por não a cantarem devidamente, como o tinham feito os gregos e os romanos (modelos da épica de Camões). Termina aqui o Canto V.
CANTO VI
Partida de Melinde
(1-5)
Rei de Melinde organiza festa de despedida aos portugueses, que partem com um novo piloto, desta vez de confiança.
Enquanto Gama retoma a viagem para a Índia, Baco desce ao palácio de Neptuno, no fundo mar, e insta-o a convocar os deuses marinhos. Novo consílio dos deuses, agora no mar, que se prolonga até à estrofe 34. No seu discurso, Baco procura convencer Neptuno, cujos mares estão a ser devassados pelos portugueses, a castigar-lhes a ousadia,
29
(…)
Vistes aquela insana fantasia
De tentarem o mar com vela e remo;
Vistes, e ainda vemos cada dia,
Soberbas e insolências tais, que temo
Que do Mar e do Céu, em poucos anos,
Venham Deuses a ser, e nós, humanos.
O deus dos ventos, Eolo, solta os ventos contra os portugueses
(35-57)
Camões opta por contar imediatamente a seguir o que se passava nas naus enquanto decorria o consílio (e não depois de Eolo soltar os ventos). Ainda com ventos sossegados, contam-se histórias para matar o tempo e o já referido Veloso conta o episódio dos Doze de Inglaterra, cuja narração se estende da estrofe 43 à 69. É um episódio semi-lendário que terá ocorrido no reinado de D. João I, e no qual 12 cavaleiros portugueses (na verdade 13, cuja existência está documentada) teriam aceitado defender a honra de doze damas inglesas posta em causa por outros tantos cavaleiros ingleses.
Com a intervenção de Eolo, desencadeia-se a tempestade (estrofes 70 - 79). Gama suplica aos céus que intercedam pelos portugueses
82
Porque somos de Ti desamparados,
Se este nosso trabalho não te ofende,
Mas antes teu serviço só pretende?
Vénus intervém a favor dos portugueses e enfeitiça os ventos para que ajudem os navegadores.
Chegada a Calecute, na Índia
(92-94)
Prossegue a viagem e, ao romper da manhã, as naus avistam Calecute e Gama ajoelha-se e agradece a Deus.
92
(…)
Disse alegre o piloto Melindano:
– «Terra é de Calecu, se não me engano.
93
«Esta é, por certo, a terra que buscais
Da verdadeira Índia, que aparece;
E se do mundo mais não desejais,
Vosso trabalho longo aqui fenece.»
Sofrer aqui não pôde o Gama mais,
De ledo em ver que a terra se conhece;
Os giolhos no chão, as mãos ao Céu,
A mercê grande a Deus agradeceu.
CANTO VII
Chegada da armada à barra de Calecute (estrofes 1 e 16), na Índia, o porto mais importante da costa do Malabar, no sudoeste do subcontinente indiano.
1
(…)
Já sois chegados, já tendes diante
A terra de riquezas abundante!
16
Tanto que à nova terra se chegaram,
Leves embarcações de pescadores
Acharam, que o caminho lhe mostraram
De Calecu, onde eram moradores.
Pera lá logo as proas se inclinaram,
Porque esta era a cidade, das milhores
Do Malabar, milhor, onde vivia
O Rei que a terra toda possuía.
Descrição da Índia
(estrofes 17-22)
Gama manda um mensageiro a terra, que encontra um maometano de origens berberes que fala castelhano, de seu nome Monçaide, que o hospedou em sua casa e foi depois com o português a bordo da nau do Gama.
Monçaide espanta-se de descobrir ali portugueses, vizinhos da sua Berbéria natal (estrofe 30)
30
Ele começa: – «Ó gente, que a Natura
Vizinha fez de meu paterno ninho,
Que destino tão grande ou que ventura
Vos trouxe a cometerdes tal caminho?
Não é sem causa, não, oculta e escura,
Vir do longinco Tejo e ignoto Minho,
Por mares nunca doutro lenho arados,
A Reinos tão remotos e apartados.
Monçaide descreve o Malabar (estrofes 32-41)
32
«Esta província, cujo porto agora
Tomado tendes, Malabar se chama;
Gama é autorizado a desembarcar e é esperado pelo governador de Calecute, cargo ali designado como Catual.
Conversam enquanto se dirigem ao palácio do soberano de Calecute, o samorim (estrofes 42-56)
Gama é recebido pelo Samorim e propõe-lhe amizade e comércio com Portugal. O Samorim aloja Gama e a sua embaixada no palácio. (estrofes 59-66)
O Catual vai ver a nau capitã, São Gabriel, festivamente decorada com bandeiras mostrando figuras da história de Portugal, e é recebido por Paulo da Gama, irmão mais velho de Vasco da Gama, que o substitui durante a sua ausência em terra. O Catual pede a Paulo da Gama que lhe descreva as bandeiras e este começa a fazê-lo, mas é interrompido pelo autor do poema, que termina o Canto VII invocando o favor das ninfas do Tejo e do Mondego e queixando-se da ingratidão dos seus contemporâneos (estrofes 78-87)
81
E ainda, Ninfas minhas, não bastava
Que tamanhas misérias me cercassem,
Senão que aqueles que eu cantando andava
Tal prémio de meus versos me tornassem:
A troco dos descansos que esperava,
Das capelas de louro que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventaram,
Com que em tão duro estado me deitaram.
CANTO VIII
Paulo da Gama descreve as bandeiras ao Catual, o que ocupa as primeiras 43 estrofes deste canto. A história que Gama contara ao rei de Melinde é agora recontada por Paulo da Gama ao catual, mas a partir das figuras individuais retratadas nas bandeiras, de Luso, fundador mítico, a Ulisses, Viriato, Sertório, Conde D, Henriques, Afonso Henriques, até aos infantes D. Pedro e D. Henrique, filhos de D. João I
2
(…)
Este que vês, é Luso, donde a Fama
O nosso Reino «Lusitânia» chama.
5
«Ulisses é, o que faz a santa casa
À Deusa que lhe dá língua facunda;
Que se lá na Ásia Tróia insigne abrasa,
Cá na Europa Lisboa ingente funda.»
(…)
37
«Olha cá dous Infantes, Pedro e Henrique,
Progénie generosa de Joane;
(…)
O Catual regressa a casa
(estrofe 44)
Os arúspices do Samorim (adivinhos especializados na inspecção das entranhas de animais sacrificados), pressagiam que os portugueses só trarão desgraças a Calecute.
Estrofes 45-59:
Baco intervém uma última vez e entra nos sonhos de um sacerdote muçulmano, convencendo-o de que os portugueses tramam a destruição da numerosa comunidade maometana de Calecute. O próprio Catual é subornado para agir contra os portugueses. O Samorim convence-se de que Gama tem más intenções, mas ao mesmo tempo cobiça as riquezas que um acordo com Portugal lhe poderia trazer.
O Samorim manda chamar Gama
(estrofes 60-77)
Diz-lhe que sabe que Gama é um aventureiro, e que se fosse, como diz, embaixador do rei de Portugal, lhe traria grandes presentes.
Gama já suspeitava de que corriam estes rumores, que desmente, e persuade o Samorim de que lhe está a dizer a verdade. O soberano de Calecute pede-lhe então que mande vir umas fazendas para trocar pelas especiarias que leva. Gama, desejoso de partir, uma vez que as especiarias seriam prova bastante de que alcançara o seu destino, escreve a seu irmão Paulo para enviar as fazendas, o que este faz, e o Samorim autoriza Gama a partir.
O Catual prende Vasco da Gama
(estrofes 79-95)
Gama pede ao Catual um batel para regressar à nau, mas este, subornado pelos maometanos, atrasa-lhe a partida e quer que Gama mande aproximar as naus de terra, com a intenção de as destruir. Gama quer partir e o catual também receia que o Samorim descubra as suas manigâncias, de modo que a coisa resolve-se com Gama a comprar a sua liberdade com as mercadorias que trazia a bordo.
92
Diz-lhe que mande vir toda a fazenda
Vendíbil que trazia, pera a terra,
Pera que, devagar, se troque e venda;
Que, quem não quer comércio, busca guerra.
Posto que os maus propósitos entenda
O Gama, que o danado peito encerra
Consente, porque sabe por verdade
Que compra co a fazenda a liberdade.
O canto VIII acaba com uma reflexão de Camões sobre os efeitos da cobiça do dinheiro.
96
(…)
Veja agora o juízo curioso
Quanto no rico, assi como no pobre,
Pode o vil interesse e sede imiga
Do dinheiro, que a tudo nos obriga.
CANTO IX
Cilada em Calecute
(estrofes 1-12)
Para segurar o Gama em Calecute, os maometanos convencem os mercadores a não lhes comprar as mercadorias, enquanto aguardam a chegada de uma armada que virá de Meca para destruir as suas naus.
Mas o muçulmano Monçaide, inspirado pela Divina Providência, avisa o Gama da cilada que se preparava. Gama ordena aos dois feitores que tinha em terra para venda das mercadorias a regressarem às naus, mas estes são presos pelo Samorim. O Gama prende alguns mercadores que tinham ido às naus e há uma troca de reféns.
Partida de Calecute e conversão de Monçaide
A armada parte levando especiarias que fica a dever à colaboração de Monçaide, que se converte ao cristianismo. Leva também alguns malabares que tinham sido enviados a entregar os reféns portugueses e que Gama tomou pela força.
14
Leva alguns Malabares, que tomou
Per força, dos que o Samorim mandara
Quando os presos feitores lhe tornou;
Leva pimenta ardente, que comprara;
A seca flor de Banda não ficou;
A noz e o negro cravo, que faz clara
A nova ilha Maluco, co a canela
Com que Ceilão é rica, ilustre e bela.
15
Isto tudo lhe houvera a diligência
De Monçaide fiel, que também leva,
Que, inspirado de Angélica influência,
Quer no livro de Cristo que se escreva.
Oh, ditoso Africano, que a demência
Divina assi tirou de escura treva,
E tão longe da pátria achou maneira
Pera subir à pátria verdadeira!
Vénus prepara a Ilha dos Amores
(estrofes 18-50)
Vénus quer que os navegantes sejam recebidos pelas ninfas dos mares numa ilha encantada, para descansarem das fadigas entre folguedos e amores. E para a auxiliar chama o seu filho Cupido.
19
(…)
Já trazia de longe no sentido,
Pera primo de quanto mal passaram,
Buscar-lhe algum deleite, algum descanso,
No Reino de cristal, líquido e manso;
23
Seu filho vai buscar, porque só nele
Tem todo seu poder, fero Cupido,
Que, assi como naquela empresa antiga
A ajudou já, nestoutra a ajude e siga.
40 [Vénus fala a Cupido]
«E pera isso queria que, feridas
As filhas de Nereu no ponto fundo,
D' amor dos Lusitanos incendidas
Que vêm de descobrir o novo mundo,
Todas nua ilha juntas e subidas,
(Ilha que nas entranhas do profundo
Oceano terei aparelhada,
De dões de Flora e Zéfiro adornada);
41
«Ali, com mil refrescos e manjares,
Com vinhos odoríferos e rosas,
Em cristalinos paços singulares,
Fermosos leitos, e elas mais fermosas;
Enfim, com mil deleites não vulgares,
Os esperem as Ninfas amorosas,
D' amor feridas, pera lhe entregarem
Quanto delas os olhos cobiçarem.
49
(…)
Pera que tu recíproco respondas,
Ardente Amor, à flama feminina,
É forçado que a pudicícia honesta
Faça quanto lhe Vénus amoesta.
50
Já todo o belo coro se aparelha
Das Nereidas (…)
Pera a ilha a que Vénus as guiava.
Ali a fermosa Deusa lhe aconselha
O que ela fez mil vezes, quando amava;
Elas, que vão do doce amor vencidas,
Estão a seu conselho oferecidas.
A armada avista a ilha que Vénus trouxera pelas ondas, e nela aporta. Descrição da ilha (estrofes 51-63)
54
Três fermosos outeiros se mostravam,
Erguidos com soberba graciosa,
Que de gramíneo esmalte se adornavam,
Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa.
Claras fontes e límpidas manavam
Do cume, que a verdura tem viçosa;
(…)
Desembarque na Ilha dos Amores
Vêem-se as ninfas e Veloso incita os portugueses a perseguir-las.
64
Nesta frescura tal desembarcavam
Já das naus os segundos Argonautas,
Onde pela floresta se deixavam
Andar as belas Deusas, como incautas.
Alguas, doces cítaras tocavam;
Alguas, harpas e sonoras frautas;
Outras, cos arcos de ouro, se fingiam
Seguir os animais, que não seguiam.
69
Dá Veloso, espantado, um grande grito:
– «Senhores, caça estranha (disse) é esta!
70
«Sigamos estas Deusas e vejamos
Se fantásticas são, se verdadeiras.»
Isto dito, veloces mais que gamos,
Se lançam a correr pelas ribeiras.
Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos,
Mas, mais industriosas que ligeiras,
Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando,
Se deixam ir dos galgos alcançando.
72
Outros, por outra parte, vão topar
Com as Deusas despidas, que se lavam;
Elas começam súbito a gritar,
Como que assalto tal não esperavam;
Uas, fingindo menos estimar
A vergonha que a força, se lançavam
Nuas por entre o mato, aos olhos dando
O que às mãos cobiçosas vão negando;
Episódio do soldado Leonardo, que se queixa dos seus amores enquanto persegue, e finalmente alcança a ninfa Efire. (estrofes 75-83)
82
Já não fugia a bela Ninfa tanto,
Por se dar cara ao triste que a seguia,
Como por ir ouvindo o doce canto,
As namoradas mágoas que dizia.
Volvendo o rosto, já sereno e santo,
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.
83
Oh, que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.
A mais bela das ninfas, Tétis, leva Gama para o seu palácio, no alto de um monte, onde se dedicam a jogos amorosos e onde Tétis profetiza os feitos que os portugueses irão realizar. (estrofes 85-88)
86
(…)
Pera lhe descobrir da unida esfera
Da terra imensa e mar não navegado
Os segredos, por alta profecia,
O que esta sua nação só merecia,
87
Tomando-o pela mão, o leva e guia
Pera o cume dum monte alto e divino,
No qual ua rica fábrica se erguia,
De cristal toda e de ouro puro e fino.
A maior parte aqui passam do dia,
Em doces jogos e em prazer contino.
Ela nos paços logra seus amores,
As outras pelas sombras, entre as flores.
O canto IX termina com a explicação da alegoria da Ilha dos Amores como recompensa que espera os heróis que atingem a glória sem se deixarem tentar pela cobiça, a ambição, a tirania. (estrofes 89-95)
91
Não eram senão prémios que reparte,
Por feitos imortais e soberanos,
O mundo cos varões que esforço e arte
Divinos os fizeram, sendo humanos.
(…)
93
E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente;
Porque essas honras vãs, esse ouro puro,
Verdadeiro valor não dão à gente:
Milhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.
95
(…)
Que quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis entre os Heróis esclarecidos
E nesta «Ilha de Vénus» recebidos.
CANTO X
Tétis e as ninfas dão um banquete a Gama e aos navegadores (estrofes 1-4)
Uma ninfa começa a profetizar os futuros feitos dos portugueses no Oriente, mas é interrompida pelo poeta, que invoca Calíope (musa da poesia épica na mitologia grega) para lhe dar força para terminar o poema, apesar do cansaço e dos desgostos em que se afunda. (estrofes 5-9)
9
Vão os anos decendo, e já do Estio
Há pouco que passar até o Outono;
A Fortuna me faz o engenho frio,
Do qual já não me jacto nem me abono;
Os desgostos me vão levando ao rio
Do negro esquecimento e eterno sono.
Mas tu me dá que cumpra, ó grão rainha
Das Musas, co que quero à nação minha!
A musa prossegue a sua profecia, cantando os feitos do futuros governadores portugueses na Índia. Nas estrofes 10 a 25 presta homenagem ao cosmógrafo, navegador e militar Duarte Pacheco Pereira, autor do Esmeraldo de Situ Orbis (1505), e censurando a ingratidão de que foi vítima, aludindo à sua prisão por ordem de D. João III. Camões chama-lhe “um Pacheco fortíssimo”, logo no Canto I, e neste canto apelida-o de Grão Pacheco e de “Aquiles lusitano”.
A ninfa continua a enumerar futuros governadores da Índia e outras figuras destacadas da presença portuguesa no Oriente (estrofes 26-44)
A ninfa interrompe o elogio ao primeiro governador português na Índia, Afonso de Albuquerque (antes dele houvera dois vice-reis), para censurar a crueldade com que este fizera enforcar um soldado por copular com uma escrava nos seus aposentos, e argumenta que a culpa deste é atenuada pelo facto de a parceira de cópula ser uma “escrava vil, lasciva e escura” (estrofes 45-49)
A ninfa prossegue o inventário dos governadores futuros, de Lopo Soares de Albergaria a D. João de Castro (estrofes 50-73)
Tétis conduz Gama a um campo no cimo de um monte, onde lhe mostra, no ar, a máquina do Mundo, que permite ver toda a Terra a partir de um mesmo ponto e adivinhar eventos futuros. Este é um episódio central que tem de estar na infografia. (Estrofes 74-107)
79
Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa: – «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas.
80
«Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfícia tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.
90
«Em todos estes orbes, diferente
Curso verás, nuns grave e noutros leve;
Ora fogem do Centro longamente,
Ora da Terra estão caminho breve,
Bem como quis o Padre omnipotente,
Que o fogo fez e o ar, o vento e neve,
Os quais verás que jazem mais a dentro
E tem co Mar a Terra por seu centro.
107
«Vês corre a costa célebre Indiana
Pera o Sul, até o Cabo Comori,
Já chamado Cori, que Taprobana
(Que ora é Ceilão) defronte tem de si.
Por este mar a gente Lusitana,
Que com armas virá despois de ti,
Terá vitórias, terras e cidades,
Nas quais hão-de viver muitas idades.
Tétis interrompe a descrição geográfica a partir do universo miniatural da máquina do mundo e conta os milagres e o martírio do apóstolo S. Tomé na Índia.
(estrofes 108-119).
Tétis prossegue a narração geográfica (estrofes 120-126)
Quando chega ao Camboja, Tétis descreve o naufrágio que Camões sofreu na foz do rio Mecom, do qual se teria salvo a nado, salvando também os Lusíadas.
127
«Vês, passa por Camboja Mecom rio,
(…)
128
«Este receberá, plácido e brando,
No seu regaço os Cantos que molhados
Vêm do naufrágio triste e miserando,
Dos procelosos baixos escapados
(…)
Tétis prossegue a narração (estrofes 129-141)
A armada despede-se de Tétis e regressa a Portugal
(estrofes 142-144)
143
«Podeis-vos embarcar, que tendes vento
E mar tranquilo, pera a pátria amada.»
Assi lhe disse; e logo movimento
Fazem da Ilha alegre e namorada.
(…)
144
Assi foram cortando o mar sereno,
Com vento sempre manso e nunca irado,
Até que houveram vista do terreno
Em que naceram, sempre desejado.
Entraram pela foz do Tejo ameno,
E à sua pátria e Rei temido e amado
O prémio e glória dão por que mandou,
E com títulos novos se ilustrou.
O Canto X (e os Lusíadas) termia com 12 estrofes em que Camões lamenta a indiferença de Portugal pelas letras, e dá conslehos ao joven rei D. Sebastião, a quem profetiza triunfos.
145
Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dua austera, apagada e vil tristeza.