Contas por saldar? As reparações de guerra alemãs e a Grécia

Foto
Em cima: o monumento ao soldado desconhecido em frente do Parlamento, em Atenas. Em baixo, da esquerda para a direita: cartaz de propaganda dos aliados de apoio à resistência grega; a bandeira nazi na Acrópole e uma força blindada numa cidade grega

Por iniciativa de alguns políticos helénicos, a memória da II Guerra e das reparações foi convocada para o debate em torno crise grega. Há quem reclame um acerto de contas com a Alemanha. Qual a base histórica de tais reivindicações?

Nos últimos meses, a escalada de recriminações que tem acompanhado a discussão sobre os planos de resgate da Grécia conheceu novos desenvolvimentos. Depois de um ministro do Governo de Papandreou, Theodoros Pangalos, ter recordado, em Fevereiro de 2010, que a Alemanha nunca havia compensado devidamente a Grécia pelos crimes e destruições resultantes da ocupação nazi entre 1941 e 1944, um grupo de deputados helénicos apresentou há algumas semanas uma proposta de discussão da questão das reparações de guerra que poderão ainda ser imputadas a Berlim.

Essas alegações remetem, desde logo, para os efeitos brutais da intervenção alemã na Grécia, iniciada em Abril de 1941 com o propósito de evitar que a campanha desencadeada uns meses antes por Mussolini redundasse num desastre para o Eixo. Embora essa intervenção não estivesse nos planos de Hitler (na altura concentrado na preparação do assalto à URSS), e de este ter declarado publicamente a sua admiração pela resistência oferecida pelos gregos, nem por isso a ocupação alemã foi exactamente branda. Bem pelo contrário. País rural e atrasado, a Grécia não beneficiou da exploração menos abertamente "colonial" que os nazis aplicaram aos países industrializados da Europa Ocidental, vistos como fundamentais para alimentar o esforço de guerra alemão (e mais bem colocados na hierarquia racial nazi do que os europeus dos Balcãs).

Uma factura pesada

Uma vez que desde a guerra franco--prussiana se tinha tornado habitual impor aos Estados vencidos os custos da ocupação, as autoridades alemãs rapidamente confrontaram o governo colaboracionista de Atenas com uma pesada factura. Para satisfazer essa imposição, os gregos tiveram de recorrer a um expediente familiar: a emissão monetária pelo Banco Central, a qual veio a estar na origem de um colossal surto hiperinflacionário. A isto somou-se ainda a exigência de um empréstimo forçado à Alemanha no valor de 476 milhões de marcos, isento de juros. O impacto destas medidas no funcionamento da economia e do Estado não será difícil de adivinhar. No fim da guerra, as receitas fiscais da Grécia cobriam apenas 6% das despesas governamentais, como nota Mark Mazower, um especialista na história da ocupação nazi da Grécia (Hitler"s Empire, 2008).

Mas as coisas não se ficaram por aqui. Uma das premissas da política de guerra do III Reich era a de poupar o mais possível a população alemã aos sacrifícios inerentes ao conflito. Como tal, as autoridades nazis nos países ocupados tinham instruções claras para proceder ao confisco de bens alimentares e de outras matérias-primas sempre que tal se revelasse indispensável para prevenir situações de carência na Alemanha. A Grécia não escapou a essas exigências e, nos primeiros meses de ocupação, produções alimentares locais no valor de quatro milhões de marcos foram requisitadas por Berlim. Para um país que estava longe de ser auto--suficiente em termos alimentares, e que se encontrava sujeito a um bloqueio naval britânico, esta situação não tardou a evoluir para um desastre humanitário. No Inverno de 1941-42, a fome instalou-se - e os nazis foram completamente insensíveis às privações dos gregos comuns. Estimativas conservadoras apontam para 250 mil vítimas directas e indirectas dessa catástrofe, apenas mitigada pela chegada de alguma assistência através da Cruz Vermelha.

O impacto da ocupação do Eixo (os alemães partilharam a administração do país com os seus aliados italianos e búlgaros) revestiu-se ainda de outros aspectos traumáticos. Como resposta às acções do movimento de resistência helénico entretanto constituído, as autoridades militares alemãs não hesitaram em ordenar retaliações "exemplares" sobre populações civis suspeitas de dar apoio aos insurrectos. Unidades das Waffen-SS levaram a cabo dezenas de chacinas contra aldeias e bairros, nalguns casos não poupando crianças, mulheres e idosos. O saldo das atrocidades cometidas pelas forças do Eixo terá rondado os 70 mil mortos.

Com uma persistência metódica, equipas de "especialistas" das SS entregaram-se à tarefa de identificar e reunir a maior parte dos membros da comunidade judaica grega - um núcleo populacional cujas raízes remontavam à Antiguidade e, mais recentemente, à chegada de um grande número de judeus sefarditas expulsos de Espanha no século XV. Calcula-se que cerca de 87% dessa comunidade (aproximadamente 67 mil pessoas, sendo 46 mil oriundas de Salónica) tenha perecido nos campos de extermínio de Auschwitz, na sequência de uma deportação organizada em 1943 pelo Obersturmbannführer Adolf Eichmann. Os sobreviventes desse crime testemunharam depois a atitude solidária e corajosa de muitos dos seus compatriotas gregos, que se dispuseram a enfrentar riscos consideráveis para dar abrigo a crianças e mulheres judias.

Com o seu estatuto de nação aliada, e vítima das depredações do Eixo, a Grécia constituía um dos países em posição de reclamar a sua quota--parte das reparações que viessem a ser fixadas no termo do conflito. Em 1945, o sentimento geral estava longe de ser favorável a uma atitude de magnanimidade para com os vencidos. A ideia de que uma reedição da "paz cartaginense" imposta à Alemanha e seus aliados no final da Guerra de 14-18 poderia ser contraproducente para a estabilidade do Velho Continente não tinha muitos adeptos. O consenso geral ia muito mais no sentido de obrigar os vencidos a expiar e a pagar pelos seus crimes. Do lado dos soviéticos, a questão quase nem se punha - à medida que o Exército Vermelho avançava, a retribuição ia sendo cobrada aos alemães e aos seus colaboradores, sempre de forma impiedosa. Entre as potências ocidentais, a intenção genérica era também a de tratar a Alemanha como "uma nação inimiga derrotada". Elementos da Administração Roosevelt desenharam planos que davam prioridade à ideia de extirpar as raízes do nazismo, o que pressuponha um esforço consistente para desmilitarizar, desindustrializar e reeducar a sociedade alemã. Nos meses imediatamente posteriores à capitulação alemã, os líderes da coligação aliada não foram capazes de chegar a acordo quanto ao montante exacto das reparações que a Alemanha deveria pagar, mas os objectivos genéricos fixados em Ialta e Potdsam mantiveram-se válidos. A Alemanha foi sujeita a um regime de ocupação militar quadripartida (EUA, Grã-Bretanha, França e URSS) e as potências aliadas foram imputando os custos dessa ocupação aos alemães, através do uso de mão-de-obra forçada (prisioneiros de guerra alemães), apropriação de patentes industriais e confisco de maquinaria e unidades fabris.

A mudança dos aliados

Mas as consequências de uma abordagem demasiado punitiva foram ficando claras, pelo menos aos olhos dos aliados ocidentais. "Pastorilizada" e enfraquecida, a Alemanha tornar-se-ia um sorvedouro de recursos, fazendo da ocupação um compromisso ruinoso. Por outro lado, figuras como o general Lucius Clay, o procônsul americano, não tardaram a reparar que, para pôr a economia e os serviços públicos a funcionar, dificilmente se poderia ser muito esquisito com o tipo de pessoas que se empregavam, tão extenso fora o envolvimento das elites alemãs com o regime de Hitler. Em suma, o objectivo de edificar uma Alemanha estável, democrática e economicamente viável era incompatível com alguns dos desígnios mais draconianos esboçados no fim da guerra. Esta reorientação da postura americana ao longo de 1946 teve vários efeitos. Os mais conhecidos foram o empenho dos aliados ocidentais em construir, primeiro, o embrião de um futuro Estado alemão que abrangesse os seus três sectores de ocupação (por sinal, os mais industrializados); e, em segundo lugar, a ancoragem desse Estado nas instituições fundadas com o propósito de garantir a prosperidade e segurança da Europa Ocidental.

Nada disto seria possível sem um Estado alemão democrático e, sobretudo, estável - pelo que a muitos pareceu indispensável evitar que uma questão tão melindrosa como as reparações voltasse a envenenar a política alemã, como sucedera no período entre-guerras. Isso explica, em boa medida, a atitude lenitiva adoptada pelos norte-americanos face aos termos das compensações passíveis de serem exigidas à Alemanha. Na Conferência de Paris de 1946, a Grécia viu ser-lhe atribuída uma percentagem de 4,5% de reparações materiais, e 2,7 % em outras modalidades, o que equivaleria a um total de cerca de 105 milhões de marcos - mas esse pagamento acabaria por nunca se materializar devido à oposição dos norte-americanos. O tratado final que resultaria dessa conferência, em 1947, circunscreveu-se às reparações imputadas aos aliados da Alemanha, cabendo à Grécia uma compensação da Itália (105 milhões de dólares) e da Bulgária (45 milhões). Em 1953, o Acordo das Dívidas de Londres, que a URSS não subscreveu, adiava para o momento em que fosse possível assinar um tratado de paz envolvendo a Alemanha e todas as nações aliadas, o pagamento de eventuais reparações. Para restaurar a reputação financeira da Alemanha, o Governo de Adenauer aceitou pagar as reparações de Versalhes ainda em falta, bem como as dívidas (e juros) contraídas pela República de Weimar entre 1919 e 1933, o que perfazia um montante de cerca de 15 biliões de marcos (a dívida foi finalmente saldada em 2010). Usando todo o seu talento político, Adenauer conseguiu ainda que compensações devidas a "vítimas de guerra" fossem definidas de maneira a que os seus recipientes fossem, basicamente, cidadãos alemães. E as reparações a pagar a Israel - impopulares entre o eleitorado conservador alemão - foram objecto de complicadas negociações com os representantes do Estado judaico.

Às vítimas da ocupação nazi na Grécia, o Governo Federal alemão aceitou pagar 115 milhões de marcos em 1960, na condição de que não seriam depois apresentadas reclamações individuais. De fora ficava, por exemplo, o empréstimo de 476 milhões de marcos arrancado aos gregos em 1941, que em valores actuais, e acrescidos juros de 3% ao ano, equivaleria a cerca de 70 biliões de euros. Várias instâncias internacionais, como o Tribunal de Justiça de Haia, têm, por outro lado, recusado dar provimento aos pedidos de compensação reclamados, a título individual, por sobreviventes de várias atrocidades nazis na Grécia.

Apesar de nas últimas décadas alguns políticos gregos terem tentado marcar pontos com a questão das reparações alemãs, a verdade é que até à crise das dívidas soberanas isso não constituiu um tema demasiado espinhoso na agenda entre os dois Estados. De certa forma, a pujança económica alemã foi um dos factores determinantes para o êxito do projecto europeu, de que os gregos foram óbvios beneficiários até há pouco tempo. E embora a historiografia tenda hoje a desvalorizar o impacto pernicioso das reparações na economia alemã do pós-I Guerra Mundial, parece indiscutível que o impacto político, esse, foi explosivo - algo que a memória europeia do período entre- -guerras tem bem presente. E, tragicamente, essa é uma lição que a actual classe dirigente alemã parece estar a negligenciar, ao pretender impor programas de austeridade tão obviamente punitivos aos "maus alunos" da Eurolândia. Historiador

Sugerir correcção