Foi graças a esse programa que conseguimos cruzar informações entre os dados mais
recentes do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e os dados das
unidades funcionais das administrações regionais de Saúde do Norte e de Lisboa e
Vale do Tejo. Em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública e o Centro de
Estudos em Arquitectura e Urbanismo da Universidade do Porto foi possível tratar
estatisticamente os dados e encontrar correlações alarmantes entre condições de
habitabilidade e rendimento e condições de saúde e de doença. Os mapas juntam
informações que estão presentes na vida das pessoas, mas não necessariamente nos
discos rígidos dos organismos públicos que tratam delas.
Os níveis de análise são múltiplos. Não devemos falar de causa-efeito, do género
“quanto mais pobre mais doente”, mas também não assumimos os resultados como
coincidências. A correlação mais preocupante foi encontrada entre taxas de
analfabetismo, risco de pobreza e baixa escolaridade: quanto mais frágil for o
tecido socioeconómico, mais casos há de doenças como a diabetes, a insuficiência
cardíaca, a doença obstrutiva coronária ou riscos de acidente vascular cerebral
(AVC). E o contrário também é certo. As zonas com maiores rendimentos (e rendas) são
onde se verifica menor incidência destas patologias.
Ao PÚBLICO a directora da Escola Nacional de Saúde Pública, Carla Nunes, avisava em
Outubro que a pandemia estava “a bater mais nas pessoas mais frágeis”. E é pela
coesão social e pelo combate à pobreza que todas as políticas têm de começar — a
política de habitação também.
O Bairros Saudáveis é um pequeno programa com uma dotação orçamental de dez milhões
de euros, que terá o mérito de demonstrar que as políticas públicas podem estimular
a participação comunitária e confiar na capacidade de as populações interpretarem as
suas necessidades e encontrarem soluções para as colmatar, tendo algum apoio
financeiro para o efeito. Recebeu 774 candidaturas, e os territórios de baixa
densidade, onde vive 20% da população portuguesa, foram responsáveis por 30% das
candidaturas.
O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) propõe um investimento de 250 milhões de
euros para a “Eliminação das Bolsas de Pobreza em Áreas Metropolitanas” e financiar
operações integradas em comunidades desfavorecidas nas áreas metropolitanas de
Lisboa e Porto. O PRR está a ignorar que as fragilidades do tecido social vão muito
para além destas áreas metropolitanas. Se se consultar o mapa com a localização das
candidaturas ao Programa Bairros Saudáveis, é possível verificar que os territórios
particularmente vulneráveis se situam em todo o Portugal continental.
“O programa não conseguirá resolver as desigualdades sociais e a pobreza, porque
isso depende de macropolíticas e de políticas transformativas ao nível social. No
entanto, constitui um estímulo para que as populações mais vulneráveis, frente às
suas realidades, sejam capazes de encontrar, em conjunto, formas de as melhorar,
alavancando recursos e fortalecendo os laços de solidariedade e a coesão social”,
diz Isabel Loureiro. É, pois, um exemplo, limitado e experimental, mas que já
revelou capacidade de mobilizar a energia das pessoas e comunidades a quem se
dirige. Através de iniciativas como esta, as políticas públicas deixam de encarar os
destinatários como “públicos-alvo”, mas sim como sujeitos e parceiros das respostas
a construir. Isto implica uma enorme mudança de paradigma na relação entre os
cidadãos e a administração central, regional e local.
Olhar para tudo, mas de perto
Se, para Isabel Loureiro, saúde não é apenas falta de doença, a alimentação condigna
não é apenas falta de fome. E, como acontece com as dificuldades de acesso à
habitação, as carências não se limitam, necessariamente, às situações de pobreza e
precariedade extrema – mas têm aí um impacto especialmente severo. Sara Rocha,
membro da Realimentar –
Rede Portuguesa pela Soberania e Segurança Alimentar e
Nutricional, destaca que “a pobreza alimentar é uma dimensão específica da pobreza”.
“É a dificuldade de adquirir e consumir alimentos em quantidade suficiente e de
qualidade adequada. Factores como o aumento do custo de vida e as despesas com
habitação, electricidade, a par com salários baixos e precariedade laboral, têm um
impacto muito significativo na capacidade de aceder a uma alimentação adequada”,
enumera.
Sara Rocha sublinha a dimensão sistémica do problema, frisando que as condições de
vida de todos, especialmente dos grupos vulneráveis, são resultado de uma construção
social mais alargada. Questionada sobre os problemas mais prementes, refere três.
Primeiro, a falta de dados que impossibilita um debate informado e substantivo em
torno das carências, percebendo quem fica de fora. Segundo, a dificuldade de agir
dentro de um quadro estável capaz de sobreviver aos ciclos políticos e de guiar a
acção a nível local — “É fundamental haver uma lei de bases da Alimentação”, alerta.
Terceiro, a dificuldade de construir um espaço em que quem está no terreno, que
conhece bem as limitações das famílias, possa expô-las e participar na melhoria da
situação.
Estas preocupações não andam muito longe das de Helena Amaro, advogada, actualmente
a fazer um doutoramento na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto nas
áreas de Forma Urbana, Padrões de Mobilidade e Mobilidade Social. A investigadora,
que também alerta para a necessidade de uma mudança de paradigma, não poupa críticas
ao “maior investimento público em habitação” inscrito no PRR de que falámos no
terceiro trabalho da série — 1251 milhões de euros em subvenções para
financiar a
solução para 26 mil famílias em carência habitacional e 186 milhões de euros para
criar a Bolsa Nacional de Alojamento urgente e temporário. “É partir de uma premissa
errada — recuperar o ponto onde estávamos —, em vez de assumir uma ruptura e mudar o
que estava mal”, afirma.
Helena Amaro tem desenvolvido muitos estudos em torno da relação entre mobilidade e
rendimento. “Primeiro faz-se um conjunto de casas onde o terreno é mais barato,
depois é preciso arranjar um meio de transporte para que as pessoas possam ir
trabalhar. Os layers de decisão estão todos ao contrário”, contesta. A investigadora
argumenta que, uma vez que a habitação e as políticas de mobilidade são duas das
principais dimensões em disrupção na paisagem,
deviam estar articuladas com uma
política pública de paisagem, a partir da qual se definiam todos os planos,
convocando, como também reclama Sara Rocha, quem habitualmente não participa nestes
debates. Neste caso, geógrafos, sociólogos e paisagistas.
Segundo Helena Amaro, a não resolução destes problemas atinge todos e não apenas
quem com eles sofre directamente: “A factura do que não investimos em habitação ou
mobilidade acabará por aparecer em outras rubricas orçamentais, nomeadamente nas da
saúde pública.” Esta afirmação é partilhada uma vez mais por Sara Rocha, que destaca
que, já antes da crise sanitária decorrente da pandemia de covid-19, o Serviço
Nacional de Saúde gastava grande parte do seu orçamento a tratar doenças como a
obesidade, hipertensão, vários tipos de cancro e doenças crónicas, cardiopatias e
diabetes, associadas a um padrão alimentar que resulta de um sistema globalizado,
insustentável e prejudicial. Esta situação é inevitável?
Alguns exemplos ilustram bem tanto a paisagem descrita, como a possibilidade real de
se iniciar uma mudança de paradigma. É o caso das chamadas “ilhas” do Porto,
estruturas habitacionais localizadas no interior dos quarteirões e compostas por
casas diminutas, de aproximadamente 20m2 e precárias condições de habitabilidade.
Estas casas, originárias da Revolução Industrial, subsistem ainda em grande número —
957 “ilhas” dão actualmente alojamento a cerca de 10.370 pessoas. Falamos de uma
população envelhecida, com poucos rendimentos e baixas qualificações literárias,
para quem as “ilhas”, embora precárias, permitem viver no centro da cidade. Mas qual
o preço a pagar pela localização?
Um estudo realizado em 2019 a partir de uma parceria entre a Faculdade de
Arquitectura da Universidade do Porto e o Plano Local de Saúde do Agrupamento de
Centros de Saúde do Porto Oriental dá-nos três dados relevantes. Entre os
inquiridos, 27% estavam expostos a amianto, 89% não tinham isolamento térmico e 46%
não tinham sanita com autoclismo. Em comparação com os dados da Região Norte, estes
moradores apresentavam um risco oito vezes superior de desenvolver um AVC e 1,9
vezes de sofrer de problemas respiratórios. A relação entre as condições de vida e a
saúde era atribuível à habitação em até 88% dos casos de AVC e 48% dos problemas
respiratórios identificados. A totalidade destas situações seria evitada, se a
reabilitação e qualificação das casas fosse garantida.
Ilha de São VictorAdriano Miranda
Ilha de São VictorAdriano Miranda
Ilha de São VictorAdriano Miranda
Ilha de São VictorAdriano Miranda
Ilha de São VictorAdriano Miranda
Ilha de São VictorAdriano Miranda
Ilha de FrancosFernando Veludo
Ilha das TopadasPaulo Pimenta
Ilha das TopadasPaulo Pimenta
Ilha das TopadasPaulo Pimenta
Ilha das TopadasPaulo Pimenta
Ilha das TopadasPaulo Pimenta
Ilha das AntasAdriano Miranda
Ilha BelavistaAdriano Miranda
Ilha BelavistaAdriano Miranda
Ilha BelavistaAdriano Miranda
Ilha BelavistaAdriano Miranda
Ilha Beco do PaçoPaulo Pimenta
Ilha Beco do PaçoPaulo Pimenta
Ilha Beco do PaçoPaulo Pimenta
Ilha Beco do PaçoPaulo Pimenta
CampanhãPaulo Pimenta
CampanhãPaulo Pimenta
CampanhãPaulo Pimenta
CampanhãPaulo Pimenta
Para perceber as implicações desta intervenção na habitação, recorremos a um segundo
estudo encomendado em 2017 pela Câmara Municipal do Porto. Teoricamente, a
estratégia para qualificar as casas é simples: aumentar as suas áreas, garantir
iluminação e ventilação natural em todos os compartimentos, reduzir as barreiras
arquitectónicas e diminuir o número de fracções.
Mas se os ganhos na redução das desigualdades e do risco de doença e de pobreza são
claros, a dificuldade de concretização é notória. Do lado dos proprietários, é
preciso assegurar o acesso ao financiamento para custear obras tão profundas. Do
lado dos inquilinos, é preciso ter em mente que 37% deles tinham uma taxa de esforço
com a habitação inferior a 30%. O previsível aumento das rendas decorrente da
intervenção faria com que o número de agregados com uma taxa de esforço superior a
40% mais do que duplicasse, chegando pelo menos aos 63% do universo total. Como
acautelar este cenário?
A harmonia das partes dissonantes
Os anos de 1877 e 1871 marcam dois acontecimentos relevantes para a nossa história.
O primeiro refere-se ao momento em que a Câmara Municipal do Porto encomendou ao
militar Augusto Telles Ferreira a sua célebre carta topográfica, que, publicada em
1892, registava a existência de uma grande quantidade de “ilhas” na cidade, dando
conta da dimensão do fenómeno. O segundo diz respeito à primeira medida de habitação
social que se conhece, que entrou em vigor há precisamente 150 anos, no dia 28 de
Março de 1871. Na sequência de uma grave crise económica e social, muitos inquilinos
do XI Arrondissement, um bairro integrante da Comuna de Paris, deixaram de ter
condições de pagar a renda e arriscavam-se a ser despejados. Influenciado pelo
pensamento de Pierre-Joseph Proudhon, e defendendo a decisão como uma questão de
justiça social, o presidente da comuna impediu que as rendas de habitação
continuassem a ser cobradas, aceitando pagar um terço das rendas aos proprietários
mais carenciados.
Estes dois acontecimentos servem-nos para questionar até que ponto a resolução do
problema habitacional passa por inventar coisas novas ou recorrer ao passado para um
novo entendimento. A própria história das “ilhas”, que nos serve aqui de referência,
é cíclica, marcada ora por tentativas de erradicação, ora de valorização. Nenhuma
das duas alternativas se conseguiu impor no terreno, perpetuando, 150 anos depois da
génese deste fenómeno, condições de vida precárias para cerca de 5% da população
portuense. Contudo, alguma coisa parece estar a mudar.
Nas palavras de Pedro Baganha, vereador do Urbanismo da Câmara Municipal do Porto e
também presidente da Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) portuense: “É mais
racional intervir reabilitando estes tecidos do que mandar estas pessoas para a
periferia da cidade. A estratégia agora tem de ser reabilitar estes núcleos. A Rua
de S. Vítor [onde coexistem várias ‘ilhas’ contíguas] não se compreende se não tiver
esta densidade, vivência e relações de vizinhança. O que tem de ser erradicado é a
miséria. Não as ‘ilhas’”, insiste.
A mudança de paradigma, da total erradicação a uma visão integrada, remonta a 2014,
tendo sido desenvolvidas várias experiências que as consagram como parte da solução
e não como parte do problema. Por um lado, inicia a reabilitação das “ilhas” de
propriedade municipal, de que é exemplo a feita na ilha da Belavista. Por outro, há
um reconhecimento da importância destes núcleos na Estratégia Local de Habitação do
Porto, viabilizando o acesso a financiamento para novas intervenções no âmbito do
programa Primeiro Direito. Finalmente, em conjunto com o Centro de Estudos da
Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, desenvolvem-se estratégias que
permitam passar das políticas às práticas e viabilizar a operacionalização (e a
sustentabilidade) desta mudança de paradigma.
O maior entrave a ultrapassar, recorda Baganha, é que das actuais 957 “ilhas” apenas
três são municipais. Todas as outras são privadas, têm situações diversas e pedem
soluções distintas. “Há ‘ilhas’ que têm mesmo de ser erradicadas, outras podem ser
alvo de adaptação, e a maior parte delas passará por uma questão de salubrização
daquelas condições de vida”, afirma o vereador. E em muitos casos os proprietários
têm condições de pobreza tão difíceis quanto os seus inquilinos. Mas, se a
esmagadora maioria das “ilhas” são privadas, a câmara não pode intervir neste
património e alguns proprietários são tão carenciados como os inquilinos,
como
assegurar simultaneamente o financiamento das intervenções e a permanência dos
moradores?
Quando a SRU foi municipalizada, foram alterados os estatutos da empresa municipal
para que ela incorporasse habitação acessível e o problema específico das “ilhas”.
Na frente aberta em torno da intervenção nas “ilhas”, em conjunto com a Faculdade de
Arquitectura, o município chegou a um conceito de intervenção que, defende o
vereador, é, pela primeira vez, viável a todos os níveis. “Há uma componente
expressiva de financiamento a fundo perdido; e a componente de empréstimo acabará
por ser paga com as rendas a cobrar.” A estratégia, portanto, deverá agir tanto do
lado da oferta, como do lado da procura.
Para garantir o acesso a financiamento, que viabiliza a melhoria das condições de
habitabilidade e a qualificação do território, a câmara assumirá o papel de
intermediário entre os proprietários que queiram reabilitar as suas “ilhas”, através
do programa Primeiro Direito e o IHRU. O caminho parte do trabalho desenvolvido no
terreno por algumas juntas de freguesia e entidades do terceiro sector, como o
programa Habitar Porto, “dando assistência técnica (arquitectónica e burocrática),
apontando caminho aos proprietários”. “Teremos uma equipa técnica que diz logo qual
é a expectativa de uma obra que pode ser aprovada pela câmara municipal. E
identificando os destinatários finais dessas casas — que é uma das imposições do
programa Primeiro Direito”, explica.
É aqui que entra a segunda vertente de apoio desta experiência-piloto. A câmara
arrenda esses fogos e depois subarrenda-os, indo buscar os inquilinos sinalizados
como estando em carência habitacional. “Não há objectivo de lucrar com a operação.
Por isso, e no caso de existirem famílias que não consigam pagar as rendas, a câmara
entra com uma componente de subsídio à renda”, adianta Baganha, limitando o número
de beneficiários aos 140 anuais. A inovação não passa, neste caso, por inventar
soluções de raiz, mas antes por gizar uma solução entre dois programas que a câmara
já tem: o Porto com Sentido (de habitação acessível) e o Porto Solidário (de
subsídio às rendas).
A principal vantagem desta abordagem é que garante a permanência dos moradores após
a intervenção e traz mais-valias a todos. Pela primeira vez, o proprietário
empobrecido de uma “ilha” tem possibilidade de a reabilitar, sem qualquer custo. Os
inquilinos passam a viver numa casa com condições de salubridade e a suportar uma
renda condizente com os seus rendimentos. Por fim, o município diminui parte dos
três mil casos de carência habitacional identificados na sua Estratégia Local de
Habitação.
Mas Baganha não esconde algumas preocupações, nem segura as críticas “ao Estado
central que está sempre a alterar programas e leis” — referindo-se às mais recentes
alterações ao Primeiro Direito, conhecidas recentemente. “Parem de mexer nos
programas!”, pede o vereador, dizendo que uma habitação não demora menos de três a
quatro anos a ser terminada. “Deixem ao menos esgotar um ciclo de produção, senão
nunca chegamos a conseguir testar nada”, critica. Com as novas regras introduzidas
ao Primeiro Direito, o proprietário da casa reabilitada ou construída ao abrigo
deste programa deve manter as rendas controladas durante 20 anos, e não 15 como
inicialmente previsto. Talvez muito para um proprietário. Talvez
insuficiente para a
cidade, que daqui a 20 anos poderá estar novamente com um problema de habitação em
mãos. Sinal, afinal, de que uma política de habitação é feita de várias abordagens
em simultâneo, implica o envolvimento e participação de todos os intervenientes e
está longe de ser fechada. Como ir mais além?
Ilha do CruzinhoPaulo Pimenta
Ilha de São VictorPaulo Pimenta
Ilha Justino TeixeiraAdriano Miranda
Ilha Justino TeixeiraAdriano Miranda
Ilha Justino TeixeiraAdriano Miranda
Ilha Justino TeixeiraAdriano Miranda
Ilha Justino TeixeiraAdriano Miranda
Ilha Justino TeixeiraAdriano Miranda
Ilha GlóriaAdriano Miranda
Ilha do Pego NegroRui Farinha
Ilha do Pego NegroRui Farinha
Ilha do Pego NegroRui Farinha
Ilha do GenoPaulo Pimenta
Ilha do GenoPaulo Pimenta
Ilha do GenoPaulo Pimenta
Ilha do GenoPaulo Pimenta
Ilha do CruzinhoPaulo Pimenta
Ilha do CruzinhoPaulo Pimenta
Ilha do CruzinhoPaulo Pimenta
Ilha do CarregalPaulo Pimenta
Ilha do CarregalPaulo Pimenta
Ilha do CarregalPaulo Pimenta
Ilha do CarregalPaulo Pimenta
Ilha do CarregalPaulo Pimenta
Ilha de São VictorPaulo Pimenta
De uma política de habitação social a uma política social de habitação
A Nova Geração de Políticas de Habitação, lançada em 2017, propõe aumentar o parque
habitacional com apoio público de 2 para 5%, mesmo assim longe de outros países
europeus, como a Áustria, onde 25% do parque habitacional é público. Em entrevista
ao jornal espanhol El Diario.es, o geógrafo Justin Kadi e a economista Sarah Kumnig,
desvendam alguns dos pormenores da política de habitação aí conduzida. “O debate não
é se precisamos de controlar os arrendamentos ou habitação social. Há consenso de
que os dois são necessários”, referem estes investigadores. “Quem possui o solo, um
recurso limitado, controla a cidade”, destacam, daí ser importante regular o preço
do solo público e privado.
Yves Cabannes, Professor Emérito da University College of London, e com mais de 40
anos de experiência na área da habitação e da participação, corrobora esta ideia. “O
segredo é dissociar o valor fundiário da habitação. É a localização que mais
influencia o valor final de um imóvel e lhe dá um carácter especulativo. Se o
retirarmos da equação, o problema resolve-se”, explica. Mas como alterar então as
variáveis da fórmula que impede, ou facilita, o acesso a uma habitação condigna a
longo prazo?
O investigador sai do domínio da teoria e do abstrato, dando conta de experiências
no terreno desenvolvidas há já algumas décadas, e que demonstram a viabilidade e
sustentabilidade do modelo que defende. Refere-se aos Community Land Trust (CLT),
espalhados em vários países da Europa e do mundo, incluindo o mais liberal e
capitalista de todos, os Estados Unidos da América, argumenta Yves Cabannes.
Trata-se de um sistema que aprofunda o movimento cooperativo que conhecemos em
Portugal, para lhe dar um carácter mais fundacional. Assenta num poder tripartido,
dividido entre quem adquire ou aluga uma casa nesse CLT, quem não o habitando se
quer associar à causa, e quem representa o interesse/poder público. Este tripé
sustenta a propriedade do solo colectiva, garantida através de doações ou de
políticas públicas dirigidas para a regulação do mercado.
Portugal tem um vasto parque habitacional devoluto e desocupado — dados do INE
apontam para cerca de 730.000 casas vazias no país —, parte dele pertence ao Estado
e à Santa Casa da Misericórdia, por exemplo. A este banco de imóveis somam-se ainda
os baldios, parte deles localizados em áreas urbanas, destaca o investigador. Serão
estas oportunidades para arrancar com um projecto-piloto desta natureza no país?
As estruturas associadas aos CLT funcionam como administradores e garantes de
habitação de longo prazo, garantindo que ela vai permanecer genuinamente acessível —
“isto é, com base no rendimento das pessoas, e não com base no valor que a
propriedade tem no mercado”, ressalta o investigador.
Esta ideia de “acessível” distancia-se daquela em que se baseia o Programa de
Arrendamento Acessível, cujo cálculo parte do valor mediano do mercado em
determinado lugar, não dos rendimentos dos beneficiários. Como vimos no terceiro
trabalho desta série, mesmo 20% abaixo dos valores de mercado, o preço da habitação
permanece inacessível para muitos.
“Quem entrar num CLT sabe que não poderá arrendá-lo ou vendê-lo a valores
especulativos”, explica Yves Cabannes. Por um lado, não se especula. Por outro, quem
tem rendimentos abaixo da média não vive em constante ameaça de despejo ou aumento
de renda para lá das suas possibilidades. “Os moradores dessas casas não sofreram
nada com a crise do subprime”, assegura. Esta é uma das fórmulas que garante
segurança de acesso à habitação e subverte a vulnerabilidade e precariedade que
caracterizam o actual mercado e sistema habitacional dominante.
Simultaneamente, retirando o valor fundiário da equação e comprometendo diferentes
intervenientes na solução — o poder público, os privados e a sociedade civil —
também se abre espaço a visões mais abrangentes.
Como preconiza a Nova Geração de Políticas de Habitação e a Lei de Bases da
Habitação, permite-se passar da habitação ao habitat, ou seja, “de uma política de
habitação social para uma política social de habitação”, concretiza Yves Cabannes. A
pandemia reitera esta necessidade. A habitação precisa ser encarada, não apenas como
um tecto e quatro paredes, mas também como espaço de trabalho, de educação, de lazer
e de garante da saúde pública.
Não se trata de um jogo de palavras. As políticas de habitação social têm-se
limitado a construir fogos e a amontoar pessoas em gavetas, independentemente do
sítio onde trabalham, ou onde podem ir buscar rendimento e alimento. As políticas
sociais de habitação colocam as pessoas, e as suas necessidades, no centro da
equação, ampliando assim o entendimento de habitação e de habitabilidade. “A
habitação hoje, e no futuro, tem de considerar as novas necessidades, como as
exigências climáticas, como a reciclagem de águas ou a poupança de energia, mas
também as do teletrabalho, por exemplo. A casa tem de assumir a sua função produtiva
e não meramente reprodutiva”, defende.
De um somatório de programas à concretização de políticas
Não descobrimos a pólvora — Sérgio Godinho anda a cantá-la desde 1974, quando lançou
o álbum Liberdade. “Só há liberdade a sério / Quando houver / A paz,
o pão,
habitação / saúde, educação.” Mantendo-nos neste ano charneira, vale a pena recordar
a proposta de regulação do mercado de arrendamento, feita no âmbito do PREC pelo
então secretário de Estado Nuno Portas, não tanto pelas propostas, mas pelo contexto
em que surge.
Falava-se, na altura, de “[um] processo de alta especulativa na oferta de
habitações, patente sobretudo nas cidades e áreas metropolitanas, onde as crescentes
necessidades de alojamento da população conduziram o sector imobiliário [...] à
prática de preços que se sabe não acompanharem os custos reais de produção”.
Reconhecia que repor o congelamento das rendas em todo o país não ia, por si só,
solucionar o problema da habitação, designadamente a “imediata obtenção de
habitações acessíveis aos níveis de rendimentos da maioria da população
trabalhadora”. Mas era uma medida necessária, de carácter transitório, enquanto se
resolviam os problemas estruturais que assolavam o país. Neste sentido, enumerava um
conjunto de aspectos a considerar em legislação e programas públicos futuros: “A
aquisição pública e urbanização de solo suficiente e a baixo custo; o financiamento
e incentivos a empresas privadas e a cooperativas de moradores; a regulamentação do
regime de renda limitada, e o forte incremento dos programas de construção directa
de novos conjuntos habitacionais pelas entidades oficiais.”
Volvidos 47 anos desde a publicação deste decreto-lei, e cada vez mais próximos da
comemoração dos 50 anos do 25 de Abril, o direito à habitação consagrado no artigo
65.º da Constituição da República Portuguesa continua por garantir. Como constata
Helena Roseta, é preciso intervir em pelo menos quatro frentes: na diversidade e
articulaçãocoerente das ferramentas que integram uma política de habitação; no
reconhecimento de um país plural e diverso; na continuidade das linhas mestras dos
programas traçados para lá dos ciclos políticos; e no reconhecimento e inclusão de
novos e diferentes actores.
Ao nível das ferramentas, é possível recorrer a medidas de promoção e gestão da
habitação pública, tributárias e de política fiscal, de apoio financeiro e
subsidiação, legislativas e de regulação, como exposto na Lei de Bases da Habitação.
Passíveis de serem usadas por governos de diferentes espectros políticos, implicam,
contudo, coerência — por exemplo, nem os incentivos fiscais se podem limitar à
simples qualificação do edificado, nem o subsídio à renda pode servir para
inflacionar os valores do mercado ou deturpar as suas fragilidades.
É necessário que as políticas públicas contribuam para uma sociedade mais coesa, o
que exige reconhecer a diversidade de situações e realidades existente. Embora a
actual crise na habitação assuma particular expressão nas áreas urbanas,
nomeadamente nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, o resto do país é mais do
que “paisagem”. É preciso estar atento à diversidade das dinâmicas demográficas e
territoriais e às desigualdades habitacionais que as próprias políticas públicas
podem desencadear, quando não garantida uma distribuição equitativa dos recursos e
investimentos públicos.
O alcance destas metas implica políticas de continuidade, que não podem acabar
quando a verba dos programas ou os ciclos políticos de quatro anos que as suportam
chegam ao fim. Qualquer investimento público na habitação leva tempo a dar frutos.
Neste sentido, ressalta-se a importância de um compromisso nacional, validado pelo
Parlamento e objecto de uma avaliação regular, de acordo com o Programa Nacional de
Habitação, exigido na Lei de Bases de Habitação, mas que tarda em ser apresentado.
Por fim, as políticas públicas podem criar um espaço operacional particularmente
comprometido com as necessidades e recursos reais, articulando a esfera local e
central. Por um lado, assegurar uma maior
sinergia entre as políticas de habitação e
as políticas sociais, evitando tomadas de decisão avulsas e desarticuladas. Por
outro lado, dar as boas-vindas a actores geralmente excluídos do debate e da solução
por razões de natureza legal e/ou burocrática.
Como se viu ao longo deste trabalho, a habitação constitui uma base material
imprescindível para a redução das desigualdades sociais e dos riscos que acarretam.
A sua produção não pode ser lida de forma isolada, dissociada do conjunto de
factores que determinam o espírito de cada tempo e a realidade de cada lugar. Não é
o mesmo produzir e garantir habitação durante a ditadura salazarista ou na Europa
globalizada de hoje — mas as duas assumem um mesmo princípio: as decisões decorrem
de um balanço entre o protesto e a proposta, segundo diferentes pesos, medidas e
riscos. Uns momentos serão seguramente mais propícios, outros adversos, mas
dificilmente ideais.
Às vezes, poderemos recorrer aos instrumentos que já existem, noutras ocasiões
inventar estratégias e estruturas de raiz, noutras ainda aplicar ambos em
simultâneo. Às vezes, poderemos recorrer à mentalidade do acrobata, noutras
situações dar-nos ao luxo de assumir a paciência e argúcia de um jogador de xadrez.
Estes dois personagens foram-nos trazidos por Helena Amaro, citando João Ferrão. O
geógrafo afirmou tratar-se de uma ideia de outrem tida num contexto diferente —
“aquelas coisas que lemos algures e que nos parece bem visto”. Autorias e
enquadramentos à parte, interessa garantir que não se perde o fio à meada. É que
isto, para continuar na discografia de Godinho, anda mesmo tudo ligado.