Para onde vai o dinheiro que o Estado gasta em habitação?
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Entre 1987 e 2011, 73,3% do dinheiro público para habitação destinou-se ao
crédito para compra de casa própria
Dez anos depois, se olharmos para a fatia de dinheiro destinado à habitação no
Orçamento do Estado de 2021,
deparamo-nos com aquilo que parece ser uma mudança
Mais de metade desta fatia destina-se à “reestruturação do
parque de habitação
social”
Há, desde 2018, uma Nova Geração das Políticas de Habitação, que tem 17 programas
Mas o que é que esta mala de ferramentas trouxe de novo?
Porque falha a mala de ferramentas para a crise da habitação?
Se as carências habitacionais e a dificuldade de acesso à habitação
fossem resolvidos com anúncios, programas,
estratégias e debates já não deveria haver um problema de habitação em Portugal.
Procuramos perceber que políticas e
programas foram lançados e que investimentos foram feitos nos últimos cinco anos. E
se contribuíram para resolver alguma
coisa.
Há algumas décadas ficou famoso o saco mágico de uma série de animação, o Sport
Billy, um rapaz de outro planeta. Não havia criança que não desejasse ter uma
Omni-sac, assim se chamava a mala de ferramentas multi-usos que o Billy usava para
resolver problemas, concretizar sonhos, alcançar objectivos – havia de tudo lá
dentro. Na área de habitação pode dizer-se que há uma mala de ferramentas, porque
são muitos os instrumentos, fundos, diplomas, mecanismos e programas já criados. Mas
há uma marca que os atravessa: tem-lhes faltado a capacidade de, afinal, serem
eficazes — de se ajustarem à realidade.
Depois de na primeira parte desta série termos tentado explicar porque é que
aumentaram os preços da habitação em Portugal, enquadrando a situação do
país no
contexto europeu, e depois de, numa segunda parte, termos tentado problematizar as
várias matizes com que se desenha o problema da habitação nacional, vamos
procurar
agora responder como é que o poder político se organizou para dar resposta aos
problemas que afectaram o território de forma desigual. E como as ferramentas
criadas chegaram ao terreno e foram utilizadas em benefício (ou não) dos seus
destinatários.
No discurso político, os problemas da habitação têm vindo a ser gradualmente
assumidos por todos os quadrantes, mesmo que não defendam as mesmas soluções. Ambos
os lados têm argumentos para esgrimir e exemplos para dar. À direita, apela-se ao
Estado para não obrigar os privados a suportar as dificuldades económicas dos
inquilinos, impedindo-os de aumentar as rendas. As rendas estiveram congeladas
durante décadas, e argumenta-se haver senhorios com mais problemas económicos que os
inquilinos. À esquerda, fala-se de “travar os especuladores”, de impedir despejos e
de dar mais estabilidade aos contratos e garantias aos inquilinos.
No entanto, as visões maniqueístas não resolvem o problema. A escala do
desafio que
se tem pela frente é de tal ordem de grandeza que só um acordo de regime, um
consenso entre todos os actores — que sobreviva a diferentes ciclos
políticos —,
valerá.
Desde que, em Julho de 2015 — ainda era Passos Coelho primeiro-ministro —, se
aprovou uma Estratégia Nacional para a Habitação, dizendo ser preciso recolher
dados, fazer diagnósticos e partir para as acções, muita coisa mudou.
Quando António Costa chegou ao poder no final de 2015, e formou um governo
minoritário e com apoio parlamentar dos partidos à esquerda – a “geringonça”, como a
baptizou Vasco Pulido Valente – o tema da habitação não lhe mereceu logo uma pasta,
nem uma tutela específica. O dossier caiu na alçada do ministro do Ambiente, João
Pedro Matos Fernandes, que tinha em mãos a política de cidades e ordenamento do
território. As primeiras medidas tomadas foram lançar instrumentos financeiros — o
Instrumento Financeiro Reabilitação e Revitalização Urbanas, mais conhecido como
IFRRU2020 —, para incentivar investimentos de reabilitação urbana com verbas
europeias, e fundos de investimento, como o Fundo Nacional para a Reabilitação do
Edificado (FNRE), com verbas do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança
Social.
Acabou por ser nesse mesmo ministério de Matos Fernandes que ano e meio mais tarde,
e 12 anos depois da última vez que uma governante assinara como Secretária de Estado
da Habitação (Rosário Águas, no último Governo de Durão Barroso), que a arquitecta
Ana Pinho assumiu a pasta. Estávamos em Julho de 2017, e foi apenas aí que o
Executivo voltou a ter alguém a debruçar-se exclusivamente sobre as questões da
habitação.
Se na frente governativa a atenção na habitação ganhava corpo, na Assembleia da
República (AR) a deputada independente eleita pelas listas do PS, Helena Roseta, já
tinha criado um grupo de trabalho para debater as questões da habitação, e avançado
com uma consulta pública para lançar a primeira Lei de Bases da Habitação. Foi esse
o objectivo que assumiu para o seu mandato na Assembleia da República, depois de
anos como vereadora da habitação em Lisboa e presidente da Assembleia Municipal
daquela cidade.
A “geringonça” ficava, assim, marcada por uma legislatura intensa na qual, por
iniciativa ora do Parlamento ora do Governo, apareceram muitas propostas em cima da
mesa. Desde diplomas, a instrumentos e programas, houve muito debate e discussão em
torno da habitação, em grande parte motivado pelas campanhas e iniciativas lançadas
pelos movimentos sociais, como ressaltamos no segundo trabalho desta série. Muitas
vezes, o PS do Governo desentendeu-se com o PS da Assembleia e com os partidos mais
à esquerda, e teve de ser o actual ministro da Habitação, o então secretário de
Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, a zelar para que a concertação
entre bancadas pudesse chegar a um acordo mínimo.
Formalmente, a primeira proposta da Lei de Bases dava entrada no Parlamento em Abril
de 2018. Um mês depois, sem esperar pelos debates na Assembleia da
República, o
Governo lançava a sua Nova Geração de Políticas de Habitação, um pacote com 17
programas, com o objectivo principal de resolver todos os problemas de carência
habitacional até aos 50 anos do 25 de Abril. E sim, o primeiro Governo de António
Costa conseguiu chegar ao final da legislatura com uma Lei de Bases aprovada, a 1 de
Outubro de 2019, mesmo que esta viesse a obrigar, já na segunda legislatura, a fazer
várias adaptações às leis e instrumentos que já tinha no terreno ou, em muitos
casos, ainda em fase de arranque.
Na verdade, a articulação entre a Lei de Bases da Habitação e os instrumentos já em
vigor não tem sido propriamente oleada. Por exemplo, na sequência da entrada em
vigor da Lei de Bases, Portugal passou a ter de aprovar no Parlamento a
universalidade do direito à habitação, consagrado na Constituição da República desde
1976. E os municípios passaram a ter de fazer Cartas Municipais de Habitação que,
associadas aos respectivos Planos Directores, permitem assegurar um sentido
integrado ao investimento nas várias dimensões, desde a habitação até os
transportes. Mas, neste momento, a maioria das câmaras municipais ainda está a focar
os esforços nas suas Estratégias Locais de Habitação para se poderem candidatar ao
1.º Direito, um dos principais programas dessa Nova Geração de Políticas. Esta
situação faz com que autarquias, técnicos e privados se encontrem, muitas vezes,
numa encruzilhada entre o urgente (o acesso ao financiamento disponível) e o
importante (a planificação e execução estratégica das verbas disponíveis).
Melhor do que nada?
Protagonismos políticos e questões partidárias à parte, certo é que nos últimos
cinco anos apareceram muitas ferramentas para resolver o problema habitacional nas
suas várias frentes.
De entre os 17 lançados, o programa governamental com execução mais avançada
será
mesmo o 1.º Direito, com dezenas de protocolos assinados entre as câmaras
municipais
e o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) para se financiar as
soluções para os problemas de carências habitacionais encontradas em cada
concelho.
Se se concretizassem todas as intenções de investimento celebradas nesses
protocolos, no horizonte de cinco anos, isto é, até 2026, as primeiras 25 câmaras
que já assinaram os acordos absorviam mais de metade das verbas
previstas no
Plano
de Recuperação e Resiliência (PRR). As primeiras 25, de 308 municípios.
Mas isto coloca outra questão. Qual será a ordem de prioridades e garantia de
distribuição equitativa do apoio público? Que impacto terá a velocidade desejada nos
critérios de atribuição das obras, da qualidade e do preço final das mesmas? O
Governo tem dito que vai apoiar com uma subvenção de 100% os primeiros 26 mil casos
de carência que surjam resolvidos, independentemente de onde surjam.
Será, de facto, uma oportunidade para materializar a abordagem integrada e
participada preconizada na Nova Geração de Políticas de Habitação? Ou assistiremos a
um novo Programa Especial de Realojamento, com a construção de melhores casas em
localizações periféricas, acentuando a clivagem social que se pretende combater?
Dir-se-á que algo é melhor do que nada. Mas nem sempre. Quem se vê confrontado com
vários problemas, pode não encontrar resposta na sobreposição dos vários programas
actualmente em vigor. Como prova o próximo exercício, a conjugação pode até ser
contraproducente. Colocamos na mesma casa de partida três proprietários, de cidades
diferentes, com a mesma vontade de reabilitar um imóvel — e com os capitais próprios
necessários para o fazer — para o colocar no mercado de arrendamento. Fizemos as
contas a quantos meses teriam cada um de esperar para reaver o dinheiro investido e
a renda máxima que poderiam cobrar, isto no caso de colocarem o imóvel no Programa
de Arrendamento Acessível (que limita as rendas a 20% abaixo do valor de
mercado) ou
no Porta 65
Jovem (que define tectos máximos consoante as localizações dos imóveis).
Tivemos uma surpresa — como teve a (inventada) cidadã proprietária de um T1 em
Coimbra.
Afinal, até é possível receber incentivos governamentais para colocar no mercado
fogos a valores especulativos. Da mesma forma, a noção de “acessível”, calculada em
função do valor de mercado e não do rendimento dos beneficiários, tem sido apontada
por muitos como insuficiente e enganadora, ou seja, “inacessível”.
Para além da subversão de algumas iniciativas, a implementação das políticas
públicas acontece geralmente a uma velocidade inferior à desejada. Entre o
reconhecimento do problema, a definição e aprovação de uma política ou programa, e a
sua implementação no terreno, a assimilação das ferramentas pelas autarquias,
técnicos e restantes envolvidos, exige necessariamente mais tempo do que aquele que
o destinatário do programa se pode dar ao luxo de aguardar, sobretudo se estiver
numa situação de carência. E mesmo o que tem maiores respostas, o 1º Direito, entre
o seu lançamento e apresentação pública, a elaboração de estratégias e aprovação de
acordos de financiamento, a verdade é que as obras necessárias, e as soluções
desejadas, demoram a chegar ao terreno. Se há ferramentas, o que atrasa ou impede a
materialização de respostas? É uma questão de dinheiro?
O foco orçamental
Mesmo que em termos de complexidade fique aquém dos desafios lançados na Nova
Geração de Políticas de Habitação, o investimento do Estado na habitação tem sido
muitas vezes tema. E vai continuar a ser, sobretudo agora, em que esta área assume
uma fatia importante dos projectos a apresentar no âmbito do PRR. Entre subvenções e
empréstimos, o Governo espera conseguir investir 2,7 mil milhões de euros nos
próximos cinco anos. Será o maior investimento de sempre na área da
habitação,
prometeu o ministro Pedro Nuno Santos, mantendo a afirmação, depois de ter cortado
quase metade da verba que havia anunciado na primeira versão do documento. Quando se
conheceram as primeiras linhas gerais do PRR, em Outubro do ano passado, o
investimento em habitação seria de 4,3 mil milhões de euros.
Ainda antes de projectarmos o futuro — o plano, afinal, ainda não foi aprovado —
vale a pena analisar onde é que o dinheiro foi gasto no passado. O Governo de Passos
Coelho fez as contas, quando apresentou a sua Estratégia Nacional da Habitação. Nos
25 anos que decorreram entre 1987 e 2011, o Orçamento de Estado suportou, a fundo
perdido, 9,6 mil milhões de euros com as várias políticas públicas relacionadas com
a habitação. Este valor dá uma média anual de 384 milhões de euros, como
contabilizou Helena Roseta, no artigo “Habitação no orçamento de Estado: uma gota de
água”, publicado há um ano na edição portuguesa do jornal Le Monde
Diplomatique.
Porventura, tão importante quanto o dinheiro investido é perceber onde ele foi
aplicado. Sabe-se para onde foram aqueles quase dez mil milhões de euros em 25 anos:
apoiar a aquisição de casa própria. Entre 1987 e 2011, gastaram-se cerca de sete mil
milhões de euros (isto é, 73% do orçamento destinado à habitação) em bonificações de
juros no crédito à habitação. Os programas de realojamento mereceram 1,3 mil milhões
(14,2%), os incentivos ao arrendamento 803 milhões de euros (8,4%), os programas de
reabilitação de edifícios tiveram 166 milhões (1,7 %) e os subsídios de renda da
segurança social uma migalha de 0,3% de todo o orçamento em 25 anos: 29,2 milhões de
euros.
“O Estado deixou de promover directamente habitação pública desde 1982, com a
extinção do Fundo de Fomento da Habitação, e foi-se desfazendo da habitação pública
que havia promovido. Foi assim que chegámos aqui, muito abaixo da média europeia,
com apenas 2% de habitação pública face a 98% de habitação privada. Destes 2%, que
representam perto de 121 mil fogos, só cerca de 11 mil estão na alçada do Estado,
geridos pelo Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU). Os restantes 110
mil pertencem sobretudo aos municípios, em quem o Estado vem delegando a sua
responsabilidade de promotor de habitação pública”, escreveu Roseta no já citado
artigo.
Para 2021, o Orçamento de Estado mantém-se na ordem dos 300 milhões de euros, mas
será à partida aplicado noutra direcção, revelando, como mostram os gráficos no início deste texto, uma
mudança de paradigma ao nível do discurso. Nas notas explicativas para o Orçamento
de Estado deste ano, o ministro Pedro Nuno Santos adianta onde pretende
aplicar o
dinheiro: 154 milhões de euros para “a reestruturação do parque de habitação social,
nomeadamente no âmbito do programa 1º Direito”; 100,8 milhões para “a promoção de um
parque habitacional público e cooperativo a custos acessíveis, a par com o
desenvolvimento de instrumentos de intervenção e regulação do mercado de habitação
já existentes”; 9,3 milhões de euros para “a criação de uma resposta habitacional
urgente e temporária”; 13,6 milhões para a reabilitação do parque habitacional do
IHRU actualmente devoluto; e cerca de 24 milhões de euros para o programa Porta 65
Jovem, entre outros subsídios de renda.
Num seminário organizado recentemente pela Associação de Inquilinos de
Lisboa (AIL),
para assinalar os seus 97 anos de actividade, ressaltou-se um “passo
histórico para
a agenda da União Europeia” — a aprovação do Relatório de Iniciativa sobre o Acesso
a Habitação Digna e Acessível para Todos em Janeiro deste ano. Esta
aprovação pode
trazer mudanças significativas na política europeia de habitação. A Comissão
deverá
reagir a este relatório de iniciativa e propor medidas legislativas e
financeiras a
acordar e aprovar pelos Estados-membros.
Até agora, e de acordo com o Protocolo 26 do Tratado da União Europeia (TFUE),
relativo aos serviços de interesse geral, o fornecimento de habitação social a
preços acessíveis continua e deve permanecer sob a competência nacional. Mas o
Parlamento insta a Comissão a usar as competências relacionadas com o mercado da
habitação (como sejam política monetária, empréstimos, crédito e hipotecas) a
intervir em prol da habitação social e acessível. A relatora Kim Van Sparrentak, e a
presidente da União Internacional dos Inquilinos, Marie Linder, estiveram presentes
no seminário da AIL, onde disseram ter ficado demonstrado que o mercado não resolve
os problemas de habitação, e que têm de ser os governos nacionais a fazê-lo.
Pela voz de Marina Gonçalves, actual Secretária de Estado da Habitação, o Governo
português diz não desdenhar esse repto, e vai aproveitar todas as oportunidades. No
quadro do PRR, a componente da habitação passa a absorver uma fatia importante do
investimento público. O Governo de António Costa inscreveu 1251 milhões de euros
para financiar a resolução dos 26 mil casos de carência habitacional identificados
no levantamento realizado pelo IHRU em 2018. O que o Executivo fez foi aproveitar o
PRR como uma oportunidade para financiar e acelerar o 1.º Direito, um programa que
já existia antes de haver crise pandémica e antes de haver PRR.
Para além dos 1251 milhões de euros para o acesso a habitação condigna inscrita no
PRR, também estão 300 milhões de euros destinados à melhoria da eficiência
energética dos edifícios — via Fundo Ambiental. Ainda no capítulo das subvenções, o
Governo quer também ir buscar 186 milhões de euros para criar a Bolsa Nacional de
Alojamento Urgente, de forma a poder dar uma resposta estruturada e transversal às
pessoas que precisam de soluções de alojamento de emergência (devido a
acontecimentos excepcionais ou imprevisíveis, como uma pandemia, por exemplo) ou de
transição (como os sem-abrigo, situações que, pela sua natureza, necessitam de
respostas de alojamento de acompanhamento antes de poderem ser encaminhadas para uma
solução habitacional definitiva).
Por fim, pretende-se também aumentar o papel do poder público no sector da habitação
através da colocação dos seus próprios imóveis no segmento acessível, aumentando a
oferta e contribuindo assim para a baixa dos preços de mercado. Uma das últimas
medidas que tomou foi criar uma bolsa pública de imóveis, promovendo o levantamento
do património habitacional do Estado que esteja devoluto ou possa ser reconvertido,
para a promoção de arrendamento a preços acessíveis. E para este objectivo,
inscreveu na componente de empréstimos no âmbito do PRR uma verba de 774 milhões de
euros.
Feitas as contas, parece que estamos perante um dos maiores investimentos de sempre
na habitação. Contudo, ainda nada está garantido. A “bazuca” europeia não está ainda
formalmente aprovada e os problemas estão a resolver-se a conta-gotas, como o
desconfinamento da pandemia que decretou o primeiro-ministro. As rendas começaram a
descer marginalmente, o preço das casas congelou. Até quando?
Afinal, (o que) vai mesmo acontecer?
Futurologia à parte, olhemos para as propostas, mas também para o que tem vindo a
acontecer no terreno. Interessa, não só perceber o que se quer fazer, mas também a
capacidade real para aceder às ferramentas e o interesse de quem se quer alinhar
noutra direcção. Para além do financiamento, de inegável importância, as motivações,
o tempo de duração dos programas ou a complexidade burocrática associada à sua
implementação, são ingredientes de uma receita difícil de agradar a todos.
Voltemos a olhar para o que já se fez e avaliar a adesão e respectivo
impacto de
algumas das ferramentas lançadas. Orientar mais dinheiro para a entrada de
casas e
mais casas no mercado não parece, por si só, garantir o efeito desejável.
Antes pelo
contrário. Prova disto são os investimentos apoiados pelo IFRRU2020, que já vão em
800 milhões de euros, e não serviram apenas a habitação nem
impuseram
nenhuma
obrigatoriedade contratual de colocar no mercado habitação a preços
acessíveis.
Também não parece viável criar alternativas capazes de concorrer com o lucro obtido
num mercado aquecido, designadamente com a entrada de investidores e consumidores
internacionais. Há um instrumento criado pelo próprio Governo que mostra como tem
sido difícil conseguir a desejada geografia de investir na reabilitação, baixar as
rendas e garantir rentabilidade. O Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado
(FNRE), que pretendia aplicar verbas do Fundo de Estabilização Financeira da
Segurança Social na recuperação de imóveis, garantindo taxas de
rentabilidade (4%) e
aplicando preços acessíveis nas rendas ainda não arrancou com uma única obra, quase
cinco anos depois de ser lançado.
Apesar de ter conseguido menos de 400 contratos em todo o país, o Governo mantém
como prioritário o Programa de Arrendamento Acessível (PAA), que isenta os
proprietários de tributação de rendimentos nos fogos que arrendem 20% abaixo do
valor de mercado. E se chegar aos imóveis que já estão no mercado de arrendamento de
longa duração é difícil, fazer com que novos senhorios adiram parece quase
impossível. Os programas municipais com que avançaram as câmaras de Lisboa,
Porto e
Matosinhos, são exemplo disso. Mesmo agora, que os fogos estão vazios, com a
ausência de turistas. A exigência de que esses contratos sejam, no mínimo, de cinco
anos é uma das razões que levam os proprietários e promotores a afastarem-se deste
segmento. Confrontada recentemente com esta fraca adesão, numa entrevista ao Jornal
de Negócios e à Radio Renascença, a secretária de Estado da Habitação, Marina
Gonçalves, admitia não saber “como tornar mais atractivo o arrendamento
acessível”.
As dificuldades não estão apenas no modelo económico e financeiro. O Governo assume
que quer estabilidade contratual. Os promotores privados querem estabilidade
legislativa — e ao longo dos anos têm-se queixado das muitas alterações que as leis
do arrendamento têm sido sujeitas, alegando falta de confiança e estabilidade neste
sector. Mas, agora mesmo, continuam em cima da mesa muitas vozes e propostas a falar
da necessidade de revisitar a Lei das Rendas, e fazer uma nova Lei do Arrendamento.
Por onde se começa?
Já em 1981, o sociólogo Manuel Castells frisava as limitações de analisar
isoladamente o poder governamental, sublinhando a necessidade de interligar
a acção
(e o poder) do capital, do Estado e dos movimentos sociais, que falam
dialectos
aparentemente diferentes e raramente consonantes, mas escrevem
conjuntamente, com
pesos e medidas diferentes, a gramática da cidade.
De facto, a sociedade civil, mais ou menos organizada em movimentos cívicos ou em
colectivos activistas, também tem escrito parte da história dos últimos anos em
Portugal. Com pedidos e reivindicações que acabam por influenciar partidos com
representação na AR (as alterações ao direito de preferência dos inquilinos sob a
venda do seu locado avançaram após os protestos dos antigos inquilinos da
Fidelidade, por exemplo), ou com iniciativas de intervenção directa, como as muitas
que fez a Stop Despejos e a Associação Habita.
Quem continua a depender das respostas do Estado para, em muitos casos, sobreviver,
desespera com a espera. Um exemplo entre os muitos e variados de que o PÚBLICO vai
tendo conhecimento: o caso de Diana Ribeiro, 34 anos, 9º ano de escolaridade, mãe
solteira, quatro filhos — de 13, 9, 7 e 4 anos —, sem pensão de alimentos e com
rendimento social de inserção (RSI), e que não encontra resposta pública para o seu
problema habitacional. E junta o RSI e o abono dos quatro filhos para pagar uma
renda de 350 euros numa habitação quase lúgubre numa ilha em Campanhã.
Por não estar recenseada no Porto há mais de cinco anos (trabalhou num hotel rural
em Espanha que fechou, regressou a Portugal, e à casa do pai, há pouco mais de dois
anos), Diana está impedida, em termos regulamentares, de instruir pedido de
alojamento na Câmara Municipal do Porto. Com a ajuda dos serviços de acção social da
Junta de Freguesia de Campanhã, escreveu ao ministro Pedro Nuno Santos a pedir
ajuda. Estávamos em Outubro de 2019, o ministério reenviou o pedido ao IHRU. Em
Novembro, o IHRU respondeu, alertando Diana que ela podia, e devia, efectuar um
pedido de apoio habitacional na plataforma electrónica de arrendamento apoiado.
“Quem não dominar as tecnologias de informação fica automaticamente excluída”,
reclama Diana que, por estes dias, andou mais preocupada em assegurar a forma como
os seus filhos marcavam presença e participação nas aulas online.
Diana não se considera infoexcluída, o pedido está feito há muito. Mas, quando
consegue ser atendida na Delegação Regional do Porto do IHRU, a resposta que tem é
que não há casas disponíveis. E que tem de continuar a aguardar. Mas, uma vez mais,
até quando e em que circunstâncias? Se as carências habitacionais e a dificuldade de
acesso à habitação fossem resolvidos com anúncios, programas, estratégias e debates
já não deveria haver um problema de habitação em Portugal.
Recorremos ao arquitecto Nuno Portas para deixar a questão essencial que já ele
havia lançado em 1986 como sendo típica de todas as fases de transição: “A questão
de saber por onde se começa”. “Se se começa pelos decretos e pelas leis ou se se
começa por processos que alterem as condições e as relações de força, para que as
leis sejam já a recolha dessas experiências e a sua necessária consolidação, no caso
de serem boas e de a relação de forças ser favorável”, escreveu num texto em que fez
a análise entre o Estado e o poder local.
No último capítulo desta série, vamos reflectir sobre como podemos passar do país
que temos ao país que queremos, dando o salto dos programas (como vimos demasiado
específicos e instáveis) às políticas (duradouras e estratégicas). Não será o
problema da habitação apenas um dos sintomas de uma crise generalizada? Será
possível deixar de abordar o território como quem puxa um lençol, que cobre a cabeça
à custa de deixar os pés de fora?
Proposta 2ª parte
“A paz, o pão, habitação, saúde, educação”. O que falta fazer?
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