A concorrência de cidades
A competição entre países e entre cidades foi um discurso que se instalou no sector
imobiliário nos últimos anos.
Afinal, a principal razão do sucesso de Portugal tinha a ver, sobretudo, com a
criação de uma imagem de marca
concorrencial no circuito internacional. E, nesse aspecto, e sobretudo no circuito
turístico, Portugal e Lisboa em
particular andaram nas bocas do mundo. Lisboa foi eleita o principal destino de
férias de cidade em 2017, 2018 e 2019
pelos World
Travel Awards. Em 2019, o número de turistas em Lisboa atingiu quase
12 milhões, mais de 20 vezes a sua população residente.
Os pequenos proprietários viram aqui uma fonte de rendimento — e foram colocando
imóveis não no segmento residencial, e
nos arrendamentos de longa duração, mas nos segmentos turísticos, alugando à noite e
não ao mês, conseguindo assim
elevadas taxas de rentabilidade. Os números de alojamentos locais dispararam.
Esta dinâmica foi positiva nisso — na reabilitação dos centros das cidades — porque
pela primeira vez, e como já não
acontecia há muitos anos, era possível fazer a reabilitação de um imóvel degradado e
conseguir mais do que recuperar o
investimento. Era possível ter lucro depois da reabilitação. Foram conhecidas muitas
histórias de investidores que nem
chegavam a fazer as obras: compravam por um preço e vendiam com grandes margens de
lucro no mês seguinte, para ser
construído um hotel, ou vários apartamentos para colocar no segmento turístico,
quase sempre.
Nos rankings organizados todos os anos pela consultora PwC e pelo Urban Land
Institute, Lisboa chegou a ser considerada
a melhor cidade europeia para investir no imobiliário. Em 2020 passou para a 10.ª
posição, mas ainda lá estava, nos
lugares de topo. Em 2021 desceu para 15.ª, com Berlim a assumir a dianteira.
As cidades espanholas de Madrid e Barcelona também caíram neste ranking, para o 8.º
e o 13.º lugar, respectivamente.
Explica-se, no relatório, que os desafios económicos que enfrentam as cidades do Sul
da Europa na sequência da crise
pandémica “são demasiado elevados para justificar uma recuperação rápida”. Um dos
consultores citado no estudo — que,
estranhamente, nunca são identificados — refere que estas três cidades dependem
muito do sector do turismo, e este foi
um dos que mais sentiu o impacto causado pelo novo coronavírus.
As ondas de investimento fazem-se assim. Surgem e desaparecem. A financeirização da
habitação e a gentrificação de
cidades como Lisboa e Porto são comuns a outras cidades europeias, reflectindo um
problema global. O mais recente estudo
da Comissão Europeia sobre o Futuro das Cidades,
com um capítulo dedicado ao tema da
habitação acessível, atesta isso mesmo: nos mais de 220 milhões de lares que
existem na Europa, cerca de 82 milhões de cidadãos gastam mais
de 40% do seu rendimento nas despesas com a habitação, a tal taxa de esforço que
começámos por referir.
De acordo com esse estudo, um trabalhador em Munique precisava, em 2008, de
juntar todos os salários e rendimentos de
cinco anos de trabalho para conseguir comprar um apartamento de 60 metros
quadrados. Uma década depois, em 2018, esse
valor disparou para nove anos de trabalho.
Do lado das consultoras e dos promotores imobiliários, a subida dos preços também
não passa despercebida. No seu último
relatório sobre mercados residenciais, a Delloite ocupou-se em tentar perceber o
quão difícil pode ser para os
habitantes de vários países europeus comprar casa. E, analisadas várias cidades europeias, a maior desproporção no preço das casas foi encontrada precisamente em Lisboa. A capital portuguesa é a única em que a habitação é três vezes mais cara do que a média nacional — 336%! Mais do que Paris (284%), Londres (199%), Barcelona (240%) ou Berlim (147%). No Porto a desproporção também é elevada, atinge os 191%.
Mas se os problemas são idênticos, as medidas que os respectivos governos têm usado
para os mitigar têm sido diferentes.
E o que se pode ver em Berlim, por exemplo, onde o problema do acesso à habitação
não é tão grave como em outras
cidades, estão no terreno medidas mais musculadas do que as que vão sendo aplicadas
em Portugal.
Para reagir às rendas altas em Berlim e melhorar o acesso à habitação, o governo
regional e o Senado de Berlim têm
apostado, nos últimos anos, não só em avançar com novas construções, como em comprar
apartamentos existentes, assumindo
a “remunicipalização” como instrumento para contrariar o aumento das rendas e a
especulação imobiliária.
Mas uma das medidas regulamentares que têm dado mais polémica, e que emanou não do
governo da cidade, mas do próprio
Governo federal, consiste na limitação administrativa ao aumento de preços — o
chamado “ Mietpreisbremse” —, um projecto
central da política do mercado habitacional alemão dos últimos anos que arrancou em
2015. Esta legislação trava o
aumento das rendas, obrigando os senhorios a limitá-las assim que recolocam os seus
imóveis no mercado. A lei define que
não poderá cobrar rendas acima dos 10% do valor de referência na localização em
causa. O regulamento não se aplica
automaticamente, mas apenas em áreas onde há uma situação tensa e insustentável no
mercado imobiliário (e que são
definidas pelos governos regionais) e há muitas excepções, como apartamentos
recém-construídos ou objecto de
intervenções profundas.
O Instituto Alemão de Investigação Económica (Deutsches Institut für
Wirtschaftsforschung – DWI) fez em 2018 uma
avaliação a este instrumento, revelando que o travão para os preços no
aluguer não estava a abrandar visivelmente o
aumento geral das rendas. A lei foi revista e manter-se-á em vigor até 2025.
Desde Janeiro de 2019 que os senhorios são
obrigados a revelar ao novo inquilino o valor da renda que cobravam ao
inquilino anterior, e desde Abril de 2020 que os
arrendatários podem recuperar o valor pago em excesso retroactivamente nos
primeiros dois anos e meio do contrato.
Em Portugal, há uma “mala de ferramentas”, como se referiu a impulsionadora da
primeira Lei de Bases da Habitação,
Helena Roseta, aos muitos programas e instrumentos que podem ser usados e criados
para acudir aos problemas que foram
sempre crescendo. Mas sobre essa mala de ferramentas falaremos em profundidade
noutra edição. Por enquanto, avançamos
apenas com alguns das muitas designações que existem para as rendas com limites
fixados administrativamente: “renda
social”, “renda apoiada”, “renda condicionada” e, mais recentemente, “renda
acessível”. Mas, como vem notando o Governo,
sobretudo o actual ministro com a pasta da Habitação, com apenas 2% do parque
habitacional como património público é
difícil influenciar os preços do mercado. Portugal está na cauda da Europa neste indicador, e Pedro Nuno Santos
assume que agora a prioridade é aumentar o parque público, e lamenta que no passado
ele tenha sido
alienado. E lamenta, certamente, o estado de degradação a que chegou, quer o parque
público, quer o privado.
É curioso — ou talvez não — que mesmo depois da onda de reabilitação que varreu as
principais cidades do país, à boleia
do Regime Excepcional para a Reabilitação Urbana (RERU), que aligeirou as exigências
técnicas a aplicar, Portugal
continue na cauda da Europa na relação entre o rendimento e a qualidade de vida. Foi
o
o Eurostat quem o evidenciou ,quando actualizou as
estatísticas sobre rendimento e condições de vida nos 27 Estados- membros da União
Europeia. Pior
do que Portugal só o Chipre. E Portugal é pior do que todos os outros países em
indicadores como as infiltrações,
desconforto térmico e o ruído. E, mais revelador ainda, é que não se está a
falar apenas da população de menores rendimentos, mas também da
classe média: 21,8% têm problemas de infiltrações. A média na Europa é de 11,2%.
Quase o dobro, portanto.
No voo panorâmico que propusemos fazer neste primeiro capítulo vemos que os
problemas de acesso a uma habitação condigna
e a custos acessíveis se generalizaram um pouco por toda a Europa. Todavia,
percebemos também que Portugal está, em
muitos aspectos, muito pior do que os outros países. Nos próximos textos tentaremos
explicar porquê e abordaremos as
soluções em cima da mesa para tentar mitigar este imbróglio.