Professores, médicos, polícias
Quando os preços das casas lhes mudam a vida
O preço das casas levam oficiais de justiça e polícias a ponderar deixar a profissão. Fazem médicos fugir de Lisboa. Obrigam professores a partilhar apartamentos como quando eram estudantes.
Os custos com a habitação dispararam e estão a levar funcionários públicos a abandonar cidades como Lisboa. Outros optam mesmo por mudar de profissão. Estamos a falar de carreiras essenciais, como as das forças policiais, os médicos, os oficiais de justiça, os enfermeiros. Em algumas, não há opção: faz parte da missão ser “deslocado”. Muitos assumiram compromissos com empréstimos que começam a ter dificuldades em pagar. Há quem esteja prestes a emigrar. Na semana em que o Governo anunciou um grande pacote para atenuar a crise da habitação, fomos ouvir histórias de actuais ou antigos funcionários do Estado para quem a casa se tornou um problema.
Decidiu emigrar. Tem sonhos para concretizar
Até ao final do ano, Carlos Santos deixa Portugal rumo à Noruega para não desistir do sonho de ser médico especialista. Parte com o plano de regressar, no máximo, em dez anos, mas sem a certeza das voltas que a vida ainda pode dar. E a sua já deu várias. A última foi impulsionada pelo custo da habitação, que primeiro fez com que saísse da zona da Grande Lisboa e em breve o empurrará para fora do país.
O sonho teve início aos 33 anos, já depois de ter tirado dois cursos na Escola Superior de Tecnologias da Saúde de Lisboa: Saúde Ambiental e Radiologia.
Carlos Santos, agora com 39 anos, começou a trabalhar aos 15, enquanto estudava, para ajudar os pais. Tinham vindo de Angola no pós-25 de Abril “sem nada”, viviam no Seixal, precisavam e ainda precisam do seu apoio.
Sempre estudou e trabalhou em simultâneo, até ir para o Algarve, em 2016, estudar Medicina. Vendeu o que tinha para suportar os gastos e regressou a Lisboa para terminar o curso quando a filha entrou para a escola primária. Primeiro alugou um T1 por 560 euros mensais na zona do Seixal e depois, ainda com o apoio do seu pé-de-meia, em 2019, comprou um T2 em Almada, com uma mensalidade ao banco de 450 euros mensais.
Fez o ano comum no Hospital Garcia de Orta, a ganhar cerca de 1200 euros líquidos, e em 2021 conseguiu entrar na especialidade de Medicina geral e familiar, “na unidade que queria e com a tutora que queria”. Aos pouco mais de 1300 euros que ganhava como interno, juntou um rendimento extra de 500 euros mensais — entretanto diminuiu para 350 euros — das aulas que passou a dar na mesma escola superior onde se formou inicialmente.
“Com este rendimento extra podia pagar um pouco mais e eu e a minha namorada começámos a pensar em comprar uma casa para a família. Começámos a ver casas, mas não conseguimos encontrar um T3 que pudéssemos pagar. Era tudo perto dos 400 mil euros."
Decidiram apostar em Torres Vedras, onde fizeram um contrato de compra de uma moradia T4 por 340 mil euros, com uma mensalidade de 800 euros. Em Maio do ano passado concretizaram a compra. “Mas logo a seguir recebemos a notícia que a minha namorada ia ser despedida.” Entre os gastos da casa, pensão de alimentos da filha, alimentação e transportes e um rendimento a dois de cerca de 2700 euros, “já não tínhamos margem para fazer grande coisa”.
A “grande reviravolta” veio pouco depois. “Fomos alertados pelo gestor da conta que a Euribor a 12 meses — a revisão vai acontecer em Maio — ia subir. Em vez de 800 euros, a mensalidade passaria para 1350. Não temos possibilidade de pagar este valor, eu com o salário de interno e ela estando desempregada. Tive de tomar uma decisão em dez dias. Rescindi contrato com o SNS, desisti da especialidade que sempre quis e tornei-me prestador de serviço de clínica geral."
Ainda não conseguiu vender a vivenda para voltar a um apartamento na zona de Almada. Mas estar como prestador de serviço (os chamados "médicos tarefeiros" que não têm que ter a formação de uma especialidade concluída) dá-lhe uma “vida tranquila” em termos financeiros. Tem cinco empregos, faz um “um pouco mais de 40 horas semanais” e traz para casa entre 2500 e 4 mil euros líquidos.
Como prestador de clínica geral, é o único médico de uma extensão do Centro de Saúde de Torres Vedras, que atende cerca de 2 mil utentes, e ganha o dobro do que ganhava. E esse é um dos seus lamentos. “Apercebi-me de que as condições de futuro no SNS não são boas. Não é uma questão de querer ser rico. É de ter dinheiro para pagar as contas e dar uma boa vida à família.”
Por isso vai emigrar. “Portugal não me oferece a possibilidade de ser o médico que quero. A Noruega dá-me a possibilidade de escolher uma especialidade de acordo com o meu currículo.” Vai apostar em Radiologia.
Já contactou com a embaixada, com portugueses a residir naquele país, já tem a aplicação onde vai vendo a oferta de internatos e tem emprego garantido como médico de clínica geral. Receberá um salário entre os 7 mil e os 8 mil euros por 37,5 horas semanais. “Vai garantir-me dinheiro para apoiar os meus pais e a minha filha e voltar com a segurança de que posso estar cá a trabalhar como especialista sem estar preocupado com estas questões.”
Segundo os últimos dados disponíveis no “bilhete de identidade” dos cuidados de saúde primários, em Janeiro deste ano havia mais de 1,5 milhões de utentes sem médico de família atribuído. Destes, cerca de 1 milhões na região de Lisboa e Vale do Tejo. Também tem sido nesta região que muitos hospitais do SNS têm mostrado dificuldades em conseguir completar escalas para as urgências.
A casa consumia-lhe boa parte do salário, voltou a viver com os pais
Vasco Coelho tem 37 anos, é licenciado em Direito e está prestes a concluir o estágio no Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), onde vai ser técnico superior, em Coimbra. Para trás deixa a carreira de oficial de justiça no distrito de Lisboa. “Gostaria muito de ser oficial de justiça, fui colocado num sítio perto da praia, mas depois de pagar a renda e as despesas não tinha dinheiro para nada.”
Quando, em 2017, foi colocado no Tribunal de Cascais, encontrou alojamento em Alcabideche, a menos de seis quilómetros de carro. Pagava 380 euros mais despesas por um T0, mas rapidamente o senhorio decidiu subir a renda para 400. O que se tornou incomportável para um salário de pouco mais de 700 euros.
Procurou outra solução. Um quarto numa casa partilhada foi o melhor que conseguiu. Pagava 350 euros mais despesas, mas estava em Carcavelos, a dez quilómetros do tribunal, mas pelo menos podia ver o mar.
Quando parecia estar mais ou menos estável, a sua situação no trabalho começou a tornar-se difícil. “Eu era o tapa-buracos. Como havia falta de funcionários, passava a vida a mudar de secção. Aquilo que um dia foi uma paixão estava a tornar-se num martírio.” O baixo salário contribuiu para o desamor.
Carlos Almeida, presidente do Sindicato dos Oficiais de Justiça, explica que os funcionários judiciais, “em primeira nomeação, são obrigados a aceitar os lugares para onde são nomeados”. “São colocados onde fazem falta, em Lisboa, nomeadamente na Comarca de Lisboa Oeste, que abrange tribunais como Sintra e Cascais, por exemplo.” Os altos preços das casas consomem-lhes boa parte do salário.
Foi nestas circunstâncias, “de um desgaste emocional e psicológico”, que Vasco começou a concorrer para outros ministérios. Conseguiu um lugar no Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS), mas, em vez de melhorar a sua condição, piorou. “Não conseguia casa em Lisboa. Então fiquei onde estava [Carcavelos], mas passei a ter mais despesa com transportes”, nos quais perdia várias horas por dia.
Acabou por concorrer a um lugar no IMT, em Coimbra, e foi colocado. “Voltei a casa dos pais, mas pelo menos não ando a contar o dinheiro, porque tenho menos despesas...”
No país todo faltam mais de mil funcionários judiciais. Só nas três comarcas de Lisboa faltam 483, segundo os sindicatos do sector.
“Lágrimas nos olhos.” Só vê o marido aos fins-de-semana
“Vivo em solidão, entre quatro paredes, para ganhar pouco e em prol de uma carreira em que não somos valorizados.” É assim que Tânia Fernandes, de 31 anos, descreve o que sente por ser oficial de justiça, profissão que abraçou em 2019 e que a fez deixar Braga.
Licenciou-se em Solicitadoria e Administração, trabalhou numa loja de vestuário e depois numa empresa de contabilidade, mas tinha um fascínio que não sabe bem descrever, que a puxava para a Justiça. Sabia que em início de carreira os oficiais de justiça são, por norma, colocados onde há mais necessidade, nomeadamente no distrito de Lisboa, mas tinha uma amiga que, ao fim de três meses, tinha conseguido uma permuta e regressara para perto de casa. “Pode ser que eu tenha a mesma sorte...”, pensou. “Entre amigos, dizíamos que lhe tinha saído o Euromilhões. Hoje, quase quatro anos depois, percebo o verdadeiro significado dessa frase e também percebo como é difícil ganhar esse Euromilhões...”
Veio de Braga, portanto, para ocupar um lugar de oficial de justiça no Tribunal de Sintra. Começou por ganhar pouco mais do que 700 euros por mês. Teve de se contentar com um quarto pelo qual pagava 360 euros por mês, mais despesas e sem recibo. “Se queria ir a casa ver a minha mãe, eram mais uns 200 euros em viagens.”
Hoje recebe cerca de 900 euros. Paga 300 já com despesas incluídas e vive numa casa com melhores condições, que partilha com mais duas pessoas. Ou seja, na prática, continua a viver num quarto. E longe de casa. “Gosto muito do meu trabalho, mas a minha família é a minha família. Perdi o meu pai cedo e a minha mãe fez muitos sacrifícios por mim e pela minha irmã. Se ela precisar de mim, o que tenho para lhe dar?”
No ano passado, casou-se. Os domingos à tarde são passados “de lágrimas nos olhos e coração apertado”. Regressa a Lisboa e deixa o marido em Braga. “E só o volto a ver na sexta-feira seguinte.”
Tânia diz que tem sonhos que quer concretizar e que só serão compatíveis com o facto de ser oficial de justiça se conseguir colocação no Porto. O próximo concurso é em Abril. “Quero construir uma casa e quero muito ser mãe, mas só conseguirei isso se for para mais perto de casa”, afirmou, revelando que o marido, que trabalha numa carpintaria, também ponderou vir para Lisboa. Candidatou-se à PSP e à GNR e foi chamado, mas acabou por desistir. “Percebemos que com os preços das casas em Lisboa e mesmo nos arredores, Sintra e Amadora, seria muito difícil para nós e, além disso, um primo do meu marido, que é da PSP, explicou-lhe o que era estar deslocado.”
Tânia sabe o que é estar deslocada e ganhar pouco: “É levar comida numa marmita para o tribunal para não gastar a ir comer fora, é ir para casa ao fim do dia, muitas vezes depois de muitas horas de trabalho porque há falta de oficiais de justiça, é chegar a um quarto vazio e ficar sozinha durante cinco dias e ansiar por sexta-feira para fazer sete horas de viagem num autocarro e chegar a casa às 23h e abraçar o meu marido.”
Se em Abril, quando concorrer ao próximo movimento de oficiais de justiça, não lhe sair o tão esperado “Euromilhões”, provavelmente desiste e escolhe a família, ser mãe e construir uma casa.
Os casos de desistência são, de resto, comuns. Hugo Ornelas, de 26 anos de idade, licenciado em Direito, ganha 900 euros, paga uma renda por um quarto de 350 euros em Rio de Mouro e só pensa voltar à terra, na Madeira. “A falta de funcionários judiciais na zona de Lisboa é gritante e isso dificulta os movimentos para outras zonas do país”, diz. Conta que tem um colega que decidiu mesmo abandonar a profissão e outro que está de baixa já há uns seis ou sete meses. “Tem 44 anos e tem a família na Madeira. Foi-se abaixo. Gosto muito de ser oficial de justiça, mas sinto que estou a pagar um preço pessoal muito alto.”
Vive num quarto de 450 euros, vale-lhe a ajuda dos pais
Sónia Gomes, de 32 anos, natural de Santa Maria da Feira, está há quatro anos e meio colocada como oficial de justiça no Tribunal de Cascais. Sabia que não estava a enveredar por uma profissão fácil. Os protestos e reivindicações destes profissionais por melhores salários e uma valorização da carreira já têm décadas e parecem repetir-se num sem-fim ao longo dos anos, sem resolução à vista.
“Mas há sempre uma esperança”, diz com confiança. Afinal, já está no terceiro ano do curso de Direito e os sacrifícios que faz ao tentar conciliar estudos com o trabalho têm de ter um retorno.
No início da carreira, recebia pouco mais de 700 euros, agora são 980, mas, mesmo assim, é complicado gerir o dinheiro com tantas contas para pagar. “Os preços das casas também sobem e os alimentos... Desde que cheguei não consegui passar de um quarto. Pago 450 euros com despesas à parte e não tenho recibo. Vivo no Estoril para estar perto do tribunal. Mais longe, pagaria também mais em transportes”, conta. Vale-lhe a ajuda dos pais. Sempre que pode ir a Santa Maria da Feira, traz comida da casa de família.
Comer fora é um luxo para o qual o meu salário não chega”, diz. “Não temos uma copa ou uma sala onde fazer refeições e por isso almoçamos na secretária”, prossegue. “Só se fala dos professores, mas nós, os oficias de justiça, também passamos muitas dificuldades.
Sónia não esconde que já pensou deixar a profissão. “Viver num quarto, estar sempre a contar o dinheiro e olhar para as mãos e vê-las cheias de nada não é vida”, sublinha. “Com 32 anos, é muito complicado e cansativo estar a partilhar casa com desconhecidos e a viver na precariedade.”
"O alojamento deve ser acautelado pelo Estado"
As dificuldades em pagar uma casa em Lisboa, aliadas aos baixos salários, são uma realidade para muitos funcionários públicos que, pelas características da sua profissão, estão deslocados em todo o país, muitas vezes longe das famílias. Aos oficiais de Justiça juntam-se, por exemplo, polícias e professores.
Na PSP, o problema do alojamento arrasta-se há muito, diz Paulo Santos, presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP/PSP). Em Lisboa, onde dados recentes mostram que o valor das rendas já é superior ao registado em cidades como Madrid, é especialmente grave. “Um polícia, quando termina o curso, é colocado em Lisboa e na quase totalidade dos casos permanece lá muitos anos”.
“A ASPP/PSP considera necessário olhar o problema da pré-aposentação de forma integrada com as admissões, para que tenha reflexos também na mobilidade. Se assim acontecer, evitamos ter polícias em Lisboa por tanto tempo, mitigando o problema do alojamento”, prossegue. Para além disso, “o alojamento deve ser acautelado pelo Estado, face às especificidades que decorrem da condição policial, e há condições para tal, através do muito património do Estado que existe”.
Recentemente, o Governo anunciou que esperava disponibilizar, “até à Primavera”, entre 240 e 280 vagas de alojamento para polícias em três residências na região de Lisboa, que vão permitir aos agentes deslocados aceder a habitação a preços controlados. Paulo Santos alega que é um número “manifestamente insuficiente”.
José Luís, nome fictício, tem 25 anos e é do Porto, só beneficiou do alojamento dos serviços sociais da PSP durante um ano. “Quando acabamos o curso, ninguém nos disse que havia essa possibilidade de ter um alojamento dos Serviços Sociais e na altura recorremos a uma imobiliária para encontrar uma casa. Fiquei com três colegas num apartamento. Dava uns 300 euros a cada um, mas sem contar com as despesas. E, quando iniciei funções, recebia à volta de 809,13 euros mensais. Como era muito caro, começámos a procurar outra solução e foi aí que soubemos que havia casas dos serviços sociais, mas só podemos ficar um ano”, relatou.
Segundo este agente, nos serviços sociais pagava 125 euros já com despesas. Depois encontrou um quarto por 200 euros sem despesas e sem factura, mas mesmo assim diz-se grato porque, a este preço, “é um achado”.
O seu objectivo é sair de Lisboa e conseguir colocação no Porto — “O custo de vida em Lisboa é muito alto.” Já “meteu os papéis” e com sorte, diz, em sete ou oito anos terá resposta. “As colocações, às vezes, demoram anos. Por exemplo, mudar para Viana do Castelo demora mais. Tenho colegas que esperaram 20 anos. Depende do sítio.”
“Chegou-se à conclusão de que o desinvestimento no alojamento dos polícias foi um erro. Porquê? Porque 100% dos polícias que saem do curso vêem trabalhar para Lisboa e ficam cá muitos anos”, diz o presidente do Sindicato Nacional da Polícia (Sinapol), Armando Ferreira. Ficam, ou desistem. “Há cada vez mais colegas a colocar licenças sem vencimento e vão para o estrangeiro e não voltam. Tenho colegas que trocaram a farda por um camião. Ganham mais, muito mais”, diz José.
Saiu de Lisboa porque estava cansada de trabalhar só para as despesas
“Tenho saudades de muita coisa, mas já não seria capaz de viver em Lisboa”, confessa Natacha Abreu, de 42 anos.
Natural do Funchal, tirou o curso de Medicina em Coimbra, onde fez também o ano comum. A especialidade, fê-la em Lisboa, que trocou por Sever do Vouga no início de 2021, onde conseguiu comprar uma casa e ganhar outra qualidade de vida.
Os primeiros tempos vividos em Lisboa foram num T1 alugado com o namorado — e depois marido — que estava a estagiar para advogado. Pagavam 650 euros mensais de renda, que depois passaram a 800 quando se mudaram para um T2 +1 com a chegada do primeiro filho. O segundo nasceu em 2012. “O meu marido trabalhava em casa [onde recebia alguns clientes como advogado] e, na altura, eu era interna da especialidade a ganhar cerca de 1200 euros. A renda do apartamento eram 850. Com a crise, ele começou a perder alguns clientes, outros não conseguiam pagar, precisávamos de uma empregada por causa dos meninos, mas era difícil mantê-las, algumas ganhavam mais do que eu à hora como interna. Vimos creches: o mais barato que encontrei eram 500 euros por cada criança.”
Nasceu o terceiro filho. Arranjaram um T2 no Bairro Alto por 1150 euros. “Era praticamente o meu ordenado, mas foi o mais barato que encontrámos”, diz. Os três filhos dormiam em beliches. Um dos quartos era o escritório do marido, onde atendia clientes. Ganhava 2000 euros brutos, mais coisa, menos coisa. Mas com o boom do turismo tiveram de sair. “Levar os miúdos à escola era um inferno e era insustentável estar a fazer noites e depois não conseguir descansar com o barulho na rua.”
Foram para um T3 alugado no Lumiar, por 1600 euros. Mais uma vez, “foi o mais barato” que conseguiram arranjar, com a vantagem de conseguir levar os filhos a pé para a escola.
Em 2019, Natacha Abreu terminou a especialidade e passou a receber um ordenado líquido de 1800 euros, quase tanto como a renda de casa. “Estava cansada de trabalhar só para as despesas. Não sabíamos se a senhoria ia subir a renda ou não e para tentar ter mais algum dinheiro tinha também de fazer serviço no privado. Mas, assim, não dava tempo para estar com os meus filhos.”
Em 2021, aproveitando as aulas online que aconteceram durante um período da pandemia e o quererem estar com a mãe do marido, que estava doente, ela e a família foram para Sever do Vouga. “Começámos a pensar que até nos dávamos bem aqui. Arrumámos a trouxa e viemos embora”, diz. Para trás deixou o lugar que ocupava num hospital do SNS na zona da Grande Lisboa. “Acabámos por arranjar uma casa mais perto do centro da vila. Pagamos 650 euros ao banco. É uma casa gigante. Temos um quarto para cada um, mais um para visitas, uma sala de estar, uma sala de jantar, um sótão e uma cave que está a ser arranjada para ser o escritório do meu marido. Temos um quintal com árvores de fruto, batatas...”
Rescindiu com o SNS e tornou-se prestadora de serviços. Em vez de estar cada vez mais pressionada pelas horas extras que tinha de fazer, consegue gerir o horário e trabalhar entre 30 e 35 horas por semana. Ganha à volta de 3700 euros líquidos. Por ter uma especialidade hospitalar, faz muitos quilómetros para trabalhar nas três unidades onde presta serviço. Mas nem esse esforço e os cerca de 900 euros que gasta em gasóleo e portagens a fazem recuar. “Acho que o balanço compensa.”
Partilhar casa e sair antes do Verão começar
Duas educadoras de infância deram um salto do tamanho do país: saíram de Chaves para leccionar em Albufeira. Onde encontrar casa para alugar, numa terra com milhares de apartamentos vazios? A pergunta poderá parecer descabida, mas faz sentido. “Os apartamentos existem, mas estão à espera dos turistas”, diz Sandra Conceição, adiantando que acabou por encontrar alojamento a três quilómetros da praia da Falésia.
A escola onde dá aulas situa-se na aldeia de Paderne, no interior do concelho. “É a primeira vez na vida que partilho casa”, diz, abrindo a janela da sala com vista para a piscina. “As aparências iludem...” O aluguer da casa acaba uma semana antes de as aulas terminarem. “Não sei para onde ir morar...”, diz, com preocupação. Alugar quarto num hotel? “O ordenado de um professor é inferior a 1200 euros, mal dá para as despesas...”
Mariana Silva, a colega de coabitação e de escola, já passou pela experiência de se ver na contingência de ficar sem tecto. Aconteceu há dois anos, quando esteve a dar aulas em Portimão. “Vivia num apartamento de umas pessoas amigas, mas chegou o fim de Junho, tive de agarrar na mala e partir...” Conseguiu alugar um T1 em Alvor, por 1000 euros, no mês de Julho. “Valeu-me a minha irmã, que veio passar férias e pagou metade da renda.”
A situação é recorrente: “Os senhorios não fazem contratos anuais”, lamenta Sandra. Quando o Verão se aproxima, chegam os turistas “disponíveis para pagar por uma semana de férias mais do que um salário de um docente”.
Da panela ao lume, na cozinha, solta-se um cheirinho a legumes frescos. “Estou a fazer sopa”, esclarece Mariana Silva. Não há vizinhos nas proximidades. As persianas das janelas, nas casas em redor, estão todas corridas, portas trancadas. “No Carnaval, tal como se verificou no Natal/Passagem de Ano, isto ganha alguma vida, o resto dos meses de Inverno é o deserto.”
O preço da renda, 500 euros por mês, “foi um achado”. Porém, há uma dúvida que não lhe sai da cabeça: “Para onde vão morar na última semana de Julho?” A colega partilha as mesmas preocupações e anseios: “Estabilidade profissional, e alojamento a preço acessível”.
Se tiverem a sorte de ficarem colocadas na mesma escola para o ano, e quiserem permanecer na mesma habitação, já foram avisadas: “A casa só estará disponível a partir do dia 10 de Setembro.”.
O filho de Sandra, que veio com a mãe, sonha vir a ser artista. Agarra na guitarra e desata a dedilhar. Das músicas preferidas, destaca: Encostas-te a mim, de Jorge Palma. “Socializa com muita facilidade”, diz a mãe. De resto, acrescenta, foi essa sua característica que lhe tem permitido “adaptar-se à vida que a mãe leva, “a saltitar de um lado para o outro”. No ano passado, exemplifica, só foi colocada em Fevereiro e esteve em três escolas diferentes: Lourinhã, Póvoa de Varzim e Vila Real. “Gostava de aproximar-me mais da minha área de residência [Chaves, onde está a pagar uma casa ao banco], mas sei que, neste momento, é impossível.”
Enfrenta a subida do preço da casa com um pé-de-meia
É o trabalho de “formiga” dos últimos anos que está a permitir à enfermeira Susana Nunes e ao marido, que é polícia de segurança pública, enfrentar a subida galopante dos juros sem um enorme sobressalto. Mas sair de Lisboa para regressarem à terra natal de ambos — a Guarda — é um desejo. “Viver em Lisboa é mais difícil ao nível económico e faz-nos falta a família.”
Susana e o marido, na altura namorado, vieram para Lisboa depois de terem tirado os cursos. “Sempre quis ter acesso a muita informação e a Guarda é um meio mais pequeno. Na altura, muitos enfermeiros estavam a ir para o estrangeiro e optei por vir para Lisboa. Não me arrependo, mas agora, se pudesse, já lá estava. Pela qualidade de vida, para não estar longe dos pais e porque os custos também pesam”, conta. “Na terra podíamos ter uma horta, em cinco minutos chega-se a todo o lado, não ia pagar uma creche privada e a casa seria metade do que custa aqui.”
Em 2005, quando começou a trabalhar, Susana optou por “fazer duplo”. “Trabalhei em dois hospitais em simultâneo, num 35 horas semanais e noutro 40. O foco era juntar o máximo de dinheiro para não ter a corda ao pescoço. Na altura em que estamos, se não tivesse feito o que fiz, estaríamos pior”, conta. Em 2010, o casal avançou para a compra de uma casa, um T3 que, se fosse hoje, não conseguiriam adquirir. Há anos que os preços das casas sobem dramaticamente. No terceiro trimestre do ano passado, o preço mediano das casas vendidas em Portugal fixou-se em 1492 euros por metro quadrado, mais 13,5% face a igual período do ano anterior.
Em 2018, Susana trocou o trabalho num hospital público por um centro de saúde na sequência de um problema de saúde que surgiu com a gravidez e aproveitando um concurso de contratação para os cuidados de saúde primários aberto na altura. “Dava a oportunidade de entrar na função pública, de ficar com 35 horas semanais — no hospital estava com 40 —, ficava com um horário fixo e podia ter ADSE. Era a oportunidade de ter uma carreira, coisa que não tinha acontecido no hospital. Comecei em 2005 e nunca me aumentaram o ordenado...”
O vencimento só registou uma melhoria em 2019, quando passou a enfermeira especialista na área médico-cirúrgica. Sem descontos feitos, ganha um pouco mais de 1400 euros. Ainda está à espera de ser reposicionada na carreira – tem 23 pontos, o que lhe permitirá subir dois escalões e ficar com um vencimento de 1800 euros. “O que já me deixa muito confortável. Lisboa é uma cidade cara.”
Em relação à casa, começaram por pagar ao banco um valor mais elevado nos dois primeiros anos. “Desde sempre que tentámos fazer um pé-de-meia, para juntar mais algum dinheiro porque não sabíamos as despesas que íamos ter. Em Fevereiro do ano passado, o gerente ligou e aconselhou-nos a retirar algum dinheiro do PPR para amortizar na casa porque a mensalidade ia aumentar muito. Apontava para os 600 euros”, recorda. Foi o que fizeram. Ficaram a pagar 420, mas agora o valor já ronda os 500 euros.
Ainda tem margem para fazer frente a mais alguma subida, mas não dá para fugir do plano de despesas estipulado. A filha mais velha está na escola pública e o mais novo, com 11 meses, entrou agora para a creche privada, cuja mensalidade ronda os 350 euros. “Não conseguimos uma vaga no programa Creche Feliz. Pesquisámos vagas de berçário em Lisboa e não há...”
As actividades para a filha, a creche para o filho, a mensalidade ao banco, a água, luz, gás e alimentação representam “cerca de quatro quintos do orçamento familiar”, contabiliza. Fizeram as contas e foi a diferença de custos da alimentação de Janeiro de 2022 para este ano que mais a surpreendeu: “Aumentou mais ou menos 200 euros.” Reduziram-se as idas à Guarda, as refeições fora, as idas ao cinema ou ao teatro.
O marido fez o pedido de transferência em 2009, mas ainda não teve resposta, e Susana teria de pedir mobilidade, mas, por pertencer à função pública, acredita que seria mais fácil. Se optasse por trabalhar no privado, “ganharia quase o dobro”. Mas a realização profissional, assume, não seria a mesma, nem a bagagem formativa que o SNS garante.
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